01/07/2010

O Evangélio segundo Saramago e Portugal e Saramago

Se o Paraíso for aquele Spa eterno que os seus promotores divulgam, os escritores ateus estarão entre os seus primeiros condóminos – não só pelo inferno que já viveram na Terra por causa dos céus alheios  (Salman Rushdie que o diga) mas também porque não podem, honestamente, confessar-se pecadores. Prevaricadores, insubmissos, revoltados, enganados, equivocados – talvez. Mas nunca pecadores. Sendo o pecado um filho subjectivo da culpa, a culpa uma filha objectiva do verbo pecar, necessitando os verbos de sujeito para se poderem conjugar, aqueles que não se tenham sentido jamais sujeitos do verbo pecar podem declarar-se, em verdade e consciência, livres de pecados na fronteira do Céu – até porque não acreditam nele. Nesse Paraíso possível, José Saramago será condecorado com a medalha de mérito S.Tomé: escrever para crer. Além do avassalador Evangelho Segundo Jesus Cristo e do fulminante Caim, Saramago publicou duas excelentes peças de teatro, hoje muito esquecidas, em torno do tema religioso : A Segunda Vida de Francisco de Assis (Caminho, 1987) e In Nomine Dei (Caminho, 1993).

A primeira destas peças é uma parábola: Francisco funda uma Companhia e lança-se ao mundo, pregando o despojamento. Quando regressa encontra donos em vez de companheiros e uma empresa ferozmente rica no lugar da pobre Companhia. In Nomine Dei anuncia grande tema do início do milénio: o fanatismo religioso. Desta vez, o escritor preferiu recorrer à força metafórica do documental: reconstituiu teatralmente a guerra santa que dizimou a cidade de Münster, na Alemanha, entre 1532 e 1535. O texto demonstra-nos como o Deus Uno pode escaqueirar-se e servir de pretexto à vontade de matar oculta sobre a vontade de poder.

Ateu? Exactamente, com a dor do cruel a – prefixo de negação, instaurador de um sentimento de inacessibilidade – que afasta o arroubo dessa desistência de ser: teu. Os verdadeiros ateus não se proclamam nem se dão ao trabalho de buscar nos olhos dos homens reflexos de céu. Em José Saramago - Entre a História e a Ficção: Uma Saga de Portugueses (Dom Quixote, 1989) Teresa Cristina Cerdeira da Silva anotava que o narrador de Memorial de Convento « não desacredita em milagres, mas são, esses, milagres do homem, e não de Deus.» Todavia, Blimunda via através dos corpos e depois Joana Carda riscou o chão e a terra fendeu-se. Amén.

Em verdade vos digo que Saramago foi – com Vergílio Ferreira, embora por caminhos opostos – o interlocutor literário de Deus no Portugal contemporâneo. Ambos colocaram no centro do seu altar reflexivo as relações do homem com Deus, ou com a sua divina ausência. Não se trata aqui de recordar o postulado romântico segundo o qual a escrita é sempre uma forma de religião. De muitos pecados poderá ter sido José Saramago acusado ( embora acusar, como o próprio Saramago repetidas vezes nos lembrou, seja um acto indigno de cristãos), mas nunca de perfilhar os princípios do romantismo. Os românticos desenham o passado como um mito côncavo onde moram. Saramago era marxista: sabia que a matéria se transforma para sobreviver, que é preciso destruir as correntes da antiquíssima morte que fabrica o presente para criar o fim da História. Saramago era feminista, como acabam sempre por ficar os seres humanos inteligentes depois de lerem a Bíblia com atenção. Elas estão-lhe antes do Verbo, nesse silêncio de liberdade absoluta onde os livros insolentemente principiam. Elas representam sempre a margem da ordem estabelecida; esquecidas pela acção dos homens, tornaram-se guardiãs da inutilidade que é a única balança fiel no pesar de pensamentos e justiças. Não se trata, nunca, em José Saramago, de considerar as mulheres como seres biologicamente programados para a Ética, a Intuição, as Rendas & Bordados e os Grandes Valores. Trata-se sempre de parar o olhar sobre o que resiste ao tempo, o que a velocidade da História esconde. E de verificar, através do simples método intelectual do bom senso, que o poder é o mais eficaz corrosivo. É só por isso que as almas em bom estado de conservação, nos seus livros, pertencem quase sempre a mulheres. Sem paternalismos, graças a Deus.

PORTUGAL E SARAMAGO

A língua é a única pátria que um escritor digno desse nome pode reconhecer como sua – Saramago pertence à Língua Portuguesa, é essa a sua terra. Terra que, aliás, nunca abandonou; mantinha uma casa no centro de Lisboa, onde estava muitas vezes; ainda há meses ali conversei com ele e com Pilar, a sua mulher, que o Escritor amava com esse amor raro e imorredoiro, que é o que inclui a profunda admiração. O encontro com Pilar – fulgurante encontro, que se seguiu à publicação de O Ano da Morte de Ricardo Reis – tornou-o também espanhol, é certo, porque amar alguém é deixarmos que nos entre na pele e no sentimento a inteligência singular dessa outra pessoa, o seu modo de estar no mundo, a sua língua. Muitas vezes Espanha acolheu Saramago melhor do que Portugal. O provérbio que diz: «ninguém é profeta na sua terra» nasceu precisamente dessa sombra perversa que o patriotismo gera, uma espécie de nuvem de afronta, ressentimento e complexo de inferioridade que o génio, por si só, provoca.

Saramago, ainda por cima, fazia de facto sombra, porque não era um escritor ensimesmado, alheado do mundo que o rodeava. Diz-se que foi por causa de O Evangelho Segundo Jesus Cristo vetado para um Prémio Europeu por uma sub-pessoa

( as pessoas censurantes nunca são pessoas inteiras) que fazia de sub-secretário de Estado da Cultura que Saramago se zangou com Portugal. Mas isto é falso: José Saramago nunca confundiu o país com os seus mandaretes, coisa que os mandaretes, aliás, fossem de que cor política fossem, nunca lhe perdoaram. Os políticos estão sempre inchados de si mesmos e dos seus interesses e Saramago sabia-o bem. Por isso nunca se deixou utilizar, nem calar. Dizia o que pensava e pensava com uma liberdade cada vez mais ampla. Os seus romances provam-no. Nos livros que devorou, como autodidacta puro, na juventude, o Escritor aprendeu a conhecer-se e a tornar-se Escritor. Nos livros que escreveu, já homem maduro, aprendeu a conhecer o mundo e a libertar-se de si mesmo e dos limites das suas próprias ideias. Nenhum país aguenta a liberdade dos artistas que gera, quando essa liberdade é inteira – há-de sempre tentar domá-los, domesticá-los, encolhê-los à dimensão das suas fronteiras.

Em Espanha, dizem-me, Saramago era felicitado nas ruas, uma pop-star. Em Portugal não temos o hábito de abordar as estrelas quando nos cruzamos com elas – em grande parte por pudor, o que nos fica bem. A outra parte é feita de inveja e despeito, o que nos fica muito mal. Mas durante a última década, ano a ano, eu vi Saramago receber banhos de multidão na Feira do Livro de Lisboa - para desgosto de outros colegas de letras, muito pouco camaradas, mas isso é igual em todas as geografias. Nunca faltava às Feiras do Livro portuguesas, como nunca deixou de ir onde o chamavam, de Norte a Sul do país, para debater o que quer que fosse com quem quer que fosse. Nunca se recusou a debater os seus livros ditos «polémicos» em termos religiosos com católicos ou padres. E o povo portufuês gosta de quem é frontal e não se furta ao diálogo. Uma mulher anónima que esperava a chegada do seu caixão dizia: «Ainda não li nenhum livro dele, porque me dizem que são difíceis e eu tenho poucas letras, mas era um homem que não tinha medo de pensar sozinho, e isso a mim faz-me bem». A mim também.

Inês Pedrosa
Meus agradecimentos à Maria Lúcia Dal Farra por compartilhar este material precioso

3 comentários:

Anônimo disse...

Olá Renata, sou o amigo da Andressa, estive na dissertação dela.... to passando aki para deixar meus parabéns pra vc pelo doutorado. Bjo! Sucesso.

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Renata Bomfim disse...

Olá Sibil, você é uma pessoa marcante como esquecê-lo?
Abração
obrigada pelo carinho
renata