Eduardo Giannetti da Fonseca nasceu
em Belo Horizonte. Formou-se em Economia e em Ciências Sociais pela
Universidade de São Paulo (USP) , onde por duas décadas foi professor da
Faculdade de Economia e Administração (FEA). PhD pela Universidade de
Cambridge, lá lecionou entre 1984 e 1987. Atualmente é professor do Insper São
Paulo. Em sua bibliografia destacam-se obras como Vícios privados, benefícios públicos?; Auto-engano; Felicidade; O mercado das crenças; O
valor do amanhã; O livro das citações
e A ilusão da alma, além de inúmeros
artigos para revistas científicas e a grande imprensa. Ganhador de dois prêmios
Jabuti nos anos 90, atualmente é um dos
conferencistas mais requisitados do país.
Ser mineiro tem algum significado especial para você? Poderia nos contar
um pouco sobre sua infância em Minas e as origens italianas de sua família?
Principalmente, nasci em Minas.
Cresci, porém, desde menino vivo em São Paulo. Considero-me mineiro, porque
venho de duas famílias com raízes profundas em Minas e porque o ambiente dentro de casa, nosso estilo de
convivência e modo de sentir e falar as coisas, era marcadamente mineiro.
Sempre considerei o espaço interno da casa de minha infância e juventude como
um pequeno enclave de mineiridade dentro da metrópole paulistana. Recordo aquela
“Prece do mineiro no Rio”, de Carlos Drummond: “Espírito de Minas, me visita, e
sobre a confusão desta cidade, onde voz e buzina se confundem, lança teu raio
ordenador.” O espírito de Minas lá em casa era especialmente a presença do meu
pai, Justo, um mineiro conversador e espirituoso, suave e austero, da velha
cepa, desses que, suspeito, já quase não existem mais. Quanto ao lado italiano,
descendo de um jovem casal de imigrantes, Pietro e Tereza, que vieram da zona
rural da Toscana para o Rio Grande do Sul tentar a vida no final do século
19. A mudança da família Giannetti, de
Rosário do Sul para Belo Horizonte, deu-se em 1913. O meu avô materno, Américo,
tornou-se político da UDN, em Minas, e morreu como prefeito de Belo Horizonte. Ele
foi um líder empresarial respeitado em seu tempo, um pioneiro da indústria do
alumínio no Brasil.
Quando aconteceu seu primeiro contato com o universo dos livros e que
autores mais o marcaram na infância e juventude?
A primeira emoção literária de
que me recordo foi ouvir A chave do
tamanho, de Monteiro Lobato, contada por minha mãe. Aquilo me pegou em
cheio, mergulhei na história como se estivesse vivendo intensamente aquilo
tudo. Porém, nunca fui de ler muito na infância e primeira juventude. Os meus pais
me incentivavam ao modo deles e, às vezes, reclamavam que eu lia pouco. Uma vez
meu pai ficou bravo comigo ao descobrir que eu nunca tinha lido Robinson Crusoé. Mas eu tinha preguiça.
A leitura me era fisicamente penosa, gostava mesmo era de revistas em quadrinhos
e seriados americanos na TV. O grande divisor de águas foi um curso de filosofia
que fiz no segundo colegial, no limiar de uma preguiçosa e tardia puberdade, no
qual fomos submetidos a uma dieta de leituras que incluía Kafka, Sartre, Camus,
Hesse e, principalmente, Dostoievski, com os Irmãos Karamazov. De algum modo, essa experiência de leitura na
fase da vida em que eu estava fez nascer em mim a vontade de habitar o mundo da
literatura e da reflexão. Eu já sabia, obscuramente a princípio, mas com
razoável clareza hoje, que aquele curso duraria para o resto da minha vida.
Nunca me recuperei dele.
A que se deveu a busca da dupla formação como sociólogo e economista?
Às vezes tenho me perguntado o
que me fez cursar economia e não seguir a minha paixão de estudo, que era a
filosofia. E creio que a resposta principal é: a razão prudencial. Temia fazer
filosofia e ficar desempregado, não ter como me sustentar, não conquistar a
muito desejada independência financeira. Além disso, eu sonhava com uma
pós-graduação no exterior e logo percebi que as chances seriam ínfimas se eu
optasse por filosofia, ao passo que a economia poderia abrir essa porta, o que
acabou acontecendo. Outra coisa que pesou foi uma professora de história no
colegial, dona Zilda, figura marcante em minha formação, que sempre insistia em
dizer que a economia era “a base de tudo”, que não dava para entender a
história e a cultura sem conhecer a estrutura econômica da sociedade, o modo
como se trabalhava, produzia e consumia. O curso de economia, contudo,
revelou-se uma decepção. Acabei me interessando pelo marxismo, a religião de
minha juventude, e pelo movimento estudantil de oposição à ditadura – daí a
opção pela sociologia, onde as coisas que me interessavam estavam acontecendo.
Como aluno de Ciências Sociais, na USP, pude cursar algumas cadeiras optativas na filosofia,
e tive a sorte de ser aluno de um brilhante professor francês, então radicado
no Brasil, Gerard Lebrun. Suas aulas eram verdadeiros espetáculos de erudição,
paixão pelo conhecimento e vigor argumentativo. Foi o professor mais
impressionante que vi em ação até hoje.
É possível apontar diferenças significativas entre o exercício docente
no Brasil e fora dele?
A principal diferença me parece
ser a postura de professores e alunos em relação às aulas e ao que significa
fazer um curso superior. O aluno brasileiro, com raras exceções, faz a
faculdade como se fosse a continuação do ensino médio. Ele acredita que vai
aprender tudo o que precisa em sala de aula, que a obrigação do professor é dar
a matéria que está no livro-texto e que se ele reproduzir direitinho nas provas
o que foi visto em aula e consta do manual, então ele passa de ano e tudo estará
resolvido, a missão cumprida. O que prevalece é uma ritualização do aprendizado.
O aluno não sai em busca do conhecimento, não vai à biblioteca, mas espera
receber a matéria mastigadinha em aula, na colher do professor. E o sistema educacional
preenche essa expectativa. O único problema é que isso não tem nada a ver com
uma genuína formação superior. O estudante brasileiro, como já observara o
físico Richard Feynman em sua passagem pelo Brasil nos anos 50, é imbatível
quando se trata de memorizar e repetir nos exames o material contido nos
manuais didáticos. Mas se você pedir a ele algo que o obrigue a pensar por
conta própria, algo que fuja das fórmulas e definições decoradas, ele fica
completamente perdido, não é capaz de dar um passo com as próprias pernas. No
fundo, há um acordo tácito, uma acomodação confortável para todos, em prejuízo
de uma real formação universitária. Uns fingem que aprendem, outros fingem que
ensinam – e termina tudo em diploma. Eu sempre digo aos meus alunos que prefiro
uma resposta errada, mas que tenha partido de um ato de pensamento genuíno por
parte deles, a uma resposta certa, mas que não passa da reprodução mecânica e
ritual do que foi dado em aula ou decorado do manual.
Concorda com a idéia de que parte significativa das instituições
privadas de ensino superior no país são verdadeiros consórcios de diplomas,
dirigidas por empresários descomprometidos com a educação?
Muito do que se passa como ensino
superior no Brasil – e não só em instituições privadas, mas também em boa parte
das universidades estatais, por exemplo, em cursos noturnos – não teria a menor
condição de legitimar-se como tal num país onde a educação é levada à sério. Há
uma tremenda inflação de títulos e diplomas no Brasil, com papéis sem nenhum
lastro. É um pouco o que acontece com as nossas estatísticas de analfabetismo
que, tenho certeza, estão longe de refletir a real extensão dessa realidade em
nosso país. O Brasil tem hoje uma proporção de jovens matriculados em ensino
superior equivalente à dos Estados Unidos no final do século 19. Mas se a
qualidade do ensino e o real aprendizado fossem de algum modo levados em conta,
suspeito que ficaríamos ainda pior na foto. A proliferação de diplomas e
credenciais não quer dizer absolutamente nada.
Que caminhos podemos seguir para o resgate de um ensino público
fundamental e médio de qualidade?
Alguns anos atrás, participei de um simpósio,
com outros especialistas, em que nos foi proposta a seguinte questão: “Caso
fosse eleito Presidente da República, quais as cinco grandes ações/iniciativas
transformacionais que tomaria para efetivamente resolver o problema da
qualidade do Ensino Público Básico, para que o país possa atingir os níveis educacionais
dos países desenvolvidos até o ano de 2022?” Eis o que respondi:
1) implantação de um Exame Nacional Unificado
para a obtenção do grau correspondente ao ensino fundamental completo. A prova
seria aplicada a todos os alunos egressos das escolas públicas e privadas, na
metade e no final do ciclo básico, e somente os aprovados na segunda prova
obteriam o certificado de conclusão do ensino fundamental. Ampla publicidade
dos resultados por escola;
2) programa de valorização dos professores da
rede pública de ensino básico. Política de carreiras com promoção por mérito,
baseada em avaliação feita por quem acompanha o trabalho dos professores;
progressivo aumento do piso salarial; programas de formação e reciclagem
permanente; concursos para ingresso na carreira que incluam, além dos testes
acadêmicos de praxe, uma avaliação da aptidão pedagógica e da experiência em
sala de aula; política de redução da rotatividade dos professores;
3) maior autonomia das escolas públicas nas
decisões sobre alocação de recursos, grade curricular, contratação de
funcionários, procedimentos escolares e atribuição de tarefas e
responsabilidades aos professores. As escolas cujos alunos alcançam índices
positivos e crescentes de aprovação no Exame Nacional Unificado seriam recompensadas,
ao passo que aquelas com elevada ou crescente proporção de alunos reprovados
passariam por um processo de análise criterioso, visando apurar as causas desse
resultado e a correção das deficiências verificadas;
4) ampliação da margem de escolha das famílias
na seleção da escola que seus filhos irão frequentar. Adoção de um programa de voucher
ou vale-educação, que viabilize o acesso de crianças e jovens oriundas de
famílias de menor renda a escolas particulares de qualidade, por meio do
financiamento total ou parcial do custo da mensalidade. Ampla publicidade dos
resultados do exame para a obtenção do grau de ensino fundamental completo,
visando estimular a competição saudável entre as escolas para atrair os melhores
alunos;
5) programa de ampliação da cobertura da rede
de creches e universalização do acesso à pré-escola. Política pró-ativa de
redução e prevenção da gravidez precoce e de apoio às crianças vivendo em
famílias de baixa renda, chefiadas por mulheres. Aumentar a prontidão das
crianças nascidas em famílias desestruturadas, visando reduzir as taxas de
reprovação e evasão escolar nos primeiros anos do ensino fundamental.
Como avalia sua colaboração na campanha da ex-senadora Maria Silva à
presidência da República em 2010 e 2014?
Desde que retornei da Inglaterra,
em 1987, passei a debater questões da vida pública brasileira, mas sempre
evitei o engajamento político-partidário e busquei preservar a máxima
neutralidade e independência diante dos embates eleitorais. Levei isso a tal
ponto que passei a manter o meu voto em absoluto sigilo, não obstante a
repetida pressão de jornalistas para que eu declarasse minhas preferências. Buscava
encarar as coisas da política com o mesmo distanciamento que um astrônomo diante
dos corpos celestes ou um botânico na floresta. A candidatura de Marina Silva à
presidência, em 2010, me animou a mudar de atitude. Uma liderança desse
quilate, baseada na força do compromisso ético e na fé na capacidade humana de
superar obstáculos, é um evento raro em qualquer tempo ou nação. Ainda por cima
num país como o nosso, com seu extraordinário patrimônio ambiental e uma
responsabilidade verdadeiramente planetária nesse quesito. Arregacei as mangas e me coloquei à
disposição da campanha para colaborar naquilo que fosse possível. Aprendi muito
e sinto-me privilegiado por ter dado minha contribuição na construção de uma
liderança que será fundamental para o Brasil no século 21. Marina saiu das
campanhas maior do que entrou. Creio que ela ainda terá um papel de enorme relevo
na política brasileira. O exemplo de Marina me faz ter vontade de repetir o que
Carlos Drummond disse uma vez sobre Milton Campos: “Ele é o político que a
gente gostaria de ter sido”.
Se, por um lado, as buscas de regimes políticos mais igualitários
naufragaram em várias partes do mundo com as experiências socialistas, o
capitalismo ainda mantém na indigência imenso contingente humano. Que caminhos
percorrer contra tal realidade?
Prefiro discutir problemas em vez
de recorrer a conceitos nebulosos e saturados de mal-entendidos como
“capitalismo” e “socialismo”. Se alguém falar de economia de mercado ou de planejamento
central saberei exatamente o que está sendo dito. Mas se disser que “o
capitalismo ainda mantém na indigência imenso contingente humano”, realmente
não sei do que se trata. Faz sentido usar o mesmo termo para se referir ao
sistema econômico vigente na Europa desde o século 17 até hoje? Já é mais que
tempo de aposentar a mobília conceitual herdada da auto-estrada dos modos de
produção inventada pelo marxismo. A desigualdade e a privação material são
problemas seríssimos, mas culpar o capitalismo não avança um milímetro a
discussão. Por que há mais miséria na Índia do que no Canadá? Será porque a
Índia é “mais capitalista” que o Canadá? Mesmo a questão da desigualdade
precisa ser qualificada: igualdade do quê?
O meu lema é: “a igualdade de resultados oprime, a igualdade de oportunidades
liberta”. É injusto impor a igualdade na chegada, independente do esforço e do
mérito, até porque felizmente nem todos dão o mesmo valor ao sucesso
financeiro. Mas é ainda mais injusto não garantir um mínimo de igualdade na
partida, de modo que muitos começam já derrotados, independente do esforço e do
mérito que possam demonstrar. O que deve ser perseguido é a máxima equalização
nas dotações iniciais, especialmente
no que diz respeito a condições de saúde e acesso a oportunidades de se educar
e desenvolver capacitações. O economista inglês Alfred Marshall falava do drama
do “Shakespeare analfabeto”, o sujeito que teria sido um gênio literário se
tivesse tido a chance de se alfabetizar. Imagine o que não há de situações
parecidas, em todas as esferas de realização humana, num país absurdamente desigual
como o nosso?
Em que sentido um de seus livros mais recentes, A ilusão da alma, pode ser visto no conjunto de sua obra?
Se alguém se desse ao trabalho de
olhar, perceberia uma clara afinidade de temas e inquietações percorrendo os
meus livros. O problema da relação mente-cérebro tem sido uma nota constante em
praticamente tudo que escrevi. Às vezes chego a me surpreender quando constato
como certas preocupações e possibilidades estavam já despontando em livros mais
antigos, mas só vieram à tona tempos depois. O embrião de Auto-engano, por exemplo, está no prefácio de Vícios privados, benefícios públicos?, embora na época eu não
estivesse ciente do que faria anos depois. No caso de A ilusão da alma, a inquietação em torno da relação mente-cérebro e
do fantasma do fisicalismo – que tipo de ser, afinal, é o bicho-homem? –
percorre um fio contínuo que veio se tecendo desde O mercado das crenças, um
livro pesadamente acadêmico e que foi publicado originalmente na Inglaterra em
1991, mas que só saiu traduzido no Brasil em 2003. Em Felicidade, por exemplo, há um diálogo inteiro sobre a conjectura
de uma “pílula da felicidade instantânea”. E por aí vai. Imagino que todo autor
carrega suas obsessões. Eu também tenho as minhas.
Acredita que o ser humano sempre tenha vivido num autoengano cósmico?
A conjectura do autoengano
cósmico, no contexto de uma discussão da relação mente-cérebro, aparece já em Auto-engano: “O avanço do saber científico
no autoconhecimento humano poderá revelar que muito – ou, no limite, a
totalidade – do que imaginamos estar
fazendo por vontade e iniciativas próprias em nossas vidas está, na
verdade, sendo feito em nós pelo
funcionamento autonômico do sistema nervoso e por uma sucessão de configurações
físico-neurológicas em nossos cérebros” (capítulo 2, item 3). A ilusão da alma radicaliza e explora essa
ideia: a desmontagem da fantasia de consciência que nos induz a exercitar a
mentira de passear quando, na verdade, passeados somos pelo passeio (vide o
belíssimo poema “A suposta existência” de Carlos Drummond). O livro acolhe o
desafio proposto pelo poeta norte-americano Wallace Stevens na “Estética do
mal”: “O aventureiro entre os humanos não concebeu ainda a possibilidade de uma
raça inteiramente física em um mundo físico”. O credo fisicalista, no entanto, agride de tal
modo tudo aquilo que sentimos e estamos habituados a crer sobre nós mesmos que
não há como internalizá-lo e enraizá-lo em nossa autocompreensão. Seria como
pedir a um Neandertal que acredite na chegada do homem na Lua ou na tabela
periódica. A noção de um eu-unificado fica seriamente abalada pelo fisicalismo:
o cérebro é um agregado de peças e órgãos funcionando de modo assincrônico, e
não há nenhum eu-soberano em seu trono, no palácio da mente, supervisionando e
ditando decretos, alvarás e ordens régias. Podemos, em suma, estar tão
equivocados sobre nós mesmos – imersos na mais espessa névoa de enganos,
ilusões e fábulas sobre o que nos faz quem somos e agir como agimos – como,
digamos, o ianomâmi amazônico ou o aborígine australiano nos parecem
equivocados acerca do relâmpago, do arco-íris e do trovão.
José Saramago costumava dizer que Deus é uma criação humana. No
entanto, a idéia de transcendência tem sido objeto de freqüentes pesquisas
científicas. Julga possível equacionarmos todas as questões humanas apenas no âmbito material?
A questão é até onde o método
científico pode nos levar. Para os pioneiros da ciência moderna, o avanço do
conhecimento tornaria o universo cada vez transparente e inteligível aos olhos da
humanidade. Mas, em vez de banir o mistério do mundo, o progresso da ciência
tem feito exatamente o oposto: deixa-o cada vez mais misterioso, opaco e
inexplicável. Se o fisicalismo for provado, por exemplo, isso em nada diminui o
mistério da condição humana. Ao contrário, o absurdo e o mistério só fazem
crescer. A ciência revelou-se uma máquina imbatível na destruição de ilusões,
fantasias e causas imaginárias; mas ela também foi solapando, uma a uma, todas
as possibilidades de conferir sentido ao universo e à nossa frágil e efêmera
existência como seres individuais e como espécie. A ciência destrói qualquer
possibilidade de sentido, mas não põe nada no lugar. Ela ilumina, mas não
sacia. É preciso lembrar, porém, que todo
o nosso conhecimento é por definição finito, ao passo que a nossa ignorância é
inescapavelmente infinita. Mesmo assim, cabe a pergunta: quanta verdade suporta o espírito humano? Suspeito que
não muita. Como reconhece o heterônimo de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, “O
olhar da Verdade Final não deve poder suportar-se! [...] A razão de haver ser,
a razão de haver seres, de haver tudo, deve trazer uma loucura maior que os
espaços entre as almas e entre as estrelas. Não, não, a verdade não!” O remédio
mais popular para anestesiar essa angústia demasiado humana é o aconchego dos credos religiosos.
Numa entrevista que concedeu ao programa Sempre um Papo,da TV Câmara, você
fez menção ao livro A vida dos
animais, de J.M.Coetzee, como uma
das obras que mais o marcaram nos últimos tempos. Já não é chegada a hora de
abolirmos os abusos que historicamente temos praticado contra os animais e da
instauração de uma ética em relação a eles?
Quanto olhamos para o passado,
percebemos práticas que nos parecem aberrantes e moralmente inaceitáveis, mas
que eram toleradas e perfeitamente legais aos olhos de nossos antepassados. É o
caso da escravidão, da punição física de crianças nas escolas, da prisão por
homossexualismo, entre tantos outros exemplos. A pergunta que temos de nos
fazer é: pelo que as gerações futuras nos condenarão de um ponto de vista
ético? Estou seguro de que o modo como tratamos os animais criados para a
indústria alimentar será uma das grandes aberrações morais aos olhos de nossos
descendentes. “Como podiam tolerar tamanha crueldade, tão monstruoso abuso de
seres vivos e dotados de sensibilidade?”, é o que eles perguntarão sobre nós,
incrédulos de que tal coisa pudesse ter existido e se prolongado por tantos
séculos. O livro de Coetzee é uma pequena obra-prima. Ele faz um trabalho primoroso
de sensibilização ética por meio de uma narrativa ficcional – o mais afiado que
conheço em relação a esse tema.
Concorda com Adorno, para quem “nada é verdadeiro em psicanálise,
exceto os exageros”, citação presente n’O
livro das citações?
Como a minha mãe é entusiasta da
psicanálise e foi também psicanalista, hoje aposentada, tive um contato intenso
com as ideias de Freud e seus seguidores desde a juventude. Acho divertida a
boutade de Adorno, por isso a inclui nas Citações.
O que acho difícil engolir é a ideia de que Freud “descobriu o inconsciente”,
como ele tantas vezes alegou, chegando ao ponto de se colocar em linha direta
com Copérnico e Darwin, como responsável pela terceira grande “ferida
narcísica” na história da humanidade. Santa pretensão! Seria difícil rivalizar
o narcisismo dessa genealogia. Como se Leibniz, Schopenhauer e Nietzsche, para
não falar nos iluministas escoceses, jamais tivessem existido! Em Auto-engano, tomei o cuidado de evitar
cuidadosamente o jargão psicanalítico, a começar pelo termo inconsciente, na tentativa de evitar os
mal-entendidos que assombram essas expressões. Impus-me a disciplina de dizer
tudo que tinha a dizer da forma mais clara e cristalina de que sou capaz,
sempre ilustrando as ideias gerais com exemplos da natureza, da literatura e da
vida prática. “A filosofia é uma batalha contra o enfeitiçamento da
inteligência pela linguagem”.
Como pensador da condição humana que possibilidades aponta para um
mundo mais fraterno onde o
individualismo esteja menos presente?
Não tenho vocação para profecias,
mas por tudo que sei e observo ao meu redor duvido que possamos contar com
alguma forma de transformação ou regeneração moral da humanidade no futuro. Os
séculos se desenrolam e a natureza humana permanece a mesma. A mudança em nosso
modo de vida, se e quando vier, não será produzida por
lideranças iluminadas ou por um processo de aperfeiçoamento ético baseado em
educação e exortação. A mudança, creio, virá de fora para dentro, por conta dos
limites que a biosfera impõe à corrida armamentista do consumo em escala planetária,
alimentada pela ganância e pela voracidade desenfreada do animal humano. A
humanidade parece-me viver atualmente na condição de um fumante inveterado que
recebeu um diagnóstico de enfisema pulmonar, mas insiste em persistir no vício.
Onde vai dar tudo isso? Há quem acredite que a inovação tecnológica dará conta
do recado – certamente não me incluo entre eles. Ou a mudança virá por bem, de
forma preventiva, e temos o dever de buscar esse caminho; ou ela virá por mal,
de forma impositiva, por meio do trauma, e com o provável sacrifício de liberdades
às quais estamos acostumados. Torço e me empenho pelo primeiro caminho, mas
como analista e observador frio da realidade temo que o segundo seja o mais
provável.
Novos projetos literários em pauta? A filosofia continuará sendo sua
principal matéria-prima?
Não tenho nada definido, apenas o vislumbre de
possibilidades. Pretendo dedicar-me cada vez mais à literatura, trabalhar no
apuro da forma e da linguagem, mas sem me prender às divisões convencionais
entre gêneros, disciplinas ou escolas. Por que resignar-se a essas amarras –
ficção ou não-ficção, popular ou erudito, prosa ou poesia? O importante é ter algo a dizer, algo que se torna
imperioso compartilhar, e não poupar esforços para dizê-lo tão bem e tão belo
quanto se é capaz. É pensar por conta própria e ter a coragem de correr riscos.
Quero conquistar uma liberdade que me escapa – na vida e na obra. É isso que me
faz sentir vivo.
Angelo Mendes Corrêa é mestre em Literatura Brasileira
pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista.
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