"máquina de guerra" é uma proposta filosófica formulada por Gilles Deleuze e Félix Guattari, que não diz respeito ao poder bélico e estatal, mas a uma potência inventiva e nômade, capaz de escapar e causar fissuras no poder dominante, inventando para si "linhas de fuga" e novas formas de ver e habitar o mundo.

15/12/2011

Wisława Szymborska: a poesia do cotidiano sob a marca da dor (publicado no Caderno Pensar de A Gazeta)

Olá amigos, segue um comentário que fiz acerca da obra da poeta polonesa Wisława Szymborska para o Caderno pensar do jornal A Gazeta/ES, está na página 03. Vocês podem conferir também outros textos interesantes sobre artes plásticas, música, cinema, etc., espero que curtam a leitura. Reproduzo abaixo o texto publicado.

Wisława Szymborska:
a poesia do cotidiano sob a marca da dor

A poeta polonesa Wisława Szymborska nasceu em 1923 na cidade de Bnin e aos oito anos se mudou para Cracóvia, onde reside até hoje. Wisława Szymborska conquistou variados prêmios literários, entre eles, o prêmio Goethe, na Alemanha, em 1991, o prêmio Herder, na Áustria, em 1995, e o Prêmio Nobel de literatura, em 1996. Aos 88 anos de idade a poeta busca preservar a sua vida privada, possui uma personalidade pacata, é discreta, e pouco afeita a viagens e badalações literárias.
A obra poética de Wisława Szymborska totaliza doze volumes. A editora Companhia das Letras lançou em 2011 o livro Wisława Szymborska: [poemas], que reúne uma mostra da produção da poeta no seu idioma original, o polonês, com tradução para o português realizada por Regina Przybycien. Este lançamento agrega poemas recolhidos nos livros Por isso vivemos, de 1952; Perguntas feitas a mim mesma, de 1954; Chamando por Yeti, de 1957; Sal, de 1962; Muito divertido, de 1967; Todo caso, de 1972; Um grande número, de 1976; Gente da ponte, de 1987; Fim e começo, de 1993; Instante, de 2002; Dois pontos, de 2005, e Aqui, de 2009.
Wisława Szymborska integra uma safra de poetas que testemunhou as agruras da II Guerra e o Holocáusto. A poeta viu a terra natal ser ocupada pelos nazistas e repartida entre potências socialistas, acontecimentos que resultaram na morte de mais de seis milhões de poloneses, muitos deles judeus. Poemas como Vietnâ, no qual ressoam muitos “Não sei” e, Certa gente, que desnuda o silêncio daqueles que “deixaram para trás certo tudo o que é seu” e, “quanto mais vazios tanto mais pesados a cada dia”, revelam o tom político de sua escrita.
Para o eu poético szymborskiano tudo é político, observemos um trecho do poema Filhos da época: “Somos filhos da época/ e a época é política. [...] Querendo ou não querendo,/ teus genes têm um passado político./[...] Não precisa nem ser gente,/ para ter significado político,/ basta ser petróleo bruto.” A inquietação e variados questionamentos, muitos deles de ordem filosófica, marcam a escrita poética de Szymborska. Poéticamente, o cotidiano, o passado, a sujeição do homem ao tempo, a vida precária e breve, são abordados entre outros temas. Malgorzata Baranowska, ressaltou que o senso de humor da poeta é fruto de um “paradoxo filosófico muito refinado com uma linguagem extremamente simples, cheia de expressões do cotidiano”. Estes aspectos podem ser observados no poema Primeira foto de Hitler: “E quem é essa gracinha de tiptop?/ É o Adolfinho, filho do casal Hitler”! O crítico Nelson Ascher destacou que a escrita poética de Szymborska “é a da contenção”, da “economia”, aspectos que conferem “intencionalidade” a cada poema.
O eu lírico szymborskiano repensa o mundo como quem reedita uma obra, ele dá voz a sujeitos subalternizados e silenciados pela história abrindo espaço para “a fala dos bichos e das plantas”, deixando falar A mulher de Lot, personagem bíblica transformada em estátua de sal. O tempo, senhor onipotente, no universo poético de Szymborska “não terá poder sobre os amantes”, como descreve o poema Repenso o mundo, e o grotesco e o sublime buscam harmonia para embalar a morte, algo como “Bach/ tocado por um instante num serrote.”
Os poemas explicitam a transitoriedade da vida, “Cena sem ensaio”, espécie de teatro “onde o mais sublime é o baixar da cortina”, o eu poético confessa: “Não sei o papel que desempenho,/ Só sei que é meu, impermutável”, estes são trechos dos poemas Impressões do teatro e A vida na hora. Se “a vida e a arte não devem só arcar com a responsabilidade mútua, mas também com a culpa mútua”, como afirmou o linguista Mikhail Bakhtin, Szymborska, no poema Sob uma estrela, toma sobre os seus ombros a culpa do mundo e se desculpa perante tudo e todos, especialmente “as grandes perguntas pelas respostas pequenas”, “por não poder estar em toda parte”, e “por não saber ser cada um e cada uma.”
A obra poética de Wisława Szymborska é rica de significados e, ainda, pouco conhecida no Brasil. Acreditamos que a poeta encontrará, cada dia mais, espaço entre os leitores da boa poesia.

Poemas:

Vietnã


Mulher, como você se chama? ― Não sei.
Quando você nasceu, de onde você vem? ― Não sei.
Para que cavou uma toca na terra? ― Não sei.
Desde quando está aqui escondida? ― Não sei.
Por que mordeu o meu dedo anular? ― Não sei.
Não sabe que não vamos te fazer nenhum mal? ― Não sei.
De que lado você está? ― Não sei.
É a guerra, você tem que escolher. ― Não sei.
Tua aldeia ainda existe? ― Não sei.
Esses são teus filhos? ― São.

O quarto do suicida


Vocês devem achar, que o quarto estava vazio.
Pois havia ali três cadeiras de encosto firme.
Uma boa lâmpada contra a escuridão.
Uma mesinha, e sobre a mesinha uma carteira, jornais.
Um Buda alegre, um Jesus aflito.
Sete elefantes para dar sorte, e na gaveta um caderninho.
Vocês acham que nele não estavam nossos endereços?

Acham que faltavam livros, quadros ou discos?
Pois lá estava o trompete consolador nas mãos negras.
Saskia com sua flor cordial.
Alegria, centelha divina.
Na estante Ulisses num sono reparador
depois dos esforços do Canto Cinco.
Os moralistas, seus nomes inscritos em letras douradas
nas lindas lombadas de couro.
Ao lado, também os políticos perfilados.
Não parecia que o quarto fosse
sem saída, pelo menos pela porta,
nem sem vista, pelo menos pela janela.
Os óculos para longe largados no parapeito.
Uma mosca zumbindo, ou seja, ainda viva.

Devem achar que ao menos a carta explicasse algo.
E se eu lhes disser que não havia carta ―
éramos tantos os amigos e coubemos todos
No envelope vazio apoiado no lado do corpo.

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