Se o Paraíso for aquele Spa eterno que os seus promotores divulgam, os escritores ateus estarão entre os seus primeiros condóminos – não só pelo inferno que já viveram na Terra por causa dos céus alheios (Salman Rushdie que o diga) mas também porque não podem, honestamente, confessar-se pecadores. Prevaricadores, insubmissos, revoltados, enganados, equivocados – talvez. Mas nunca pecadores. Sendo o pecado um filho subjectivo da culpa, a culpa uma filha objectiva do verbo pecar, necessitando os verbos de sujeito para se poderem conjugar, aqueles que não se tenham sentido jamais sujeitos do verbo pecar podem declarar-se, em verdade e consciência, livres de pecados na fronteira do Céu – até porque não acreditam nele. Nesse Paraíso possível, José Saramago será condecorado com a medalha de mérito S.Tomé: escrever para crer. Além do avassalador Evangelho Segundo Jesus Cristo e do fulminante Caim, Saramago publicou duas excelentes peças de teatro, hoje muito esquecidas, em torno do tema religioso : A Segunda Vida de Francisco de Assis (Caminho, 1987) e In Nomine Dei (Caminho, 1993).
A primeira destas peças é uma parábola: Francisco funda uma Companhia e lança-se ao mundo, pregando o despojamento. Quando regressa encontra donos em vez de companheiros e uma empresa ferozmente rica no lugar da pobre Companhia. In Nomine Dei anuncia grande tema do início do milénio: o fanatismo religioso. Desta vez, o escritor preferiu recorrer à força metafórica do documental: reconstituiu teatralmente a guerra santa que dizimou a cidade de Münster, na Alemanha, entre 1532 e 1535. O texto demonstra-nos como o Deus Uno pode escaqueirar-se e servir de pretexto à vontade de matar oculta sobre a vontade de poder.
Ateu? Exactamente, com a dor do cruel a – prefixo de negação, instaurador de um sentimento de inacessibilidade – que afasta o arroubo dessa desistência de ser: teu. Os verdadeiros ateus não se proclamam nem se dão ao trabalho de buscar nos olhos dos homens reflexos de céu. Em José Saramago - Entre a História e a Ficção: Uma Saga de Portugueses (Dom Quixote, 1989) Teresa Cristina Cerdeira da Silva anotava que o narrador de Memorial de Convento « não desacredita em milagres, mas são, esses, milagres do homem, e não de Deus.» Todavia, Blimunda via através dos corpos e depois Joana Carda riscou o chão e a terra fendeu-se. Amén.
Em verdade vos digo que Saramago foi – com Vergílio Ferreira, embora por caminhos opostos – o interlocutor literário de Deus no Portugal contemporâneo. Ambos colocaram no centro do seu altar reflexivo as relações do homem com Deus, ou com a sua divina ausência. Não se trata aqui de recordar o postulado romântico segundo o qual a escrita é sempre uma forma de religião. De muitos pecados poderá ter sido José Saramago acusado ( embora acusar, como o próprio Saramago repetidas vezes nos lembrou, seja um acto indigno de cristãos), mas nunca de perfilhar os princípios do romantismo. Os românticos desenham o passado como um mito côncavo onde moram. Saramago era marxista: sabia que a matéria se transforma para sobreviver, que é preciso destruir as correntes da antiquíssima morte que fabrica o presente para criar o fim da História. Saramago era feminista, como acabam sempre por ficar os seres humanos inteligentes depois de lerem a Bíblia com atenção. Elas estão-lhe antes do Verbo, nesse silêncio de liberdade absoluta onde os livros insolentemente principiam. Elas representam sempre a margem da ordem estabelecida; esquecidas pela acção dos homens, tornaram-se guardiãs da inutilidade que é a única balança fiel no pesar de pensamentos e justiças. Não se trata, nunca, em José Saramago, de considerar as mulheres como seres biologicamente programados para a Ética, a Intuição, as Rendas & Bordados e os Grandes Valores. Trata-se sempre de parar o olhar sobre o que resiste ao tempo, o que a velocidade da História esconde. E de verificar, através do simples método intelectual do bom senso, que o poder é o mais eficaz corrosivo. É só por isso que as almas em bom estado de conservação, nos seus livros, pertencem quase sempre a mulheres. Sem paternalismos, graças a Deus.
PORTUGAL E SARAMAGO
A língua é a única pátria que um escritor digno desse nome pode reconhecer como sua – Saramago pertence à Língua Portuguesa, é essa a sua terra. Terra que, aliás, nunca abandonou; mantinha uma casa no centro de Lisboa, onde estava muitas vezes; ainda há meses ali conversei com ele e com Pilar, a sua mulher, que o Escritor amava com esse amor raro e imorredoiro, que é o que inclui a profunda admiração. O encontro com Pilar – fulgurante encontro, que se seguiu à publicação de O Ano da Morte de Ricardo Reis – tornou-o também espanhol, é certo, porque amar alguém é deixarmos que nos entre na pele e no sentimento a inteligência singular dessa outra pessoa, o seu modo de estar no mundo, a sua língua. Muitas vezes Espanha acolheu Saramago melhor do que Portugal. O provérbio que diz: «ninguém é profeta na sua terra» nasceu precisamente dessa sombra perversa que o patriotismo gera, uma espécie de nuvem de afronta, ressentimento e complexo de inferioridade que o génio, por si só, provoca.
Saramago, ainda por cima, fazia de facto sombra, porque não era um escritor ensimesmado, alheado do mundo que o rodeava. Diz-se que foi por causa de O Evangelho Segundo Jesus Cristo vetado para um Prémio Europeu por uma sub-pessoa
( as pessoas censurantes nunca são pessoas inteiras) que fazia de sub-secretário de Estado da Cultura que Saramago se zangou com Portugal. Mas isto é falso: José Saramago nunca confundiu o país com os seus mandaretes, coisa que os mandaretes, aliás, fossem de que cor política fossem, nunca lhe perdoaram. Os políticos estão sempre inchados de si mesmos e dos seus interesses e Saramago sabia-o bem. Por isso nunca se deixou utilizar, nem calar. Dizia o que pensava e pensava com uma liberdade cada vez mais ampla. Os seus romances provam-no. Nos livros que devorou, como autodidacta puro, na juventude, o Escritor aprendeu a conhecer-se e a tornar-se Escritor. Nos livros que escreveu, já homem maduro, aprendeu a conhecer o mundo e a libertar-se de si mesmo e dos limites das suas próprias ideias. Nenhum país aguenta a liberdade dos artistas que gera, quando essa liberdade é inteira – há-de sempre tentar domá-los, domesticá-los, encolhê-los à dimensão das suas fronteiras.
Em Espanha, dizem-me, Saramago era felicitado nas ruas, uma pop-star. Em Portugal não temos o hábito de abordar as estrelas quando nos cruzamos com elas – em grande parte por pudor, o que nos fica bem. A outra parte é feita de inveja e despeito, o que nos fica muito mal. Mas durante a última década, ano a ano, eu vi Saramago receber banhos de multidão na Feira do Livro de Lisboa - para desgosto de outros colegas de letras, muito pouco camaradas, mas isso é igual em todas as geografias. Nunca faltava às Feiras do Livro portuguesas, como nunca deixou de ir onde o chamavam, de Norte a Sul do país, para debater o que quer que fosse com quem quer que fosse. Nunca se recusou a debater os seus livros ditos «polémicos» em termos religiosos com católicos ou padres. E o povo portufuês gosta de quem é frontal e não se furta ao diálogo. Uma mulher anónima que esperava a chegada do seu caixão dizia: «Ainda não li nenhum livro dele, porque me dizem que são difíceis e eu tenho poucas letras, mas era um homem que não tinha medo de pensar sozinho, e isso a mim faz-me bem». A mim também.
Inês Pedrosa
Meus agradecimentos à Maria Lúcia Dal Farra por compartilhar este material precioso
3 comentários:
Olá Renata, sou o amigo da Andressa, estive na dissertação dela.... to passando aki para deixar meus parabéns pra vc pelo doutorado. Bjo! Sucesso.
Olá Sibil, você é uma pessoa marcante como esquecê-lo?
Abração
obrigada pelo carinho
renata
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