14/09/2014

Epopéia nas antilhas: Omeros, de Derek Walcot (por Renata Bomfim)


“Que o hino profundo do caribe
Continue meu epílogo” (Omeros)

 Cristóvão Colombo, agente do “descobrimento”, transformação histórica que teve como marco simbólico o ano de 1942, sempre rezava: “Que nosso Senhor, em Sua misericórdia, me ajude a descobrir ouro”. Colombo navegou, de ilha em ilha, em busca do metal precioso que ele acreditava “nascer” em alguma fonte. No maravilhoso Mundo Novo, como Adão no Éden, o Colombo passou a dar nome a tudo o que encontrava: a primeira ilha encontrada pelo navegador era chamada pelos índios de Guanaani, Colombo chamou-a San Salvador, uma homenagem a “Sua Alta Magestade” que ele acreditava, “maravilhosamente”, ter lhe dado “tudo”. A segunda ilha ele renomeou “Santa Maria de Concepción”, depois vieram outras, Fernandina, Isabela, Joana... Na sua quarta e última viagem ao continente americano, em 1502, Cristóvão Colombo chegou a uma pequena ilha chamada pelos índios arauaques de Ionado, “ou lagarto”, no arquipélago das Antilhas. Colombo, na sua fúria nominativa, logo a batizou Ilha de Saint Lucía, inspirado, possivelmente, pelo fato de ser dia de Santa Lúcia, 18 de junho. Saint Lucía é a terra natal de Derek Walcott, escritor ganhador do prêmio Nobel de Literatura de 1992 e é, também, o espaço privilegiado onde se desenvolve o enredo da obra poética Omeros.
Walcott nasceu em 1930 na capital de Saint Lucía, Catries, e é descendente de negros e ingleses, o que lhe confere a condição de mestiço. O poeta empenha a sua lira em questões relacionadas à identidade e na sua obra encontram-se ecos de textos de outros escritores nascidos em ex-colônias britânicas. O crítico Sigrid Renaux, afirmou que o Walcott “escreve cônscio de si como indivíduo, mas também como arquétipo do homem transplantado para o Novo Mundo, universalizando assim as suas experiências pessoais”. Desde muito cedo Walcott se dedicou à poesia, ao teatro e às artes plásticas, tendo produzido grande parte das imagens que estão estampadas nas capas de seus livros. A obra Omeros recebeu, em 1992, uma versão para o teatro denominada “The Odyssey”. Omeros é um poema único, sem divisões, e de proporções épicas que funde o particular e o universal formando um canto atemporal. Ele é, também, um canto de descolonização e de resistência, especialmente por ter sido escrito em um tempo no qual os mitos perderam parte da sua força, especialmente o mito nacional. Walcott projetou em Omeros, por meio de personagens, variadas inquietações concernentes a sua condição de ocupante de um lugar cultural fronteiriço. Podemos dizer que o canto lírico em Omeros tira daí muito da sua potência, ele subverte as noções tradicionais de centro e periferia e busca reunir os fragmentos de um povo estilhaçado por séculos de exploração colonial e, posteriormente, capitalista, neoliberal e globalizada. Omeros retrata a vida simples dos pescadores de Saint Lucía na sua luta diária pela sobrevivência: “A aurora escoou pelos seus vales, o sangue se espalhou sobre os cedros, e o bosque inundou-se com a luz do sacrifício”.
Walcott lançou mão de mitos universais vindos das profundezas do inconsciente coletivo, regiões profundas da alma, onde os seres vibram em uníssono. Omeros é um poderoso canto poético que aproxima a Grécia, a Àfrica e o Caribe, e nele a busca pela identidade se dá por meio de um mergulho profundo nos costumes e nas tradições dos antepassados negros do Golfo de Guiné sem, contudo, ignorar a herança deixada pelo colonizador.
O poeta relatou que, por acaso, visitando o ateliê de uma amiga em Boston, viu um busto de Homero, essa visão inspirou-o a escrever Omeros. A ideia do navegante perdido, Ulisses, amplia o campo dialógico da obra, e variados recursos como a ironia, o trocadilho, e alusões e citações literárias, trazem palavras e imagens de outros textos para novos contextos, enriquecendo a produção poética. Walcott, em Omeros, dialoga com poetas como T. S. Eliot, Yats, Shakespeare, Whitman, e romancistas como Hemingway e James Joyce. O encontro entre os personagens Dennis Plunkett e Maud remete o leitor ao encontro entre Bloom e Molly, da obra Ulisses, de Joyce.
Em Omeros observa-se uma reunião de aspectos tradicionais da poesia narrativa, do gênero épico, e da prosa ficcional tendo como base o romance moderno. Técnicas como o flashback, do romance, e cortes característicos do cinema, conferem dinamismo ao enredo. O escritor adotou, também, recursos da poesia tradicional e estratégias vinculadas ao pós-modernismo como a mistura do real com o imaginário e o questionamento constante de si mesmo e da sua poesia. Dessa forma, ao adentrar os arcanos de Omeros, o leitor experimenta mudanças de ritmo na narrativa que encontram paralelo no ritmo visual dos filmes, possivelmente, essa habilidade do escritor provenha da sua experiência em adaptar e preparar roteiros para o cinema.
Como dissemos anteriormente a Ilha de Saint Lucía é um personagem importante da obra e o mar o seu pano de fundo. A colonização de Saint Lucía, assim como de outras ilhas das Antilhas foi, inicialmente, realizada pelos espanhóis, porém, estes logo perderam o interesse pelas Antilhas, seduzidos pelas riquezas encontradas no México e no Peru. As ilhas das Antilhas passaram, então, a ser disputadas pela Holanda, pela França e pela Inglaterra. A colonização francesa iniciou o processo de dizimação dos índios e do tráfico de escravos vindos da África. Porém, em 1782, a França perdeu a hegemonia na ilha após ser derrotada na “Batalha dos Santos”, episódio descrito em várias passagens do poema, Saint Lucía mudaria novamente de dono mais quatorze vezes, ficando sob o domínio da Grã-Bretanha em 1814. Em 1967 a Ilha se tornou Estado e, em 1979, Republica, porém, ainda associada ao Reino Unido e sujeita ao Governo-geral Inglês representado pela Rainha Elizabeth.
Os processos pelos quais passou Saint Lucia são descritos no poema Omeros: “Arvore! Você poderá ser uma canoa”. O poeta fala sobre o processo de quase dizimação total das florestas (assim como aconteceu e ainda acontece no Brasil), do “machado sem remorsos”, do caminhão de carroceria que carrega os “corpos das árvores atados por cordas”. Saint Lucía passou por vários ciclos econômicos: o da plantação de cana de açúcar para a produção de rum, a exploração das jazidas de enxofre, a pecuária, o coco e a pesca.
Omeros é um personagem do poema épico que possui vários nomes e assume, a partir de cada um deles, uma nova dimensão interpretativa: ele é o velho pescador cego Sete Mares, e um barqueiro desterrado. As metamorfoses do personagem Omeros e suas inter-relações, inesperadamente, transformam o mar das Antilhas no Mar Egeu, povoado por seres mitológicos. A obra traz outros personagens como Achilles, Heitor, Theophile, Philoctete, homem vivido que possui uma ferida aberta e dolorosa. Philoctete pergunta, no capitulo IV: “Vocês todos vêem como é estar sem raízes nesse mundo?”.
Os turistas “que só queriam bulinar as moças do lugar”, fotografam freneticamente os nativos de Saint Lucía, como se quisessem tirar, além das fotos, a suas almas. Os personagens brancos Dennis Punkett, conhecido como major, e sua esposa Maud, em meio aos descendentes de africanos, estão também em busca de uma identidade. Punkett é inglês e vive a nostalgia de um passado de glórias do Império Britânico, e Maud, “quietamente, esposamente” vive angustiada e solitária, mesmo tendo sempre a presença do marido ao lado. Ela passa os dias bordando, qual Penélope, tecendo “uma linda mortalha”. Ironicamente, a Irlanda de Maud foi subjugada pelo Império Britânico, o que confere uma outra dimensão aos diálogos e mágoas existentes entre o casal.
Dennis Punket foi ferido na cabeça durante a Segunda Guerra Mundial, ele mora na ilha e busca se integrar aos moradores nativos, porém, seu status é sempre diferenciado, ele tem a “aura de patrão”. Enquanto beberica uma cerveja no boteco da esquina, Punkett pensa: “Servimo-nos destas ilhas verdes como de azeitonas num pires, mastigadas até o caroço, que depois cuspimos num prato” e fantasia que Helen, é a Helena de Tróia em toda a sua majestade.
Helen, com sua “beleza de ébano” e seu vestido amarelo é o pomo de discórdia entre Achilles e Hector, inimizade que o velho Philoctete tentou desfazer, porém em vão. Helen trabalha na casa de Maud e comporta-se como se a casa “fosse dela”, Helen sentia-se “patroa”, e esse era o grande problema entre as duas. Observamos por meio desta, e de outras passagens do texto que o poeta aborda a questão dos lugares sociais, uma verdadeira dança das cadeiras entre colonizador e colonizado. De acordo com Paulo Vizioli, como mulato, Walcott nunca foi totalmente aceito pela sociedade branca anglo-saxônica da Inglaterra e dos EUA, e nem foi sempre compreendido pela comunidade negra, especialmente em função de sua postura moderada frente à questão racial.
Esse misto de poesia, romance, mito e roteiro de cinema singulariza a obra e exige do leitor momentos de paradas e reflexões, mas vale a leitura, pois Omeros trata de questões atuais como o desenraizamento do individuo contemporâneo, a destruição da natureza por ganância e ignorância, e questões identitárias.
Derek Walcott foi o convidado de honra do VIII Festival Internacional de Poesia de Granada, Nicarágua, realizado em fevereiro de 2012, ocasião que recebeu das mãos da autoridades locais as chaves da cidade de Granada. Pude acompanhar a sua palestra e observar na sua fala, nos seus gestos e olhar a calma e a sabedoria de um homem que utilizou a poesia como instrumento de resistência e que ainda tem muito a dizer.
A Companhia das Letras publicou a segunda edição da obra Omeros que possui 436 páginas e está subdividido em sete livros. A tradução do inglês para o português foi feita por Paulo Vizioli, critico literário e ganhador do prêmio Jabuti de 1994 pela tradução da obra de W. Blake. Vizioli faleceu em 1999.

Trechos de Omeros:

Meu canto foi sobre o tranqüilo Achilles, filho de Afolabe,
Que nunca subiu num elevador, que nunca
Teve passaporte, pois o horizonte não exige nenhum.

nunca pediu ou tomou emprestado, nunca foi garçom de ninguém,
um homem cujo fim, quando vier, será uma morte por água
(o que não é para este livro, que ele não conhecerá
nem haverá de ler). Cantarei o único morticínio
Que lhe trazia deleite, o dos peixes ─ e isso
por necessidade; cantarei os canais de suas costas ao sol.
Cantei nosso vasto país, o mar das Caraíbas
(Omeros, cap. LXIV)

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