12/04/2007

A carta

(ao ler esta poesia ouça Adagio molto - sinfonia nº 4, de Antonio Vivaldi)

Ele chegou, trazia nas mãos uma carta
Entregou-me o papel meio amassado e partiu às pressas
Eu, que ansiava seu retorno, só pude me debater
e gritar e xingar e maldizer a sua linhagem
até a quarta geração.
Em (um) vão...
seus passos ainda pude ouvir ao longe
Assim como os insetos captam o som de suas presas
Hoje, oceano de afetos nos separa
__mas eu ainda te ouço, meu amor,
e sei que você, agora, movimenta-se em círculos.
Eu e o papel que recebi de você
a malibenigna carta
dialogamos vez em quando,
até fizemos um pacto
ela sempre fechada, e
Eu, ousando como nunca,
abrir-me, (des) envelopando-me.
Assim, adiamos o inevitável
o confronto final.
Eu (a)guardo e ela, silencia
e oculta as palavras- punhais.
Passaram-se dois anos
Minha face apessegada já não tem o
mesmo frescor daquele famigerado dia
lembra-se?
O dia em que você me virou as costas!
Nem mais uma ligação...
mas,
sei que estás bem
Um amigo nosso contou que
estás a escrever um livro
Qual será o titulo? O flagelo de uma mulher?
Deves imaginar que assim te livrarás de mim
algum tipo de exorcismo incompetente.
Eu não estou nada bem...
Sinto-me suspensa pelo tempo, no espaço
O tempo, o tempo...
Quando você partiu, alguma coisa
se partiu dentro
de mim, cacos e cacos e cacos- amontoados
Preciso de cola pra elaborar um mosaico
a cola que era você
amalgamou minha ruina
ela era esse amor envenenado
que me ligava às partes.

Espero que passe esse luto
Mas, sem teu corpo estendido
Você continua mais vivo do que nunca
Te quero, ainda
Mesmo na lama da minha dignidade
Mesmo rastejando e encobrindo a última faísca do meu orgulho
Não te amo mais (acho)
Mas te quero consumir,
produto barato, mas de prazer imediato
Exijo o uso capião desse teu corpo
Fiz por merecer
Esse teu corpo que
não deve mais ser àquele que conheci.

Ouso sim exigir o teu corpo,
Não falo de sentimentos,
Você sabe do que digo?
Como exigir de você tamanha abstração?
O que será o tempo pra você?
Estranho que amei, que amei um dia
De que material você é feito?
As vezes penso que você não é gente!
Mais um ano,
hoje dei bom dia à sua sombra
e se fechar meus olhos, posso sentir a imagem
da tua face brotar
do cérebro, do corpo, de mim toda,
mais nítida que a minha própria
que evito
cobrindo os espelhos.
Mas a urgência de te possuir passou
assim como também o desespero.
Lembra-se daquele dia que você me ligou?
um fio foi cortado, algo se desligou dentro de mim.
Ontem, até reparei, revendo umas fotografias
amareladas, como está hoje a carta que você me deu,
que você não é tão bonito assim e nem tão essencial.
Mulher é um bicho besta mesmo!
No fundo, acho que todo amor que te dediquei,
Que era meu e te dei
Gratuitamente?
Um amor que parecia incondicional
e somente hoje sei, não era
que esperava de você, em troca, a Alma,
bem embrulhadinha num celofane cor de rosa.
Você fez bem em não me dar a sua Alma
Afinal, um homem sem alma
Quem iria querê-lo?
Talvez por isso Eu te quis tanto, pelo Não
que você, a cada manhã me ofertava sorrindo
Pelo buraco que esse Não cavava dentro de mim
Atiçando o meu desejo
e alimentando a fantasia de que eu
poderia te devorar inteiro.
O Não
Fez brotar o Sim aqui dentro
Fez saber que a Alma é de cada um
E que cada um é um
Embora os corpos se unam, se enrosquem
e depois sofram com a separação
Seremos sempre dois até a morte
Um Eu e outro um que é Você
A carta?
Queimei-a fazem uns seis meses
não pude lê-la
o teu adeus ainda estava atravessado
ainda não te esqueci, completamente, mas
pretendo Ex...
Espero não vê-lo mais.
Comecei na aula de pintura
Lembra que eu tinha vontade de fazer?
Pois é, quero te pintar de roxo
Bem, não vou pedir que não me procures mais
sempre fui eu quem te buscou tipo cadela no cio,
tipo fumante que sai na madrugada esperançoso por
encontrar uma birosca aberta
pra comprar o amigo,
o amante que
irá acelerar seus passos rumo à sepultura.
Que gozo perverso.
Não vou estender o adeus
hoje, sinto um raio de esperança
brotar
prefiro dizer,
há Deus!
descanse em paz.


by renata bomfim

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