I CONACSO - Congresso Nacional de Ciências Sociais: desafios
da inserção em contextos contemporâneos. 23 a 25 de setembro de 2015, UFES,
Vitória-ES.
"Tinha
uma pedra no meio do caminho": Oficinas de Poesia em CTs Capixabas
Dra. Renata Bomfim – Faculdade Saberes
Resumo:
Entre agosto de
2014 e abril de 2015 integramos a equipe do Projeto Terapêutico e Social do
Centro de Acolhimento para Pessoas com Dependência Química do ES. Nesse
trabalho nos deparamos com o desafio de desenvolver um plano de Atividades
Lúdicas Terapêuticas (ALT) junto a dezesseis comunidades terapêuticas (CTs)
credenciadas pelo Governo do Estado. Lançamos um olhar sobre alguns textos
poéticos produzidos durante essa experiência, refletindo sobre a importância da
inserção das práticas de leitura e de escrita de poesia (e outros gêneros) nas
grades de atividades das CTs. Nossa
inserção nesse serviço tinha como objetivo criar condições para que o Outro,
enquanto alteridade, falasse e que a sua voz fosse ouvida. Refletimos sobre essa
experiência tendo como aportes teóricos basilares a Teoria Pós-colonial, a
Teoria da linguagem segundo Bakhtin e contribuições de pensadores como Michael
Foucault, Jacques Rancière, Marcuse, Boaventura de Sousa Santos e Alfredo Bosi.
As oficinas de poesia nas CTs trouxeram à cena questões sociais relevantes no
âmbito dos Direitos Humanos, ratificando a proposição de Marcuse, para quem a
arte, na sua autonomia perante as questões sociais, é capaz de romper com a
consciência dominante, revolucionando, dessa forma, a experiência.
Palavras-chave: Poesia; Oficinas
terapêuticas; Comunidades terapêuticas.
RESUMO EXPANDIDO
As reflexões
apresentadas resultam de uma experiência vivenciada entre os meses de agosto de
2014 e abril de 2015, quando integramos a equipe do Projeto Terapêutico e
Social do Centro de Acolhimento para Pessoas com Dependência Química do
Espírito Santo, mais conhecido como Rede Abraço. A inserção de uma artista
plástica e poeta em uma equipe multiprofissional, por si, já pressupõe um
desafio. Assumimos esse lugar com o pensamento alinhado com os valores pós-coloniais, considerando que as
identidades sociais e políticas são construídas através de relações de
alteridade, e consciente das dificuldades que poderiam surgir, mas,
com o compromisso de sermos agentes de cuidado, contribuindo para com o bem
estar das pessoas que estivessem se tratando, pois, além de lidarem com
problemas profundos como a desassistência, o abandono, traumas e sofrimentos
psíquicos que culminaram com o uso abusivo e destrutivo de substâncias
psicoativas, sofrem com preconceitos e são estigmatizadas. Nossa ação teve como
bases o não julgamento moral dos participantes das oficinas, mas o diálogo a
partir do convite para que entrasse na dimensão estética da arte, lugar
privilegiado de revalorização da subjetividade. O pensador Herbert Marcuse, na
obra A Dimensão Estética (1999)
destaca que “o amor, o ódio, a alegria e a tristeza, a esperança e o
desespero”, embora sejam relegados para os campos da psicologia, “em termos de
economia política” não possam ser consideradas “forças de produção”, são
inegavelmente elementos decisivos e constituem a realidade de cada pessoa
humana. A arte é uma articuladora de humanidades concretas, transcendendo as
determinações sociais por meio de seu caráter emancipatório e da invocação de
imagens e necessidades de libertação que faz, e que penetram na profunda
dimensão da existência humana.
Buscamos
saber o que vinha sendo realizado por CTs de outros Estados brasileiros com referência
às atividades lúdicas terapêuticas (ALT) e observamos um silêncio ruidoso: as
instituições não expõem seus planos terapêuticos abertamente, é algo fechado,
“coisa da casa”. Dessa maneira, resolvemos idealizar um plano de ações
articuladas e experimentá-las, com vista a serem implantadas nas CTs capixabas. O
trabalho que propusemos realizar no CAPDQ abarcou a estruturação e orientação
de ações e projetos culturais, artísticos e educacionais para os acolhidos e de
variadas oficinas terapêuticas e de geração de renda nas CTs. Frente a
questão complexa das drogas, que ao nosso ver deve ser tratada como hábito
cultural, propusemos intervenções plásticas, poéticas e literárias nas CTs por
seu poder transformador e dialógico e pela ludicidade que facilita a ampliação
das capacidades internas da pessoa para enfrentar as situações plurais que a
vida apresenta. Uma breve visada histórica permite ver que o uso de substâncias
psicoativas (SPAs) se perde no tempo, essa é, também, uma prática que responde
a diversos interesses e motivações. O uso das substâncias psicoativas sempre
variou de acordo com a cultura, a religiões, a concepção de medicina e cuidado,
de prazer, entretanto, a concepção de dependência química emergiu na
modernidade, assim como a noção de “vício” que se vincula, irremediavelmente,
ao mal estar da civilização contemporânea. Portanto, o campo da dependência
química se afirma como um território de pesquisa que demanda ações compartilhadas,
geradas a partir de variados campos do saber humano. As intervenções realizadas
abarcaram “Rodas de leitura reflexivas”, “Saraus, Varais de Poesia” e a estruturação
de Bibliotecas e Pontos de Leitura nas CTs. Serviu-nos como aporte para essas
intervenções a Teoria Pós-colonial, especialmente o pensamento de Boaventura de
Souza Santos, que fala sobre o desperdício das experiências pela “Razão indolente”:
os acolhidos não eram tábula rasa, eram pessoas com vivências e detentoras de saberes
que precisavam ser valorizados e respeitados. Tomamos como metodologia a teoria
da Linguagem de Mikhail Bakhtin, especialmente os conceitos de dialogismo e
polifonia, e o conceito de “Sul” de Boaventura, que se complementa com o de
“Norte” capitalista. Trabalhar com narrativas no campo terapêutico pressupõe a
possibilidade de fazer valer a dimensão da autoria e da autonomia. A narrativa
é um caminho para o conhecimento de si e do mundo, e o texto poético abarca
múltiplas vozes podendo tornar-se uma estratégia de combate aos discursos
autoritários e sectários. A leitura e a escrita poética facilitam a ampliação
da capacidade comunicativa das pessoas, favorecendo a inserção no espaço em que
vivem, tornando-as mais participativas, críticas, questionadoras, ampliando as
suas possibilidades de aprendizagem. A inserção das práticas de leitura e de
escrita de poesia nas grades de atividades das CTs encontrou variados tipos de
resistência, mas grande aceitação entre os “acolhidos”. A produção poética foi
profícua e revelou a sensibilidade de pessoas que tem algo a dizer e que
necessitam serem ouvidas. Observemos o fragmento do poema “Eu vejo flores
também”, escrito por (J.C), jovem de 25 anos: “Todas as perdas não foram capazes
de deter a potente liberdade que emana/ do mais profundo e nobre do meu eu./ Não
estou só nessa nova jornada onde o recomeço é tarefa árdua diária. / Além
dos transtornos e abismos, posso colher belas e variadas flores no caminho.” O
trabalho descrito durou apenas seis meses, entretanto, os resultados alcançados
apontam para a sua efetividade no que diz respeito à produção de saber, ele
aponta a possibilidade de coexistência de variados discursos e não apenas o
religioso ou do da Lei. Esse projeto despertou em muitos jovens o desejo pela
leitura, pela escrita, pelo estudo e ajudou a unir o grupo como observamos na
fala de um acolhido: “muita gente não costuma ler, eu não lia e, enfim, muitos
tinham desistido da literatura, talvez por conta do vício, a gente fica largado
no vício a gente se esquece de muita coisa, se esquece da gente mesmo e
esquecer da literatura é esquecer de nós mesmos”. Essa comunicação trata dessa
experiência pessoal nesse serviço que e trouxe à cena questões sociais
relevantes no âmbito dos Direitos Humanos. Os discursos enunciados pelos
acolhidos revelaram o seu potencial criativo e de resistência, o desejo pela
superação da dependência (ou não) e por encontrarem um lugar social possível,
digno, livre dos estigmas e preconceitos de religião, gênero, classes, etc.,
que são, como diz o fragmento do poema de Carlos Drummond de Andrade, ‘uma
pedra no meio do caminho”.
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