Espaço literário e de defesa da arte, do meio ambiente e da democracia, compartilhado pela escritora e ativista ambiental Renata Bomfim.

16/07/2010

A mulher na sociedade portuguesa: o caso de duas alentejanas: Florbela Espanca e Adelaide Cabete

O Alentejo, uma das maiores e menos habitadas regiões de Portugal, revela-se, no começo do século XX, (em meio a um grande analfabetismo feminino) com duas grandes figuras alentejanas, no meio cultural português: uma nas Letras e outra na Medicina. Na medicina nos deparamos com a figura de Adelaide de Jesus Damas Brazão (Adelaide Cabete), que nasce na freguesia de Santa Maria de Alcáçova, concelho de Elvas, a 25 de Janeiro de 1867, tornando-se uma defensora pela implantação da República Portuguesa.

Porém, sofrendo com a falta de expressão e liberdade parte para Angola, em 1929, como quem almeja à liberdade nas suas mais profundas raízes. Vale destacar que apesar das poucas condições de sua família alentejana Adelaide Cabete (apelido que herda do marido Manuel Ramos Fernandes Cabete) sempre se mostrou apta aos estudos e desenvolve, mesmo a viver na pobreza, quase como um auto-ditatismo, uma formação escolar, tornando-se uma das primeira médicas a exercer a profissão em Lisboa. Segundo Isabel Lousada , Adelaide Cabete defende que se não for possível à mulher grávida ter uma profissão menos fatigante deveria a sociedade, no mínimo, prover para que as mulheres grávidas pobres tenham repouso durante uma parte da gravidez. Esta defesa faz com quem possamos considerá-la como a pioneira na defesa pela licença de maternidade e assistência pré-natal, na esteira do combate contra a elevada taxa de mortalidade infantil. Republicana fervorosa, feminista consciente, maçónica por opção, Cabete torna-se assim uma das mulheres pioneiras em Portugal e uma alentejana que superou todas as dificuldades para construir uma carreira sólida e de grandes lutas ideológicas, vindo a morrer em pleno Estado Novo, de ataque cardíaco, em sua residência em Lisboa, no ano de 1935.
É justamente no ano de 1930, em Matosinhos, que vem morrer, possivelmente por uma dose excessiva de anti-depressivos, também outra alentejana ilustre: Florbela Espanca.
 Mas o que diferencias essas mulheres alentejanas, além da profissão, é a estabilidade emocional e amorosa. Florbela, como se sabe, nasceu em Vila Viçosa, em 1894, e desde o seu nascimento notamos, através de sua estrutura familiar, as dificuldades e tragédias que permeariam sua vida. Observada a estrutura da família e sociedade alentejana Agustina Bessa-Luís refere-se que a base desse meio parece debater-se sobre dois conceitos de duas sociedades que prevaleceram no inconsciente colectivo da região:
a sociedade céltica, baseada no domínio comum das terras, e a sociedade romana, baseada na posse de terras por um ou vários donos. Ainda que inserida numa sociedade patriarcal, a mulher desfruta duma influência manifesta dentro da lei jurídica celta. Podia escolher marido, e o próprio casamento não tinha carácter sagrado; era um simples contrato, cujas clausuras, uma vez desrespeitadas, permitiam um divorcio fácil. Era a face o que simbolizava o pudor. Actualmente, tanto no Alentejo, como no Algarve, ainda se usa a expressão «perder a cara» como significado de perder a hora. Nas mesmas províncias subsiste certa ausência de preconceitos sexuais, que nos reporta à primitiva moral celta. Hesitantes entre a monogamia e a poligamia, explica-se desse modo a sua propensão ao divórcio. Até uma espécie de casamento colectivo era consentido. Mergulhando nas profundezas dos costumes dos velhos grupos tribais, em que se inscreve possivelmente a tendência duma libido e o que nos parece a heresia duma ética, podemos ver mais claro o círculo familiar dos Espanca.
Ou seja, é exactamente este situação do pai de Florbela: João Maria Espanca, era um “Dom Juan”, e matinha com a mãe de Florbela um relacionamento amoroso, tendo como outro fruto mais um filho, Apeles Espanca (10 de Março de 1897). Este relacionamento extra-matrimonial era conhecido por sua esposa “oficial”, Mariana Inglesa, que não podia lhe dar filhos. Desta forma, Florbela foi criada passando meses com a mãe biológica (que trabalhava como empregada na casa de seu pai) e outros com o pai e a madrasta. A perfilhação só acontecerá após a morte da poetisa, e do seu irmão, em 1949.
Florbela Espanca destacou-se tanto em suas produções que até houve uma suspeita de plágio ao considerarem os seus versos cópias. Assim responde a poetisa numa carta endereçada à directora do Suplemento Modas & Bordados de O Século, Madame Carvalho: “Tenho a consciência absoluta dos versos serem meus, sim, Madame, pois que a meu ver é uma indignidade revoltante firmar, com o próprio nome, versos alheios;” Neste caso fica clara a suspeita de plágio: uma mulher poderia escrever, em Portugal, no começo do século XX, algum texto de qualidade literária?
Entre malogros na vida de Florbela sucede-se três casamentos mal fadados e ao contrário do que aparenta, o casamento para Florbela não se constituía uma leviandade. Basta lembrarmos uma das cartas da poetisa endereçadas ao seu irmão, Apeles, em 1923, na qual relata que seu segundo casamento, com o alferes da artilharia, António Guimarães, se baseava numa relação de convenção social e de muito sofrimento, por isso recusa o papel de submissão que é dado às mulheres e viola as normas sociais vigentes, desejando pela segunda vez a separação:
Eu deixei que tivesses da minha vida certeza de felicidade que ela de forma alguma possuía; nunca me ouviste uma queixa, nunca ninguém me viu uma lágrima, e no entanto a minha vida há 2 anos foi um calvário que me dá direito a ter razão e a não envergonhar de mim. Sofri todas as humilhações, suportei todas as brutalidades e grosseiras, resignei-me a viver no maior dos abandonos morais, na mais fria das indiferenças; mas um dia chegou em que eu me lembrei que a vida passava, que a minha bela e ardente mocidade se apagava, que eu estava a transformar-me na mais vulgar das mulheres, e por orgulho, e mais ainda por dignidade, olhei em frente, sem covardias nem fraquezas.
Apesar de todo o carácter repressivo e preconceituoso da sociedade portuguesa, sua dignidade enquanto mulher, que não quer se sujeitar às brutalidades do marido, e o aparecimento de um novo amor (o seu terceiro marido, o médico Mário Lage) falam mais alto e Florbela se justifica ao irmão da seguinte forma:
Pensei na sociedade, pensei na família, nas relações, nos amigos e principalmente em ti, mas que queres? Eu não podia sacrificar-me a isso tudo que é muito, mas que é nada comparado a isto que eu sinto.
Tanto Florbela Espanca, como Adelaide Cabete foram pioneiras ao enfrentar o preconceito masculino: tanto em relação ao trabalho médico, quanto em relação às produções literárias que eram quase que funções masculinas. As duas alentejanas, cada uma a seu modo, tiram o “véu” com o qual a sociedade veste a mulher, tornam-se assim mulheres activas, pensadoras, produtoras. Florbela foi mais além, ao pôr fim a três casamentos infelizes, não aceitando estar ao lado de um homem sem o amar. Pioneiras tanto na vida, como o que deixaram de herança em escritos, observamos que essas mulheres alentejanas ultrapassaram às barreiras históricas do seu tempo, projectando-se séculos à frente, como quem almeja a busca pelo infinito, pela igualdade entre os sexos, pela justiça da sociedade e pela dignidade feminina.

Referências:

LOUSADA, Isabel, Adelaide Cabete (1867-1935). Colecção fio de Ariana. N.º 6. Lisboa: Comissão para a Cidadania e Igualdade de Gênero, 2010.
SILVA, Fabio Mario da, "A mulher na sociedade portuguesa: o caso de duas alentejanas", in Diário do Sul, ano 41, n.º 11.160, Évora, 18 de março de 2010, p.6.

Fabio Mario da Silva é graduado em Letras pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru(Pernambuco), mestre em Estudos Lusófonos e doutorando em Literatura pela Universidade de Évora (Portugal). Também é pesquisador do CNPq, com um projeto intitulado "Aproximações regionais: Alentejo Português e Nordeste Brasileiro - Florbela; romanceiros e romance sergipanos", sediado na Universidade Federal de Sergipe, sob a orientação da Professora Doutora Maria Lúcia Dal Farra. É Membro do grupo de pesquisa - avaliado pela Fundação de Ciência e Tecnologia de Portugal - CEL (Centro de Estudos em Letras), pela Universidade de Évora e Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Atualmente leciona, na Universidade de Varsóvia(Polônia), como Professor Convidado, as disciplinas de Literatura Brasileira, Portuguesa e Africana em Língua Portuguesa. Com uma formação interdisciplinar vem dedicando-se também ao estudo/ensino da história da língua portuguesa e do português instrumental, bem como da pesquisa metacrítica da obra de Florbela Espanca. Atualmente aprofunda-se no estudo da teoria da poesia, da autoria feminina, da literatura africana em língua portuguesa, tendo como objetivos atuais pesquisar a literatura de cordel. É o prefaciador das obras de Florbela Espanca, Basílio da Gama, Mario de Sá-Carneiro e Bocage pela Editora Martin Claret (São Paulo), como também é responsável pelos estudos e biografias de literatura portuguesa da Editora Claret.

TEXTO ENVIADO PELO AMIGO PESQUISADOR EM HOMENAGEM AO DIA DO AMIGO

Um comentário:

Unknown disse...

Mais esse meu amigo é meu orgulho, ótimo artigo Fabio!!! Saudades brasileiras...