02/09/2010

Artífice das palavras: um olhar sobre Dédalo, de Miguél Marvilla

Artigo apresentado no seminário Bravos Companheiros e Fantasmas 2010 . Autora: Renata Bomfim- doutoranda- Ufes/FAPES

“Eu encontro a mim mesmo na voz inquieto-emocionada do outro, encarno-me na voz cantante do outro, encontro nela um enfoque autorizado de minha própria emoção interior, pelos lábios de uma possível alma amorosa eu canto a mim mesmo (BAKHTIN, 2003, p. 156).


XXXEm meados de 2009 passei a freqüentar a casa de Miguel Marvilla para acompanhar, por sugestão do mesmo, a revisão e a editoração do meu primeiro livro de poemas. Buscando o editor encontrei o poeta. Na última vez que estive com o novo amigo pedi que autografasse para mim um exemplar de, Dédalo, ele riu e escreveu: “À Renata, com carinho, do amigo e (futuro) editor”. Não houve tempo de Miguel finalizar a revisão do livro, mas, desde que tive contato com sua poesia, especialmente em Dédalo, passei a integrar o grupo de admiradores e leitores de sua obra.
XXXMiguel Marvilla é filho da chamada “geração marginal”, ele despontou no início da década de 80, seguindo o fluxo da produção artesanal em mimeógrafos e xérox, cuja distribuição era ignorada pelo mercado editorial, como nos faz saber Joana d’Arc Herkenhoff (2001), sua biógrafa. Esta produção tem como marca a postura de protesto contra os cânones e a tradição, mas, de certa forma, Miguel representou um desvio frente a esta estética, revelando inclinação para o verso cinzelado e de forte apuro formal.
XXXAnalisar alguns aspectos da obra Dédalo implica adentrar “os labirintos do idioma”, “monumentos diversos”, habilmente estruturados pelo poeta, utilizando “verso em cima de verso” (MARVILLA, 1996. p. 105). Dédalo veio a lúmen no dia 28 de novembro de 1996, com tiragem de mil exemplares. A obra foi patrocinada pela Lei Rubem Braga e pela empresa mineradora Vale do Rio Doce. O ano de 1996 foi profícuo para o poeta, pois, além de Dédalo, ele publicou o livro Sonetos de Despaixão, que marcou a inauguração de sua editora, a Florecultura , bem como, assumiu a edição da Revista Você, da Secretaria de Produção e Difusão Cultural da Ufes.
XXXDédalo possui 120 páginas, a obra está dividida em duas partes, a primeira intitula-se Personae e a segunda, Fons amoris, cada uma delas formada por dezoito poemas. Herkenhoff (2001, p. 25), destaca que é em Dédalo que “o jogo intertextual”, uma marca da escrita de Marvilliana, alcança um “alto grau de refinamento”, nela, “o poeta se apodera do estilo de outros poetas, incorporando-o à sua escritura”.
XXX“Eu me fiz ao léu,/ Sem sombras ou chapéu” (MARVILLA, 1996, p. 15). Este fragmento de poema nos remete à questão da nascente poética de Miguel Marvilla. Na revista Você (1997, p. 19), com uma auto-ironia que lhe era peculiar, o poeta escreveu: “Onde é que entra a tão ansiosa parte da construção do poeta?”, e responde: “aí é que está. Não entra. Deixo isso aos meus biógrafos, se houverem. Tomara que nenhum deles me pegue vivo”. Mas na mesma reportagem podemos vislumbrar um pouco de suas leituras e do impacto destas sobre o mesmo:
XXXAntes de desaguar, impávido colosso, nos braços de Shakespeare, Bernard Shaw e Joyce (No original! No original! ─ graças ao Mário); dos românticos ingleses (graças a Aurélia) e de Edward Albee, Arthur Miller e Tenessee Williams (graças ao Carrozzo), pois, antes disso, eu já estava impregnado de Umberto Eco, Fernando Pessoa, Camões, Günter Grass, Machado de Assis, José J. Veiga, Drummond, Gilberto Mendonça Teles (o poeta) e arredores.
XXXO poeta fala ainda de Brigitte Monfort, a “heroína formidável”, [...] filha de Gisele, a espiã nua que abalou Paris e instigou suas fantasias adolescentes, e da importância de ter lido, aos 14 anos de idade, a obra Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez.
XXXA literatura comparada esclarece que o poeta não é responsável, apenas, por mudar a direção, refratar ou contradizer a experiência, ele é capaz de suplantá-la ou mesmo substituí-la tanto na vida quanto na obra de arte, é dessa forma que o poema torna-se o resultado de um processo de suplantação da experiência. (COUTINHO, CARVALHAL, 1994, p. 162). Este pensamento está em consonância com o postulado bakhitiniano que afirma que “cada elemento de uma obra nos é dado na resposta que o autor lhe dá” (BAKHTIN, 2003, p.3). Podemos, dessa forma, conhecer algumas das vozes que compõem o coro da poética de Miguel Marvilla.
XXXA polifonia da obra de Marvilla pode ser observada, por exemplo, no diálogo estabelecido com o poeta português Fernando Pessoa, com o mito e com variadas formas poéticas (a quadra, o soneto, o verso livre) e nas suas labirínticas possibilidades de leitura: Em Dédalo o eu vivencia a esquizofrenia e a angústia contemporânea, errante, busca a si mesmo e encontra-se com o outro:

Assim estou, em um onde que não sei,
Atado, em frágil teia, ao voo sobre o canyon,
Uma parte de mim querendo a asa
E outra buscando o sol.



A qual dos meus destinos dou ouvidos?
A qual dou por vencido?
A qual me rendo?



Livrar-me de um quem sou, por um momento,
Pode apagar o risco
Da vingança de mim contra si mesmo.
Mas, no enfim, tudo me leva ao precipício.
(MARVILLA, 1996, p. 57).

XXXNesse poema intitulado Dédalo: asa ou sol, o eu poético, hábil artífice das palavras, se vê mortificado pela dúvida, mas sabe que o fim é certo, o precipício, a queda. Ora, nenhum indivíduo pode construir o mundo das significações dos sentido a partir do nada, de acordo com Zigmunt Bauman (1998), “caímos” em um mundo “pré-fabricado” que se prepara para uma vida sob condição permanente e irredutível de incerteza (BAUMAN, 1998, p. 32). Certo da queda o eu argumenta com seu “júri”, ou aqueles que lhe julgam, buscando absolvição. Cair faz parte d condição humana, afinal, ele é um criatura que está “a duas letras de Deus”:

Não tenho culpa de ser culpado por estar aqui
Quando tantos já morreram:
Sou inocente de carregar a história
De homens tão obstinadamente extintos:
Eu me defrontante comigo,
Vítima de que tudo era por minha causa
Com a alma pulverizada
Adiando o cansaço por pura preguiça;
Eu, outro amanhã que não o ontem adormecido;
eu,
eu,
eu,
a duas letras de Deus.
(MARVILLA, 1998, p. 25).

XXXEm Dédalo, podemos acompanhar a trajetória do eu poético, que experimenta diferentes máscaras. Seguindo seu destino (fado), ele “foi se construindo ao léu”, é “um desconhecido para o próprio umbigo”, fugindo em direção a si para, no outro dia, levanta-se outro, portanto, além da certeza da queda, há também a de que “tudo o que existe é errante”. A errância do eu poético pode ser acompanhada no decorrer de cada poema, ela engendra outro motivo mitológico, o da jornada interior, o da busca por adaptação, essa é uma experiência que reforça o eu poético, este nomadismo ou ‘não-lugar’ torna possível ao eu à ocupação de variados outros lugares e a experimentação:

Mas eu vim em direção a este outro futuro.
Eu fiz essa viagem inesperada no escuro,
Com não-malas,
Não-heranças,
Não-cartas de apresentação,
E um casaco apertado que mal me cobria os cotovelos.
Eu fugi em direção a mim, destino.
(MARVILLA, 1996, p. 23)

XXXEm entrevista ao Jornal A Gazeta (1996), o poeta disse que “Dédalo significa hoje o labirinto, o cruzamento confuso de caminhos”, e que “o livro trata justamente disso, da confusão do ser e do não ser”, mas o poeta adverte: “Dédalo está cheio de referências, imagens e metáforas”, caberá ao leitor “decifrar estes labirintos”.
XXXFernando Pessoa é considerado por Miguel Marvilla um “grande inspirador”, afinal, “ninguém melhor que ele fala dessa dicotomia”. Este poeta também recorreu à potência da linguagem poética na estruturação de sua obra. Carl Gustav Jung (1991) afirma na obra O espírito na arte e na ciência (1991), que a linguagem mitológica possui muita força e se caracteriza pela intensidade emocional. Quando ela aparece em uma obra de arte:


É como se cordas fossem tocadas em nós que nunca antes ressoaram, ou como se forças poderosas fossem desencadeadas de cuja existência nem desconfiávamos. [...] Em tais momentos não somos mais indivíduos, mas uma espécie; pois a voz de toda humanidade ressoa em nós.

XXXO mito de Dédalo é estruturador e bússola de leitura da obra em questão, nele encontram-se imbricados variados temas e sentidos que um artigo não daria conta de abordar ou elaborar. Dentre eles destacamos o ‘fingimento’, que pode ser entendido também como: mentira, artifício, armação, artificialidade, casca, simulacro, ficção. Este motivo permeia toda a obra e é outro tema que coloca Dédalo no centro dos estudos da pós-modernidade, onde o sujeito é mais performance que competência. Ora, de acordo com o mito grego, o labirinto foi a grande obra de Dédalo, artífice reconhecido por sua habilidade e criatividade.
XXXO labirinto foi construído a pedido do Rei Minos para abrigar o Minotauro. Escaparam dele apenas o próprio Dédalo, seguido por seu filho Ícaro, e o herói Teseu, este último, graças a um fio de lã que lhe foi dado por Ariadne, filha de Minos. Acredito que, o leitor que se habilita a percorrer os “labirintos da palavra” em Dédalo, necessita apegar-se a algum fio, para que não se perder nas múltiplas possibilidades de leitura, e aos perdidos, resta serem encontrados, nesse caso, por ninguém menos que o Minotauro.
XXXDa mesma forma como Ariadne ofereceu ao herói Teseu o fio que lhe conduziu á saída do labirinto, Marvilla oferece aos heróicos leitores, fios para que não se percam durante a leitura, são eles, as epígrafes. A primeira epígrafe é de James Joyce, autor da obra Ulisses , personagem que também foi castigada por Posseidon. O herói Ulisses foi o idealizador do cavalo oco, artimanha que definiu a guerra de Tróia dando a vitória aos gregos. Ulisses foi condenado a vagar pelo labirinto mar. A segunda epígrafe, um fragmento do poema Isto, de Fernando Pessoa que diz: “Dizem que finjo ou minto/ tudo o que escrevo/ Não./ eu simplesmente sinto/ Com a imaginação./ Não uso o coração”. Presumimos que o percurso de leitura exigirá coragem por parte do leitor, que não deve se deixar iludir pelas aparências e nem se deixar levar pela emoção desmedida, pois, toda desmedida, ou hybris, é passível de punição por parte dos deuses.
XXXO mito de Dédalo se realiza no simulacro, foi por meio do fingimento que a rainha Pasifal, esposa do Rei Minos, conseguiu satisfazer o desejo ardente de se unir ao touro de Posseidon, e foi Dédalo o construtor do objeto da enganação: uma vaca de madeira em tamanho natural, oca, onde a rainha pôde se esconder e acasalar com o referido touro. Dessa estranha união nasceu o Minotauro, monstro metade humano e metade animal que se alimentava de carne humana. Minos quis usufruir da mesma coisa que o deus, ou podemos dizer, quis se igualar ao deus, e por isso foi castigado. Antes de ser enganado por Pasifal, Minos acreditou que poderia enganar o deus dos mares, quis o touro que estava destinado a ser sacrificado a Posseido para si e sacrificou, no lugar deste, outro touro.
XXXO termo Personae, que nomeia a primeira parte de Dédalo, é uma designação que originalmente, diz respeito às máscaras que eram utilizadas pelos atores para indicar o papel que desempenhavam. As máscaras são imprescindíveis para o jogo poético, especialmente, no processo de despersonalização do eu, observemos o poema de abertura do livro Dédalo, A minha alma, partida:

A Minha alma, partida, vai por uma
Alameda de sombras inclementes.
Eu a vejo, por vezes, na penumbra
De um soslaio ― eu excessivamente este
Que assim sou. Nos baldios de mim s’tando
Num granítico silêncio a descoberto
E um comboio de angústias, eu náufrago
Nos sargaços de um mar de pensamentos.
(MARVILLA, 1996, p. 13)

XXXEste texto nos remete, também, a um trecho do poema de Álvaro de Campos que diz: “A minha alma partiu-se como um vaso vazio,/ Caiu pela escada excessivamente abaixo” (PESSOA, 2008, p. 174). Essa fragmentação/ destruição, pode ser observada, no poema O cupim (MARVILLA, 1996, p. 61, grifo nosso), onde o inseto se realiza mergulhando no livro de Miguel Marvilla que é o livro de Fernando Pessoa, e indo “até o fundo”, corroendo “folha por folha/ e a emoção − esta capa usada” é o que resta ao poeta. Aqui retomamos um fio da meada, relembrando a advertência dada por Marvilla via epígrafe: “Eu simplesmente sinto com a imaginação/ Não uso o coração”, assim, a emoção é “capa usada”. A palavra capa também se ‘reveste’ de variados significados: roupagem, manto, cobertura protetora, pretexto. Outra leitura, esta feita por Dalmaschio (apud HERKENHOFF, 2001, p. 25) declara que a ação do cupim pode ser entendida como a “ação do tempo” que “destrói o eu poético e Pessoa, junto com o livro”, dessa forma os poetas (Marvilla e Pessoa) são amalgamados por meio da troca que é a leitura.
XXXEnfim, é a emoção o que resta ao poeta, pois “O cupim, em sua fome,/ destrói/ A celulose e o homem,/ a cola, o corante,/ o amante,/ e não tem fim”, mas o poeta e Pessoa, sim. Vemos surgir a imagem do devorador de ‘Pessoas’, o Minotauro metamorfoseado em cupim, mas, não menos cruel e destruidor. Inclino-me a pensar no prazer gerado por esta destruição, visto que a morte, o fim, possui ligações estreitas com com seus opostos, o amor e o renascimento. Ora, o poema Cupim, está localizado ainda na primeira parte do livro, seguido apenas pelo poema Eu te Amaria. Na segunda parte, denominada Fons amoris ou ‘fontes de amor’, outro adentramos outro tema de grande relevância na obra de Miguel Marvilla, o amor. Em Dédalo, o eu poético se entrega ao desejo e, deste, não há quem o salve:

Porque, amiga, dos longes do desejo.



Que se instalou em mim nos arrebaldes
Não há jeito que me Salve (nem novena),
Regina, Ave Maria, gratia plena.
(MARVILLA, 1996, p. 75)

XXXEm fons amoris o eu transita em um universo onde as convenções são questionadas, o corpo e o desejo nos são apresentados como matéria prima para a poesia como podemos observar em trechos dos poemas Desenlace e Fruto proibído:

A noite, respingada de estrelas,
Com espectros
Recortados contra restos
De luz dos lampiões a gás
E mulheres que vestem lingeries sensuais
E homens que as despem lentamente;
A noite em que alguém lê poemas
E alguns ensaiam uma peça de teatro
E um bêbado inveterado
Bebe a mesma garrafa de cerveja;
A noites em que estudantes abandonam livros
E cuidam de sorrisos;
A noite em que se fala de amor,
Em que se beija sem querer porquês;
A noite regada a vinho francês e a palavras úmidas
Longe no calendário, espia nossa desigualdade.
(MARVILLA, 1996, p. 81, grifo nosso)



Se era pra não comer,
Por que havia essa fruta
Ao léu de um pegar,madura?


[...]



Se era pra não comer,
Porque estava essa mulher
Ao alcance de obter?



Não! Era pra ser comida,
Porque era vida e não morte
− o resto é tudo mentira.
(MARVILLA, 1996, p. 83)

XXXPercebe-se que a hybris permeia o mito de Dédalo enquanto transgressão, o eu marvilliano é transgressor e trava um embate ideológico com a tradição cristã, desafiando as leis morais e as proibições que impedem o prazer e a alegria do encontro com o outro. A respeito do poder aglutinador do amor, Waldermar Magaldi Filho, apoiado no mito do nascimento de Eros, afirma:

O amor, em todas as suas fases evolutivas, paradoxalmente, inclui todas as necessidades do ser, acompanhada de todas as suas potencialidades. Por isso, o amor possibilita o surgimento da dimensão criativa, da plenitude da beleza e do maravilhamento pela vida. Entregar-se ao amor é entregar-se ao numinoso e a si mesmo. Pois o amor une as dualidades geradoras de angústia presentes nas antinomias, por isso é a sua própria beleza e o seu próprio fardo. [...] pois, na dimensão do herói, vale muito mais a glória de uma morte violenta, que preserva a dignidade e o próprio ser integral, do que o gozo de uma liberdade maldita (MAGALDI FILHO, 2006, p. 74).
XXXVislumbramos o maravilhamento do eu frente à mulher “com fragmentos” e “de Eliot nos olhos”, motivo pra poesia. Essa dama é motivo também para que aconteçam “festas, exorcismos, divórcios, sete guerras, mil concertos”, e aos seus pés ele se prostra como um vassalo medieval “versos a fio”, e nem sabe “a quantos pés de um soneto”. O amor se realiza: “a amei”, mas, depois de tanto barulho, o poeta confessa a encenação, vale tudo “pra não perder um alexandrino” (MARVILLA, 1996. p. 87).
XXXNo poema Quando beijo Cláudia (MARVILLA, 1996, p. 89), Claúdia encarna todas as mulheres, beijando-a o poeta beija a todas, das “ancestrais”, “as italianas, sarracenas e neandertais”, O eu, beijado por Cláudia, não resiste ao amor, essa ‘mulher total’ já fez “uso-capião” do seu destino. Aqui justifico a citação acercada do poder aglutinador do amor, este se realiza no encontro de diferentes e não na homogeneidade, o eu canta o amor que se realiza de forma plural e sem exclusões É dessa forma que o eu poético, durante o seu percurso, se encontra com o tu “nos baldios” do ventre da mulher, que abriga “palavras úmidas”. Nesse chão o poeta se reconhece. Observemos as quadras:

Teu beijo a repetir-se
Em minha boca devastada:
Memória do que não tive?
Outra saudade inventada?
(MARVILLA, 1996. p. 101).



Nas circunstancias da letra,
Nas cercanias do som,
O amor, em geral, é onde
Encontramo-nos sem pressa.
(MARVILLA, 1996. p. 101).



São esses olhos, amiga,
Que me tiram a razão.
Não penso mais. Só existo
Por causa do coração.
(MARVILLA, 1996. p. 101).

XXXNo poema Tudo era por minha causa (MARVILLA, 1996, p. 21), o eu poético declara que “a ninguém caberia pressentir/ que eu seria o não-sido”, que “houve um tempo de estar escondido em lacunas”, e justifica: “era preciso que eu me protegesse”. Eis outra função essencial da persona, considerada por Carl Gustav Jung uma ferramenta de adaptação social, protetora do eu. Mas, esse mesmo poema abre-se ao inesperado e surge Beatriz, o outro (melhor dizendo, a outra), a primeira namorada (seria sua Eva?), para quem o poeta “teria inventado/ não apenas um país,/ mas também um passado” (MARVILLA, 1996, p. 25). Quantas possibilidades de criação por meio da palavra: (re)inventar o tempo ou, em um “arroubo de poesia”, enraizar na fraude o parentesco: “nascença aventureira”, e criar “um passado de argonauta” para os pais “ignotos mineiros das Minas Gerais” (MARVILLA, 1996, p. 53).
XXXEis uma pequena mostra da complexidade da poética de Miguel Marvilla, nada nela é desprovida de intenção, seria um engano imaginar que os poemas são propriedade privada do poeta, recorrendo a uma analogia com o mito, Dédalo não produziu para si além de asas para escapar do labirinto, ele é alguém a serviço, um operário. Dessa forma Miguel empenha-se para produzir um texto com multiplicas camadas de leitura, que podem ser captadas de acordo com a possibilidade de cada leitor. Bakhtin esclarece que:
XXXTudo o que é dito, tudo o que é expresso por um falante, por um enunciador, não pertence só a ele. Em todo discurso são percebidas vozes, as infinitamente distantes, anônimas, quase impessoais, quase imperceptíveis, assim como as vozes próximas que ecoam simultaneamente no momento da fala. [na linguagem poética] a autoridade do autor é a autoridade do coro. A possessão lírica é, em seu fundamento, uma possessão pelo coro (BAKHTIN, 2003, p. 156)
XXXÀs interlocuções já descritas juntam-se outras, como por exemplo, as vozes trovadorescas presentes tanto nas temáticas que lhe são peculiares: o amor, a louvação da amada, quanto na forma, que integra a tradição lírica popular, a quadra . Há quadras tanto na primeira parte do livro (quadras 1), quanto na segunda parte (quadras 2). Sigismundo Spina (s.d., p. 110) explica que as quadras foram as formas matrizes do raciocínio poético dos trovadores populares, assim como o dístico, elas têm como objetivo comunicar um estado sentimental a um destinatário, nelas, o tratamento do tema amoroso baseia-se numa conexão mítico-mágica do mundo. Denis de Rougemont (1998, p. 58) complementa informando que a poesia dos trovadores nasceu entre os séculos XI e XII, falando a língua provençal e cantando o amor livre, dela nasceu a poesia européia. Em resumo, nossa linguagem passional vem da retórica dos trovadores.
XXXNas Quadras, parte1 é possível observar o eu poético mergulhado em questionamentos acerca de si e da própria poesia, amparado no diálogo com a tradição Portuguesa:

Só sinto o que me é dado

Sentir. Mas, se, por um lado,
O que sinto não é meu,
Quem sente, outros ou eu?
(MARVILLA, 1996, p. 29).



Escrevo para mentir
De público o que pra mim
Há muito sinto − e refuto:
De tantos, não sou nenhum.
(MARVILLA, 1996, p. 29).



Eu sou excesso de outros,
Não sendo outros, tampouco.
E deito-me em pensamentos
Que nem sempre reconheço.
(MARVILLA, 1996, p. 29).

XXXJosé Carlos Mattedi, em um artigo publicado no Jornal A Gazeta intitulado Labirintos de um poeta, destaca que para Miguel Marvilla “o amor é um lugar aonde se vai-se só com a própria sombra, e o resto na estrada se abandona”. Abandono é outra palavra que rima bem com amor, Ariadne ajudou o herói Teseu a sair do labirinto porque estava apaixonada por ele. O herói que, por sua vez, havia prometido corresponder ao amor da princesa, a deixa dormindo e parte após cumprir a missão de matar o Minotauro. Joguete nas mãos dos deuses, Teseu também cumpre o seu destino de enfretamentos, além do Minotauro, lutou com o Monstro que ameaçava matar Andrômeda e com a Medusa. Ariadne se casaria, mais tarde, com o deus Dionísio, que foi quem a consolou do abandono pelo herói.
XXXO mito de Dédalo não possui hapy and, Ariadne fica desolada, Dédalo pede seu filho amado, Ícaro, Minos é traído e vê sua vergonha revelada com a morte do Minotauro, talvez, apenas o deus sinta-se satisfeito com a tragédia e a vingança completada. Miguel Marvilla explora em Dédalo, muitas temáticas que precisam ser, melhor, desenvolvidas, como por exemplo, a questão do tempo, esta é uma obra que possui inúmeras camadas de leitura, e cuja multiplicidade, é capaz de traduzir as inquietações do nosso tempo.
XXXFrancisco Aurélio Ribeiro em A literatura do Espírito Santo (2010, p. 119) destaca que: o nosso estado “sempre foi um celeiro pródigo de escritores e escritoras, [...], não só a terra de Rubem Braga e de Roberto Carlos, mas de muita gente boa, em busca de um futuro esperançoso”. Este crítico literário esclarece às pessoas que ainda se perguntam se existe uma “Literatura Capixaba” e que “preferem ignorar a produção local, embevecidos com os EUA, Europa ou, pior, o eixo Rio-São Paulo”, que basta ler os “livros de Miguel”, pois estes “são uma resposta bastante concreta” para estas indagações. No meu caso, fica a admiração pelo poeta, a saudade do amigo e a lembrança de uma pessoa generosa, sempre pronta a ajudar, o nosso Dédalo, produzindo arte com as palavras.


Referências:
• BAUMAN, Zigmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeio: Jorge Zahar, 1998.
• BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (coleção biblioteca universal).
• COUTINHO, Educardo f.; CARVALHAL, Tânia F. Literatura comparada: textos fundadores. Rio de janeiro: Rocco, 1994.
• JUNG, Carl Gustav. O espírito na Arte e na Ciência. 3.ed. Petrópolis-RJ: Cultrix, 1991.
• MARVILLA, Miguel. Dédalo no centro do labirinto: Miguel Marvilla Vida e obra. Seleção e estudo crítico por Joana D’Arc Baptista Herkenhoff. Vitória: Secretaria Municipal de Cultura, 2001.
• Você- Ano V, nº 45, maio de 1997.
• MARVILLA, Miguel. Dédalo. Vitória: Florecultura, 1996.
• PESSOA, Fernando. Ficções do interlúdio. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
• RIBEIRO, Francisco Aurélio. Estudos críticos de literatura capixaba. Vitória, 1990.
• RUGEMONT, Denis de. O amor e o Ocidente. Tradução de Paulo Brandi e Ethel Brandi Cachapus. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1988
• SPINA, Sigismundo, Na Madrugada das Formas Poéticas: manual de versificação românica medieval. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. (coleção estudos Universitários, no. 3).


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5 comentários:

Anaximandro Amorim disse...

Renata, parabéns pelo belíssimo artigo! Uma pena que não pude estar lá! Ainda bem que você pôs no seu blog. Sds. Anax.

Aparecida Pimentel disse...

Olá! Estou encantada por esse poeta capixaba! Ao retornar ao mundo literário... me deparo com "Miguel M."... Obrigada por esse artigo! Retornarei!!! Abraços Mª Aparecida Pimentel

Anônimo disse...

Tive a oportunidade de conviver com Marvila nessa época do curso de Letras-Inglês. Seu texto me trouxe boas lembranças. Obrigada!

Sávio Christi disse...

Beleza, meus parabéns!

Unknown disse...

Parabéns pelo belo texto. Tive a oportunidade de conviver com Miguel pois é meu irmão querido. Vim para Vitória no final da década de 70 morar com minha mãe e ele, época que as produções eram através de mimeógrafo, feito tudo na UFES, e a noite saímos pelos bares da Grande Vitória vendendo os livros de mesa em mesa. Saudade deste poeta maravilhoso, que deixou um vazio enorme no meu coração.

Maurício Marvila