Anchieta nasceu no dia 09 de março de 1534, em
Tenerife, nas Ilhas Canárias, foi para Coimbra estudar a mandado de
seu pai, próspero tabelião. Ali adquiriu conhecimentos humanistas e teológicos
e lhe despertaram a vocação religiosa e o desejo de participar de um trabalho
missionário. Em 1551, fez-se noviço. A formação humanista de Coimbra lhe
proporcionou a apreciação do humano, no que ele tem de bom e belo, saindo das
mãos do criador, mas a espiritualidade da companhia de Jesus moldou-lhe o
caráter.
Em 1553, veio para o Brasil, a Terra de Santa Cruz,
na armada do Segundo Governador Geral, na terceira leva de jesuítas e, em 1566,
na Bahia, ordenou-se sacerdote.
No Brasil, Anchieta se ordenou e militou na causa
da doutrina cristã, segundo a filosofia jesuítica do Renascimento, unida às
funções de sacerdote, estava a de administrador, Pacificador, Superior
Provincial, professor e escritor pluringuista (espanhol, português, latim e
tupi) e de gêneros variados: poeta, filólogo, historiador, dramaturgo. Depois
de ter vivido 44 anos atuando na filosofia jesuítica de seu tempo, na missão
catequizadora, buscando ensinar a cultura religiosa, viver dentro da moralidade
cristã e fundar colégios em (São Paulo e Espírito Santo, principalmente),
morreu em 09 de junho de 1597, em Reritiba, hoje Anchieta, no Espírito Santo.
Na manhã do dia 03 de abril deste ano (2014) o papa
Francisco (ex cardeal Jorge Mario Bergoglio) assinou o documento que
garantiu, junto a Frei Galvão e Madre Paulina, a santidade ao padre jesuíta
José de Anchieta que, por meio da catequização, exerceu um papel primordial na
construção da nação brasileira. O Processo de beatificação iniciou
em 1726 e concluiu em 1980 e, neste ano, chegou à categoria de santo.
Anchieta fundou a arte poética no Brasil, mas até o
século passado suas poesias permaneceram inéditas. Só em 1814, após a
restauração da Companhia conseguiram-se cópias manuscritas de algumas poesias
de Anchieta que se guardam no Instituto Histórico e Geográfico do Brasil.
O maior interesse de Anchieta no Brasil foi sempre
para com o homem indígena. Para com ele manifestava uma grande compaixão,
dentro dos padrões filosóficos da época. Assim o atraso da civilização
silvícola brasileira, no conceito humanista, e a sua falta de fé cristã, no
rigor da idéia jesuítica, atraíram-no menos que o sentimento de simpatia e, às
vezes, de admiração pelas qualidades naturais, manifestadas pelo selvagem. Com
arrebatamento descreveu do homem nativo: o hábitat, os costumes, a música
harmoniosa, o trajar, as festas, a política e o exercício bélico. Para atender
os objetivos de pedagogo e alcançar o entrosamento com os índios, aprendeu o
tupi, a língua geral que contava com maior número de falantes e, para facilitar
os trabalhos dos outros jesuítas, organizou uma gramática do português e
tupi: Arte da gramática da língua mais usada na Costa do
Brasil, publicada em Coimbra em 1595.
A expansão marítima motiva os escritores a
escreverem seus livros históricos sobre esse acontecimento, trazendo João de
Barros, na sua obra Década da Ásia a novidade do sentido ecumênico da
história. É uma época de produção literária, da reabilitação da língua e da
literatura. Como exemplo, citamos Sá de Miranda que, influenciado pela lírica
italiana, introduz canzone e, por outro lado, Gil Vicente
que faz autos (dramas religiosos e teatro satírico). O movimento humanista
alastrou-se no reinado de D. João III, devido à sua inclinação para as letras e
os letrados. Coimbra, mesmo antes da transferência da Universidade (1537), era
o grande centro cultural humanista. Era um opróbrio, em determinados colégios,
deixar de falar em latim ou grego. Assim, em Portugal, as influências
humanistas, com a expansão das literaturas clássicas (latina e grega), que
chegam da Itália, compartilham com a exaltação dos valores nacionais, graças
aos grandes descobrimentos dos portugueses e às várias manifestações
artísticas.
Em 1540, foi introduzida a ordem dos Jesuítas ou
Companhia de Jesus, mais militante que contemplativa, fundada por Santo Inácio
de Loyola em 1534 com o objetivo de converter os heréticos e servir a religião.
Em 1759 foi expulsa pelo marquês de Pombal. O seu lema era: "Para maior
glória de Deus” [...]. No seu livro Exercícios espirituais instrui que,
para alcançar a glória, se deve em algum lugar predicar, confessar e ler,
ensinando os jovens, dando-lhes exercícios, visitando pobres em hospitais,
exortando as pessoas a confessar-se, comungar e celebrar ofícios divinos. Os
jesuítas tiveram um papel importante no Concílio de Trento. No Brasil sua ação
foi militante, atraindo os indígenas para o cristianismo e para a civilização,
nos moldes europeus. Criaram e mantiveram escolas, pregaram a moral evangélica,
disciplinando a sociedade em formação. O papel dos jesuítas na formação da
nacionalidade brasileira é relevante, pois prepararam e educaram os colonos
para as futuras lutas contra os piratas de diferentes procedências, propiciaram
o fortalecimento político e econômico da colônia. Com os seus trabalhos de
catequese, eles deram início à civilização brasileira. Entre os jesuítas não
podemos deixar de destacar nessa última atribuição o mister de padre José de
Anchieta.
Os jesuítas tinham uma vida de andarilho e dura.
José de Anchieta, nos versos épicos de Di Gesti Mendi de Saad, exalta
a hostilidade por que passam os jesuítas no seu trabalho de catequese: “Aí os
raios ardentes do sol a estiolar sem piedade, / as chuvas, as sedes, a fome a
atormentar de contínuo/ esses heróis irmãos unidos num só coração, / ufanos do
nome de 'companheiros de Cristo Jesus'”. (1986, p. 147)
Padre José de Anchieta era enérgico. Esse caráter
condizia com a descendência de pessoas decididas: o pai de origem basca emigrou
para as Canárias durante a sublevação das Comunidades castelhanas (1522), a
mãe, canarina, de origem judia convertida, vinha de família de conquistadores
da ilha e parente de Santo Inácio de Loyola, um dos chefes do movimento
religioso da Contra Reforma, o fundador da Ordem dos Jesuítas. O seu físico
frágil e enfermiço não condizia com a fortaleza de espírito.
Anchieta era um jesuíta humanista: amante das
letras e das armas. Como humanista, exaltava as qualidades próprias da natureza
humana. Como homem das armas, defendia a doutrina cristã com a palavra
religiosa e a ação – arte bélica combativa dos jesuítas. Como homem das artes,
ele escrevia em prosa e em verso em latim, em espanhol, em português e em tupi,
autos, canções, diálogos e orações e cartas, verdadeiros documentos históricos.
A modernidade de Anchieta é ambivalente. Pois ainda
que fosse um renascentista que tomava como mestres os clássicos gregos e
latinos, como faz na sua obra épica Mem de Sá, em muitas canções
segue a simplicidade dos poetas medievais, (os dos cancioneiros). Nos poemas
que ele escreve em latim eclesiástico, para transmitir um amor singelo à
Virgem, ele bebe nas fontes, desde Virgílio ou Ovídio, como humanista, mas
também nas singelas fontes dos hinos eclesiásticos de são Tomás de Aquino ou
são Bernardo.
Anchieta funde em sua obra poética, duas culturas,
a clássica e a medieval, pois quando escreve em latim utiliza não a métrica
clássica, mas a singeleza do ritmo medieval. Assim acreditamos, porque sentimos
nele a necessidade de adaptar-se ao povo do Brasil em seu afã de comunicação.
No contato com os habitantes da colônia desejava falar-lhe mais
intimamente, tocar-lhe o coração, procurando ser um homem de sua época e de seu
ambiente. Ao escrever, evitava os termos e as expressões literárias, procurando
um vocabulário próprio da conversa quotidiana, de léxico reduzido para fazer-se
compreender. Utilizava poucos recursos retóricos, mas com propriedade emprega
rimas comuns, da mesma categoria gramatical – uma difícil arte - estrofes de
cinco versos (quintilha), o terceto, a nona, a sétima, a sextilha, a undécima e
o verso da redondilha maior, a metrificação mais popular na Península, os
quebrados, os decassílabos, etc.
Um exemplo de seu afã de comunicação com o povo
simples da colônia é o seu auto Pregação Universal, para ser representado
em festas de Natal. Nele sete crianças fazem a sua oração ao menino Jesus em
português, dois em espanhol e três em tupi.
A última canção, em espanhol, ele a escreveu um mês
antes de morrer, ela se encontra no Auto da Visitação: “Quién te visitó,
Isabel, / que Dios en tu vientre tiene? / hazle fiesta muy solemne, pues que
viene Dios en él [...]”.
Em seus versos, o poeta jesuíta procurava estimular
os cristãos, elogiando-os, exaltando a civilização em ebulição. Um exemplo são
os versos, no auto de Santa Úrsula, nos quais manifesta o seu carinho pela
Capitania do Espírito Santo:
Ditosa Capitania,
que o Sumo Pai e Senhor
abraça com tanto amor,
aumentando cada dia
suas graças e favor.
Anchieta possuía uma grande capacidade de versejar.
Com extrema musicalidade e candura escrevia os poemas e canções em português,
espanhol latim e tupi com a finalidade de doutrinar. Um exemplo desse objetivo
é o poema Canção à Santa Inês, onde quer mostrar como são recebidos por
Deus aqueles que o amam. O poema nos lembra os hinos sacros ou os poemas dos
cancioneiros à maneira de Gil Vicente ou de Jorge Manrique. Dividido em três
partes, na primeira mostra a entrada da santa em nove quartetos “Cordeirinha linda/ como
folga o povo" [...] na segunda parte fala do martírio da Santa. Destaca o
trabalho de padeira, “Nao é de Alentejo/ Esse vosso trigo, mas Jesus amigo/ é
vosso desejo [..]” (1984, v. 1, p. 112, para poder falar metaforicamente da
eucaristia utilizando as palavras: trigo, pão, farinha, bolo.
A lírica de Anchieta, presa muito mais à
tradição ibérica, ou mais precisamente ao cancioneiro popular, que ao
quinhentismo italiano, foge ao individualismo, próprio dos clássicos e, ao
expressar o seu universo interior, com simplicidade, isto é, o seu sentimento
pessoal e íntimo, ao sentido cristão, faz-se coletivo. Um exemplo é o
“villancico”, canções próprias do Natal, poesia delicada em estilo popular onde
se empregam os artifícios de pergunta do pecador e resposta do menino Jesus,
desde o mais inicial: Seguem as perguntas e respostas em sextilha, terminando
com um termo chave: pecado.
- Que fazeis, minino Deus,
Nestas palhas encostado?
- Jazo aqui por teu pecado.
- Ó minino mui fermoso,
pois que sois uma riqueza,
como estais em tal pobreza?
- Por fazer-te glorioso
e de graça mui colmado,
jazo aqui por teu pecado (1984, v. 21 p. 91-92).
Exemplo da arte poética, variada, de Anchieta podem
oferecer os versos do Auto de Santa Úrsula, onde a personagem Vila de
Vitória fala a essa Santa de sua felicidade em recebê-la. A fala da Vila de
Vitória, em um "villancico", uma composição poética de
"arte menor", derivada da estrutura morisca do século X, o "Zejel",
inicia-se com um mote, quatro versos em redondilha, seguindo-o versos em
quintilha, sempre com um acréscimo de um dos versos do mote inicial,
transformando a quintilha em sextilha. Outro exemplo de transformação do ritmo
estrófico se encontra no canto ao Santíssimo Sacramento. A redondilha se quebra
para acentuar, num ritmo forte, como um golpe de um bastão, a idéia mais
relevante que o poeta quer informar na estrofe. O ritmo desses versos em
redondilhas e tetrassílabo nos lembra o do poema medieval, elegíaco, de Jorge
Manrique, Coplas por la muerte de su padre, organizado em estrofes de
"pie quebrado" (octossílabos e pentassilabo). Comparemos uma estrofe
desses poetas:
Anchieta
Ó que pão, ó que comida,
ó que divino manjar
se nos dá no santo altar,
cada
día!
|
Manrique
Nuestras vidas son los ríos
que van a dar en la mar,
qu'es el morir;
|
Em seu poema místico, em espanhol, "Desterrose
el rey del cielo", em que semelhante a São Juan de la
Cruz, apresenta a alma como esposa de Cristo, organizada
em estrofes de heptassílabos e endecassílabos, com rimas a, B, a, b,
B, - estrofes a que se chama "lira", Anchieta explora a
imagem da Igreja esposa de Cristo:
No sientas mi partida,
mas antes, si me tienes en tu
pecho,
y estás conmigo unida
con amor muy estrecho,
alégrate, que al Padre voy
derecho. (1984, v. 2, p.. 61)
A lírica em tupi de Anchieta pode ser encontrada em
alguns autos. Servia para instigar o canto ou a dança a seus alunos. Um exemplo
de poemas em tupi é a dança "Pejori xe irú eta" (Achegai-vos, meus
amigos) que se encontra no Auto de Guaraparim. As quadrinhas de música são
redondilhas, com exceção da oitava que é uma quintilha.
Misturando ritmos latinos, portugueses e espanhóis,
o poeta variava o ritmo tupi, recriando um: o da confraternização, antevendo o
que será a cultura brasileira, no seu afã de doutrinar e, para o tupi, transportava
os ensinamentos judaicos, fundindo cultura e idioma. O poema "O sem
ventura", inspirado nas orações da Ave-Maria e Salve Rainha,
é um exemplo:
Tupansý
porangeté
oropáb
oromanómo!
oré
moingopé jepé
nde
membýra moñýrómo,
inongatuábo.
oré
rarómo,
oré
ánga pýsýrómo
|
Mãe de
Tupã toda linda,
eis-nos
todos expirando
Tu nos
dás a vida infinda,
ao
Filho teu aplacando,
tornando-o
manso,
a nós
guardando
e a
nossa alma libertando.
(1984,
v. 1 p. 197)
|
As poesias líricas de Anchieta são de cunho
religioso, mais precisamente de tradição mística:
- Jesus, bom pastor,
como andais penado!
- Ando maltratado,
por te dar amor!.
(1984, v, 2, p. 138
No sientas mi partida,
mas antes, si me tienes en tu
pecho,
y estás conmigo unida
con amor muy
estrecho,
alégrate, que al Padre voy
derecho.
(1984, v. 2, p. 139)
Assim, as poesias de Anchieta, de objetivo
didático-doutrinal, destinavam-se à recitação, ao canto e à representação
teatral. Muitas delas passaram a ser cantadas pelo povo. Seus temas eram
variados, retirados da Bíblia, da tradição católica (ofícios, litúrgicos –
sacramentos -, vida de santos ou devoções marinas). Em seus versos, Anchieta
deixa refletir a sua fé e o desejo de propagar o conhecimento cristão junto aos
colonos e índios em seu afã de catequizá-los. Em sua obra poética, observa-se a
síntese dos elementos que caracterizam o Renascimento, que a arte dos
escritores místicos absorveu: o elemento idealista e o realista. O sentimento
da beleza terrestre se sublima no desejo de unir-se com Deus, beleza absoluta.
Em sua vida, como na dos dois grandes místicos
espanhóis, Santa Teresa de Ávila e San Juan de la Cruz, combinam o espírito
místico, manifestado nos poemas e canções, inseridas em seus autos (sua lírica)
e o da vida ativa dos batalhadores jesuítas. Fundindo a linguagem viva de
expressão cotidiana com a linguagem culta do latinismo renascentista e do
poético do estilo bíblico, introduz Anchieta na nova Colônia portuguesa o
Barroco.
Referências
-ANCHETA, J . Lírica espanhola. Obras
completas. Anotações e introdução por Armando Cardoso. São Paulo: Loyola,
1984.5 v., I, II.
-OLIVEIRA, Ester Abreu Vieira. Ultrapassando
fronteiras em metapoemas. Vitória: PPGL/MEL, CCHN, 2004, p.19-26.
ESTER Abreu Vieira de Oliveira, Muqui (1933), Doutora em Letras Neolatinas pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro e Pós-doutora em Filologia Espanhola – UNED, membro do
Colegiado do Programa de Pós—Graduação Mestrado e Doutorado em Letras – Estudos
Literários – UFES, atua na área de Letras, atualmente, em teatro, poesia e
narrativa da Literatura hispânica, literatura brasileira e literatura
espanhola. Como pesquisadora - Linha de Pesquisa — POÉTICAS DA ANTIGÜIDADE À
PÓS-MODERNIDADE (PAP), é lider do grupo de Pesquisa CNPq: Estudos de literatura
hispânica: caminhos e tendências. Tem participado como representante de
instituição em comissões e conselhos culturais estaduais e municipais. Possui
trabalhos publicados (impressos, on-line e CDs) em revistas especializadas, em
jornais e em anais de congressos com temas referentes às línguas e às
literaturas espanhola e brasileira e, ainda, livros didáticos e infantis,
tradução de obra, livros de poesia, de crônicas e de
ensaios. Pertence à Academia Espírito-santense de
Letras, Cadeira 27, à Academia Feminina Espírito-santense de
Letras, Cadeira 31, ao Instituto Histórico, Geográfico do Espírito
Santo, à Associação de Professores de Espanhol do Espírito Santo, (Membro
fundador), à Associação Brasileira de Hispanista (Membro fundador), à
Asociación Internacional de Hispanista, à Asociación Internacional del Teatro
Español y Novo Hispano - AITENSO
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