Amigos, realizei esta entrevista, em 2010, com a profª Drª Ana Luisa Vilela, do Departamento de Linguística e Literatura da Universidade de Évora/ Portugal. Deixo registrado o meu agradecimento a Ana Luisa pela prontidão com que aceitou o meu convite e pela gentileza que permeou todo o processo. Vale a pena relembrar.
1- Como a Sra. avalia o cenário e perspectivas do ensino de literatura (mestrado e doutorado) em Portugal?
1- Como a Sra. avalia o cenário e perspectivas do ensino de literatura (mestrado e doutorado) em Portugal?
Estou sinceramente animada, Renata: há muita gente apaixonada por Literatura, com vontade de a estudar mais profundamente, de ler mais e melhor. Muitos dos alunos de mestrado são professores de Português do ensino secundário (no Brasil, ensino médio); mas outros vêm de outras áreas, talvez procurando na Literatura um complemento da sua formação, um domínio que lhes falta… Nas universidades públicas portuguesas, os cursos de mestrado são em maior número, já, do que os cursos de licenciatura! Por um lado, não são excessivamente caros, nem longos. Por outro lado, como as licenciaturas em Portugal, conformes à célebre “Declaração de Bolonha”, são agora todas de 3 anos (e não de 4 ou 5 anos, como eram dantes), os mestrados vulgarizaram-se. E como o desemprego também grassa por aqui, continuar os estudos é uma opção de cada vez mais recém-licenciados… O número de inscrições em cursos de doutoramento também tem, evidentemente, aumentado. Mas ainda é substancialmente menor do que o dos mestrados.
2- Quais as linhas de pesquisa que tem se destacado e quais os diálogos que os estudos literários tem ensaiado e/ou consolidado com outros campos do saber?
É engraçado você perguntar-me isso, Renata, justamente quando acabo de chegar de um congresso de da Associação Internacional de Literatura Comparada (em Seul, na Coreia do Sul), que teve como tema “Expandindo as fronteiras da Literatura Comparada”!... A LC sempre foi provavelmente o campo mais vasto e mais deliberadamente interdisciplinar dos estudos literários. Imagine quando se pede a investigadores de todo o mundo que reflitam sobre como “expandir” esses limites tão amplos e tão flexíveis!...
Bem, a nível global, teremos mesmo de apontar a inevitável miscigenação (ou fertilização) da Literatura com os Estudos Culturais, os estudos sobre literaturas ditas “minoritárias”, os Estudos de Tradução; em complemento à globalização, ganham preponderância a redescoberta e a revalorização das culturas e literturas dos países emergentes, assim como as das questões ambientais, da Natureza e da tecnologia, da raça, género, etnia, cultura, identidade e alteridade, ideologia, ensino, religião, conflitos e sua mediação… Cruzemos ainda a velhinha noção de Literatura com a chamada “Idade Hipertextual” – e temos um quadro estonteante de perspetivas e diálogos!
3- A Sra é pesquisadora da poesia dos séculos XIX, XX e da poesia contemporânea. Quais poetas a Sra destacaria em cada um destes períodos e por quê?
Os maiores, canónicos e mais justamente lidos: Cesário Verde, Camilo Pessanha, António Nobre, Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner, Eugénio de Andrade, António Ramos Rosa.
Os que merecem ser mais lidos: João de Deus, António Feijó, Gonçalves Crespo, Eugénio de Castro, José Régio, Albano Martins.
4- Quais aspectos da obra de Eça de Queiroz estão sendo pesquisados pela Sra?
Bem, ando às voltas com a edição crítica d’O Mistério da Estrada de Sintra. Recentemente, tive de estudar mais a sério a vertente “político-ideológica” do Eça e fiquei assombrada. Mas aquilo que mais me atrai, ainda, e sempre, é a forma misteriosa como Eça representa e como magicamente provoca no leitor a sensação “física” do real: a hipotipose. Palavra estranha (parece nome de doença!) mas que designa uma coisa que todo o leitor do Eça reconhece nos seus textos – a impressão que eles dão de serem “realidade viva”. Esse é para mim o mais fascinante traço da escrita queirosiana.
5- Como a Sra avalia a recepção da obra de Florbela Espanca hoje, e o que destacaria como sendo seu legado à poesia produzida por poetas que a sucederam?
A recepção de Florbela é um grande desafio para a crítica académica: continua pujante; é impossível ignorá-la; Florbela é uma escritora hiperpopular; mesmo que o público nada mais conheça dela, conhece-lhe o nome, a pose, a lenda. Essa popularidade de “star” terá feito dela, postumamente, um poeta “de massas”. Irá essa popularidade canonizá-la? Não sei. Sei que ela talvez exija que Florbela ocupe um lugar maior no cânone – mesmo concedido de má vontade, com escrúpulos académicos e teóricos, com dúvidas, com desconforto…
É difícil avaliar o “legado” de Florbela: ela não terá sido propriamente uma precursora, sobretudo a nível técnico-formal. Tematicamente, inovou, sim: com o seu pendor narcísico, um erotismo por vezes escancarado e vulcânico, por vezes místico e sublimado, uma sentimentalidade torrencial, um culto do excesso. Quem “influenciou”? Diria que nenhum autor; mas todos os leitores, sim. Todos aqueles que a leram aos quinze anos. A energia terrível da adolescência está lá toda, nos versos dela, e nós amamo-la por isso. Nunca nos “curamos” de Florbela: ela é, exatamente, incurável. Como nós.
6- Professora, no Brasil, imagino que também em Portugal, existe uma profusão de estudos acerca da obra de poetas como Fernando Pessoa, Camões, Saramago, Eça de Queiroz, escritores estabelecidos pelo cânone. Em sua opinião há ainda algum escritor dos séculos XIX e/ou XX que tenha sua obra pouco estudada e mereça maior atenção por parte dos pesquisadores?
Renata, não é fácil escolher, porque, feliz ou infelizmente, há muitos bons escritores que valeria a pena estudar mais. Mas mesmo assim arrisco dois nomes (além do de Florbela!) – e um é do século XVIII, desculpe:
- Matias Aires (1705-1763), aliás luso-brasileiro, ensaísta brilhante e teorizador sobre a vaidade, as mulheres e o amor;
- e Raul de Carvalho (1920-1984), poeta alentejano que eu, ignorante, só descobri há pouco tempo, e na obra do qual - em versos por vezes fulgurantes, por vezes banais – há uma quase sempre uma poderosa “energia expressiva”, parecida até certo ponto com a da também alentejana Florbela.
ANA LUÍSA VILELA
Professora de Literatura Portuguesa na Universidade de Évora. Ensina e investiga nos domínios da Literatura Portuguesa dos séculos XIX e XX (sobretudo Eça de Queirós, Florbela, Torga, Sophia, Agustina) e da Literatura Comparada (Literatura e Arte, Imagologia e Estudos sobre o Imaginário).
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