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Ouvir
sereias...
Ora
(direis) ouvir estrelas! Certo/ Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,/
Que para ouvi-las, muita vez desperto/ E abro as janelas, pálido de
espanto...”.
Estes
versos do poema “Ouvir estrelas”, do brasileiro Olavo Bilac, há décadas
encantam os leitores. A obra Lázaro e Estela Vertiginosamente, escrita
por Pedro Sevylla de Juana, é feita desta mesma matéria:
beleza e assombro, mas, apenas o leitor desperto poderá escutar o canto que vem
das profundezas do texto e ouvir as sereias. Esta
obra é fruto de uma tentativa de reparação, ela traz a luz e-mails que desvelam
a relação amorosa entre Lázaro Céspedes Arjona, escritor, tradutor e professor
de literatura, e sua aluna Estela Boinder Sintes, publicitária.
Esta história
envolve de forma irremediável, outras histórias de amor e amizade, como por
exemplo, as vividas pelas personagens Sabrina Baccio e Amanda Meire. Essa
“correspondencia-río” a cada dia se tornará mais íntima e acabará por
desembocar “en un océano de erotismo y entrega”. A obra
põe em xeque o status do sujeito contemporâneo, esvaziado das
verdades absolutas, de caráter teatral, sempre em busca, sempre em via, Ulisses
vencido buscando a única verdade possível e capaz de salvá-lo, o amor, risco no qual estão empenhados tanto quem ama, quanto o objeto de amor, ou seja, o ser amado.
O amor é de todos os mitos o mais belo e, de todas, talvez, a realidade mais
verdadeira. Estela e Lázaro vertiginosamente oferece
ao leitor a possibilidade conhecer detalhes dessa relação que se revela deveras
real, embora seja virtual, e mostra também o poder abrasivo da palavra, como
bem destacou Lázaro: Ahí destaca el poder de la palabra, el poder del deseo
sobre la palabra. El efecto es real, demasiado real”.
Conhecer a intimidade
alheia é um fetiche contemporâneo, basta observarmos a profusão de diários
íntimos e epistolografias publicadas. Entretanto, penetrar na intimidade dos
personagens da obra em questão, sondar seus sonhos e fantasias, bem como, ter
ciência de suas fraquezas e potencialidades, é a possibilidade de termos uma
aula sobre a autenticidade do amor, esse “não querer mais que bem querer”,
“contentamento descontente” como cantou Camões.
O leitor
deve se colocar num “para além”, tanto dos julgamentos morais, quanto das
convenções sociais, pois, para penetrar os arcanos da paixão, do desejo, da
sedução e do amor, senda da qual ninguém sai igual, ou incólume, é preciso
vulnerabilidade, é preciso transgredir normas, regras e interditos. Lázaro
sabe que a divisão entre os sexos é algo cultural e pernicioso, e se orgulha por pertencer a um pequeno grupo de pessoas no mundo que arrisca viver valentemente
o cadinho de felicidade que lhe é devido: “Vuelvo de un viaje muy largo. Soy Ulises, y regreso a Ítaca buscando
el amor de Penélope, mi enamorada esposa Estela, que espera mi regreso con
esperanza inextinguible”. Estela Boinder Sintes é Penelope e também é “la
sirena que dirigía el coro, cuando, atado al palo mayor de mi barco, escuché su
canto irresistible”. Metamorfoseada pelo desejo do amado, torna-se também,
"Estrella marina, estrellamar, estrella en el cielo sobre el mar, [...]
Estrella polar, guía de los marineros en su derrotero nocturno”,“hetaira virgen”,
a única mulher capaz de capaz de transformar Lázaro nos heróis admiráveis das
obras que ele traduziu.
Foi
o desejo de aprender que levou Estela a se aproximar do poeta e novelista,
Lázaro era duro e não admitia qualquer pessoa na sua aula, mas a fluidez verbal
de Estela, o seu otimismo e firmeza o seduziram. Para Estela Lázaro, além de
“Maestro del placer”, era uma escuta amorosa, o apoio que ela necessitava, um
porto no vasto oceano da solidão: “Me gusta oírte y contarte mis cosas, me
gusta que me digas las palabras más obscenas mientras nos acariciamos desnudos.
[...] mi amor, mi vida, mi hombre...”.
O erotismo na obra é premente, e vale
destacar aspiração de realização no aqui e agora que é próprio do desejo: “No
hay futuro, y lo sabemos. Lo importante es que existe presente, un presente
continuo”, destacou Lázaro. E foi o desejo de liberdade no instante levou o
casal virtual a criar um mundo particular: "No te parece maravilloso,
cervatilla? […] tenemos una casa virtual, formamos
una pareja virtual”, destaca Lázaro, e Estela confirma: “Lo siento tan vivo que
no lo cambiaría por la realidad”. União fértil e imaginitiva
que gerou uma criança virtual, uma menina chamada Aurora. EstelaLibre é
a residência do casal, “un terreno de libertad” onde cada um pode se expresar
da sua maneira, tanto como é, como quanto deseja ser. Livres da “autocensura, sin prejuicios
ni reproches”. Neste espaço privilegiado, onde “palpita un sentimiento común de
admiración, respeto, deseo, estima, amor, amistad, atracción”, que os “esposos
eternos de una eternidad que ha de durar mientras el amor y el deseo duren”,
podem ficar juntos: “mi novia virtual, la luz de mi vida; ya estoy en casa. Entro
anhelante de hablar contigo, cargado de deseo”.
O desejo
é a relação entre seres humanos carentes. Os amantes são enredados em um jogo
de afetos que denuncia uma falta que demanda satisfação. Observem a forma
desejosa como Lázaro descreve Amanda Meira, sua esposa, a “entrañable Maga:
“heredera de indígenas tupiniquim brasileños y continuidad de la vida. Es animal, vegetal y mineral; es fuego y
es aire. Es la naturaleza, lo palpable y lo etéreo. […] cuatro años menos que
yo y con rasgos indelebles de mulata”. Amanda é uma personagem
intrigante, o seu silêncio na obra é ruidoso, especialmente quando sabemos
acerca dos traumas de seu passado. A amizade de Amanda com Sabrina Baccio
indica a potência da obra, capaz de abarcar variadas formas de afeto, amizade e
companheirismo.
A bissexualidade de personagens como Estela e Sabrina é
insinuada, tanto no âmbito do real, quanto da fantasia, enquanto a de Sônia e
Sara é explícita. Lázaro encontra em Estela o desejo e a aceitação que já não
encontra mais em Amanda: “Ignoro cómo será mi sexualidad futura, pero sin ti va
a decaer, sin tu estímulo perderá empuje y vigor”. Sabrina põe fim à
correspondência amorosa entre Lázaro e Estela motivada por “sentimientos
fuertes: amor, amistad, celos, rabia”. Foi também Sabrina que levou ao narrador, parte importante da trama, os e-mails
para que fossem publicado. Observamos que no jogo amoroso o ser humano veste
múltiplas máscaras e, mais que ocultar, ele revela o seu status: precário,
marcado pela finitude, ser que não possui atributos divinos, e que para
ascender e tocar o infinito precisa de outro ser: “Anoche en mi soledad
habitual me abrazaste y mimaste, besaste mi cuello y mi pelo y después de gozar
me dormí en tus brazos”.
Pedro
Sevylla de Juana nos possibilita conhecer mundos que apenas os poetas
são capazes de criar, mundos multidimensionais, vinculados a humanidade, no
qual a fraqueza se transforma em força, e valores como a amizade e a
generosidade superam as mesquinharias da vida cotidiana, enfim, vem mostrar que
a linguagem, para além da vida prática, pode responder as necessidades da vida
afetiva. Muitos outros
personagens integram este imbricado texto: filhos, netos, primos, sobrinhos,
políticos, cantores, cada um deles atuando estrategicamente na trama, os
lugares também são importantes.
Há ainda Carme Esther Miravet, “artista
de nervio y estirpe”, criadora da capa do livro, eu, Renata Bomfim,
autora destes apontamentos e admiradora da escrita do autor Pedro
Sevylla de Juana, e o autor, o que não é simplesmente um elemento em um
discurso, e que além de desempenhar um importante lugar enunciativo na obra,
nos convida para embarcar no seu veleiro de papel para ouvir as
sereias.
Renata Bomfim
poeta brasileira
Fonte: Este texto foi primeiramente publicado na Revista de Cultura PROTEXTO
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