26/01/2007

A Loucura na História

Vai para dez anos que assisti de perto o trabalho criador de alguns doentes mentais; neles o processo de criar ou pintar se fazia, realmente sem controle consciente ou intelectual. Vi Raphael traçar em segundos, ou em pouquíssimos minutos, alguns dos desenhos mais belos de nosso tempo e estimados por um Breton, como superiores aos de Matisse. E é, ainda agora, com verdadeiro fascínio que o vejo lá na casa de sua velha mãe, numa ladeira de Santa Tereza, sair do brinquedo em que se misturavam as crianças da redondeza e concentrar-se, em relâmpago de tempo, em si mesmo, ou sorrindo, misterioso e alegre, não sei para quem, num jogo maravilhosos e autêntico, no curso do qual passava por vezes, pelas costas, o lápis ou picel de uma mão para a outra, e com o mesmo movimento deixava o outro braço, agora armado, correr livremente pelo pincel, conclusão de um gesto que vinha de longe, nesse momento sim, tudo era jogo, expressão, autenticidade.

(PEDROSA, Mário. Percepção e Estética: textos escolhidos II. São Paulo: editora da USP, 1996. p.327.

Antes de ser definida como patologia, a loucura experimentou outras formas de relação com a cultura. A história reflete como os homens ao longo do tempo lidaram com o inivitável, com o seu medo de perder a 'razão', com o diferente e com as diferenças. Em cada época da história a sociedade introjetou e lidou com a loucura de uma forma. Valmir Adalmor da Silva no livro História da loucura, nos diz que na Grécia antiga a loucura tinha um lugar de "saber divino", ou seja, os loucos eram vistos como mensageiros dos deuses, oráculos que aproximavam os homens das ordens do Olimpo. Além dos filósofos, os seguidores de Esculápio, deus grego da cura, também chamado de Asclépio, se dedicavam aos estudos dos segredos das enfermidades mentais. Neste contexto, a loucura encontrou um lugar social possivel, não era preciso baní-la ou controlá-la, visto que era necessária como instrumento de decodificação da vontade divina.

As crendices e superstições, a morte e a peste que marcaram a idade média, assim como o medo do apocalípse, fez com que, para o cristão devoto, a saúde e a salvação estivessem alegóricamente ligadas. A medicina cuidava do corpo que perecia e a religião da alma imortal. Qualquer que apresentasse sintoma de alienação mental era condenado a fogueira, não havia escapatória, nem apelar para a 'santa inquisição', para qualquer atitude suspeita, a terapêutica era a fogueira. Os loucos eram novamentes seres "possuídos", mas agora não mais pelos deuses, mas pelo demônio, e ai de quem se interessasse por suas pertubações. Foi um período de silêncio de aproximadamente de 400 anos em matéria de estudos no campo dos transtornos mentais, os poucos que o faziam era às escondidas.

A renascença foi marcada por um tipo de sinistro: o insano. Com o antropocentrismo a loucura passa a expressar as forças da natureza, o inumano, por meio da fala dos loucos o homem renascentista ouve as verdades do mundo e entra em contato com o transcendente. Lembrem-se que tal época traz um revival dos ideais gregos. É o terror e a atração que emanam do sinistro, a loucura é exaltada e não precisa mais ser dominada, podemos perceber este tema expresso nas obras de Bosch, Shakespeare, Cervantes, entre outros.

Mas a relação com a loucura segue se modificando e, num segundo momento do renascimento humanista a loucura deixa de expressar as forças da natureza para confugurar-se o reverso da razão e ganhar caráter moral. Dessa forma a mesma passa a ser vista como um conjunto de vícios: avareza, preguiça, indolência, etc. De substantivo transcendente a loucura passa a ser adjetivo desqualificador.

Meados do século XVII, o crivo moral se intensifica, a loucura torna-se o mundo da exclusão. A burguesia dita as ordens do que é desvio. A relação do homem com o trabalho sofrem mudanças, o artesão passa a perder poder sobre sua produção e seu tempo, acabam tendo que se submeter nas fábricas, esse novo "controle social" gera novos modos de pensar, a autodisciplina torna-se o discurso moralisante do tempo útil e àquele que não consegue tomar lugar na produção, circulação ou acúmulo de riquezas tornam-se os desviantes. Para este criam-se em toda Europa, estabelecimentos de internação que receberão não apenas os loucos, mas os inválidos, pobres, mendigos, portadores de doenças venéreas, libertinos, eclesiásticos em infração, entre outros considerados escória social. Tais espaços não eram concebidos como lugares de tratamento, mas como depósitos humanos, e o trabalho forçado era a maior das punições para o maior pecado, a ociosidade. Essa política de "limpeza" da sociedade por meio da exclusão perdurou por aproximadamente um século.

Meados do século XVIII, presa ao mundo correcional, a loucura agora está intimamente associada a crimes e pecados. A inquietude reaparece, na França as palavras de ordem são liberdade, igualdade e fraternidade, surgem novos questionamentos, o movimento francês repercute e faz-se ouvir dentro dos internatos, que passam a ser vistos como símbolos da opressão e sinal da existência de uma clásse de miseráveis. Uma nova política entra em vigor, e uma forma de administrar tais "necessitados" ressurge por meio do socorro médico e financeiro, que incentiva o retorno destes aos lares. A excessão é para com o louco que permanece internado, pois pode ser perigoso e violento, são os herdeiros da exclusão. Final do século XVIII o internato assume caráter médico e a loucura passa a ser vista como doença.

A loucura ascende ao status de "doença psicológica" apenas no século XIX. É a alma que sofre, a mente precisa ser tratada, o louco passa a ser encarado como um ser humano em conflito com sua própria desordem. A corrente alienista, tendo como expoente Pinel, na França, e Tuke, na Inglaterra, retomam práticas médicas do século XVII, acrescentando-lhes um novo caráter, trata-se de conhece-la para dominá-la. O médicos são os "possuidores da razão", podendo legislar sobre os sujeitos despossuidos da mesma, surge a psiquiatria com uma função ambígua de tratar o louco e defender a sociedade do mesmo. Ao louco é suprimido o valor de sua fala.

No Brasil instalam-se os primeiros hospitais psiquiátricos, que propositalmente são construídos longe das cidades, na Europasurgemmovimentos de contestação a estas estruturas institucionais. O século XX inicia-se tendo como marca as condições desumanas a que os sujeitos sob custódia e tratamento psiquiátrico eram mantidos, foram necessários maos algumas décadas para que a crítica ao asilo não tivesse apenas como carater a desumanidade, mas também a ineficiencia terapêutica. Entre os anos de 1950-60, pós-guerra, as discussçoes se intensificam e surge o movimento antipsiquiátrico, buscando romper com a sinomínia cuidado/exclusão. Países como Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, surgem as primeiras comunidades terapêuticas, na França, o questionamento aos asilos faz surgir a psiquiatria setorizada e a análise institucional, que tinham como foco propor novas relações de acolhimento e reconhecimento da loucura e de seu discurso.

Na Itália, Franco Baságlia criticará a lógica da exclusão, apontando que o enlouquecimento é um produto social e propondo a abertura dos hospitais psiquiátricos. No Brasil, Dra Nise da Silveira ( década de 40) inicia no Hospital Psiquiátrico Pedro II um movimento de resistencia aos tratamentos vigentes, propondo a inserção da Arte como tratamento terapêutico, assim como abrindo o campo restrito da saúde mental a profissionais de outros campos de saber, com o intuito de inclusão social. Segundo Cooper: " Jovens sensiveis, frequentemente universitários, se permitiam à aproximação à experiência dos pacientes desintegrados". Com o advento da ditadura, as comunidades terapêuticas chegam ao fim.

Os ventos que soprava ares de democracia ( 1970-80) balançam as estruturas dos atendimentos de saúde mental. Em 1979 um grupo multidisciplinar de profissionais cria em São paulo o Hospital Dia " A Casa". No Espírito Santo não há como falar em reforma psiquiatrica e saúde mental sem citar o Programa de Extensão da Universidade Federal do ES "Cada Doido Com Sua Mania" que inicou sua trajetória no Hospital Adauto Botelho em 1984 e sendo responsável pela implantação do primeiro Centro de Atenção Psicossocial no ES entre outras conquistas importantes neste que continuam até hoje com a idealização e implantação do CACIA- centro de Atenção Continuada a criança, adolescente e adulto, que atua no campus universitário da UFES.

Site do CDSM: (www.cdsm.ufes.br)

Imagem de aberturade Carla Muaze- acervo do Museu de Imagens do Inconsciente: (http://www.ccs.saude.gov.br/Cinquentenario/carla.html)

Este texto é o capítulo I da minha monografia da Pós em Psicossomática, cujo tema é "A construção de uma nova clínica em saúde mental".
Eu dei uma resumida pois tive que digitar.





Um comentário:

André L. Evangelista disse...

Olá Renata,

Seus pensamentos são de muito bom gosto.... Será que podemos seguir o blog um do outro?

Espero que vc goste de algum texto meu, assim como eu gostei dos teus!

abs

http://ideiasnoalmaco.blogspot.com/