Amigos, este artigo (Reciclagem Zen no Mosteiro do Morro da Vargem) foi publicada na Revista do Instituto de Estudos Ibéricos e Iberoamericanos da Universidade de Varsóvia (Polônia), ano 8, numero 22, Junho 2011, pp. 21-22.
As montanhas capixabas[1] abrigam o primeiro Mosteiro Zen Budista da América Latina, o Mosteiro Zen Morro da Vargem[2] (MZMV), em japonês, Hakuun Zan Zenkoji (Monte da nuvem Branca/ Templo da Luz do Zen). Quando o mestre japonês Ryohan Shingu, fundou o MZMV em 1974, o movimento Zen começava a ganhar força no Brasil, embora suas práticas fossem pouco conhecidas. Na década de 70 as áreas do MZMV e do seu entorno encontravam-se devastadas em função do plantio desordenado de café e da criação de gado. Os monges iniciaram, então, um trabalho pioneiro e intuitivo de recuperação da Mata Atlântica que, anos depois, seria reconhecido nacional e internacionalmente por sua extemporaneidade. O MZMV foi considerado, em 1992, Pólo Permanente de Educação Ambiental, recebeu o prêmio Muriqui, concedido pela UNESCO, e foi citado pelo Ministério do Meio Ambiente do Brasil (MMA) como sendo “uma das cem experiências de sucesso em sustentabilidade no Brasil”. Foram plantadas 20 mil mudas de Jacarandá, Jequitibás, Vinháticos e outras espécies de árvores nativas de grande porte. O MZMV compreende hoje 175 hectares de Mata Atlântica recuperada, sendo 10 hectares utilizados com os templos, jardins, paisagismo zen e agricultura orgânica para subsistência.
[1] O termo capixaba vem da língua indígena Tupi e quer dizer terra limpa para a plantação, roça. É considerada capixaba toda a pessoa nascida no Estado do Espírito Santo, Brasil.
Além dos retiros religiosos, o MZMV realiza variados programas de educação ambiental voltados para a comunidade e para instituições públicas e privadas, um deles chama-se COMPAZ: a ética policial e a vivencia socioambiental, programa que teve inicio em 1996 e busca sensibilizar os policiais para a questão ambiental, proporcionando contato com a filosofia e a disciplina oriental. Outro programa é o Zenzinho que atende a crianças e adolescentes das escolas públicas do Espírito Santo, este programa teve início em 1996 e desde a sua criação já atendeu cerca de 12.600 participantes. Minha história com esta instituição começou a ser escrita no inicio de 2008, quando fui convidada para participar, como arteterapeuta, do COMPAZ e, posteriormente, para assessorar o programa Zenzinho. Sempre me instigou ver como um local que recebe cerca de 30 mil visitações por ano se conservasse limpo, organizado e com as suas dependências preservadas. Acredito que esta instituição é uma usina de reciclagem de (pré)conceitos e de hábitos insustentáveis, pois, as pessoas que ali chegam, se deixam envolver pela filosofia zen e experimentam um contato mais próximo com a natureza, (re)conectando-se à mesma e a si mesmos. Há a sensibilização do olhar e os indivíduos passam a ver que a vida é uma teia imbricada, complexa, e que degradar o Planeta, pressupõe degradarem a si mesmos, vêem a emergência de modificarem seus hábitos, reverem seus conceitos e até, de simplificarem um pouco o estilo de vida, ganhando mais qualidade de vida. As pessoas reavaliam o significado de Ser e de estar no mundo, adotando práticas simples para preservar o meio ambiente, como a diminuição do consumo, a coleta seletiva e a redução da produção de lixo.
Somos uma sociedade de consumidores, afirmou o pensador Zigmunt Bauman, no nosso tempo o “penso, logo existo”, de Descartes, foi recodificado, e agora, impera o “compro, logo sou”. As pessoas, enredadas nessa trama nefasta, não percebem se tornarem elas próprias, também, objetos de consumo e, portanto, sujeitas a sua lei, como por exemplo, a lei do descarte. O programa de educação ambiental realizado pelo MZMV apóia-se em pressupostos básicos da Filosofia Zen, como por exemplo, o amor à vida, não apenas a vida humana, mas das plantas, dos animais, reconhecendo a sacralidade de cada elemento. O Zen repudia o desperdício, dessa forma, na hora das refeições, cada pessoa coloca no prato apenas a quantidade de comida que vai comer, cada qual arruma a sua cama, lava o seu prato e ajuda a manter limpos e arrumados os ambientes, encontra satisfação naquilo que já possui e procura desenvolver o desapego as coisas matérias, alcançando maior autonomia de escolha e descolonizando o seu desejo. Segundo o Abade Daiju, responsável pelo MZMV, não é preciso ser ecologista por formação para ter atitudes ecologicamente corretas, e o conceito de sustentabilidade é simples: “deixar o planeta preparado para o Outro”, é “lavar o próprio prato”. A disciplina no MZMV é horizontalizada e as responsabilidades e os espaços são compartilhados.
Desde a sua fundação o MZMV foi construindo uma pedagogia própria de redução de lixo a parti da simplicidade, não apenas reduzindo os resíduos sólidos, que são separados e reciclados, mas também, possibilitando ás pessoas, vivências que mostram que o consumo desenfreado gera muito lixo, mas não gera felicidade. As pessoas passam então à reciclagem de velhos hábitos (insustentáveis), e de (pré)conceitos. O Monge Daijú, ressalta ainda que: “o Mosteiro tem o seu trabalho centrado no crescimento do ser humano”, o que ratifica a nossa crença na possibilidade de mudança de hábitos deste: “Nós não somos ambientalistas, assim, por origem, não somos biólogos, nós criamos os trabalhos pelo exemplo, só com o coração. Nós acreditamos nesse coração bom do ser humano, que interage e olha o próximo como parte dele mesmo, este é o cerne do nosso projeto pedagógico. O verde e a fauna é o cenário, nós buscamos trabalhar o ator principal, não que o homem seja melhor, mas é ele quem dirige as ações para o bem ou para o mal, é ele que interfere”.
As ações educacionais desenvolvidas nos programas do MZMV privilegiam um olhar para o mundo a partir de uma perspectiva planetária que pressupõe a inclusão social, o respeito pela diversidade cultural, e o amor e cuidado para com o Planeta. Há o investimento no intercâmbio de conhecimentos, cuja transmissão, está para além da esfera reduzida da racionalidade e da ciência moderna, que baniu variadas formas de saber do mundo elegendo-se como a única válida e verdadeira. Esse reconhecimento é um antídoto ao individualismo que ilhou as pessoas e inviabilizou o diálogo, a troca, dificultando que valores como a solidariedade e a compaixão se afirmassem ganhando a vida cotidiana.
Ao buscarmos no dicionário alguns significados para o termo “lixo” encontramos: “qualquer objeto sem valor ou utilidade; aquilo que se joga fora; coisa ordinária, malfeita, feia”. Observamos que o termo se estende dos objetos aos indivíduos: “pessoa sem qualquer dote moral, físico ou intelectual; a camada mais baixa da sociedade; escória, ralé.” Reconhecemos que o lixo é ambíguo e polifônico, podendo se tornar até um “Lixo Extraordinário”, quando tocado pela sensibilidade do artista, como mostra a vivência registrada pelo artista plástico Vik Muniz, em um dos maiores aterros sanitários do mundo, o Jardim Gramacho, na periferia do Rio de Janeiro. O lixo é polifônico porque dele emanam vozes que denunciam a incapacidade dos indivíduos de gerenciarem seus próprios detritos, a sua incapacidade de reconhecer que os recursos da Terra são limitados, e também, que ele próprio possui limites. O lixo é ambíguo, pois o que para alguns não serve mais, devendo ser descartado, é para muitas famílias que vivem à margem, na pobreza, o sustento. Contraditoriamente o “lixo” pode nos apontar, por meio da criatividade, possibilidades e soluções para um mundo sustentável, instigando e convocando a sociedade para o engajamento, como mostra o número crescente de pessoas que fazem a coleta seletiva, bem como o de cooperativas de catadores que, organizados, selecionam e encaminham este “lixo”, o transformado em “matéria prima” para as indústrias reutilizarem.
Zigmunt Bauman aponta para o fato de que vivemos em uma sociedade cujos laços sociais tendem a se tornarem “frouxos”, onde os cidadãos, (des)ligados, precisam conectar-se, mas, desconfiados, buscam evitar encargos e tensões, o que gera uma “furiosa individualização” e “(des)engajamento” (BAUMAN, 2004). É nesse cenário que a ética se apresenta como uma expressão do imperativo de religação, como preconizou Edgar Morin: “Todo ato ético é, na realidade, um ato de religação, com o outro, com os seus, com a comunidade, com a humanidade e, em última instância, inserção na religação com o cosmo. O lixo não é o principal problema na contemporaneidade, mas, os processo que levaram à produção do lixo, esse sim, o é. O nosso modo de vida caminha na contramão da própria vida, é preciso reciclar “lixos” como a intolerância, o ódio, a avareza, a violência, para que, transformados, se tornem matérias primas: solidariedade, atenção, respeito, compartilhamento, tolerância, respeito à diversidade, e que, a partir destes novos insumos, sejamos capazes de construir um mundo socialmente mais justo. O lixo em determinado contexto pode ter se tornado um pesadelo, mas, a partir dele, também é possível sonhar e dar forma a novas realidades.
Renata Bomfim
Mestre e Doutoranda em Letras pela UFES.
Educadora Socioambiental no Mosteiro Zen Morro da Vargem
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