A mitologia grega registra variados casos nos quais o ser humano cometeu excessos, exagerou, violando o limite que lhe foi imposto pelos deuses, o metron. Esse pecado, sempre punido exemplarmente pelos deuses ou pelo destino, denomina-se hybris. O destino, representado pela Parcas (Clóto, Laquésis e Átropos) designava o quinhão a que cada homem teria direito, o seu lote de felicidade e/ou de desgraça, de vida e de morte. Entretanto, o orgulho, a arrogância, a paixão desmedida, davam origem a nêmesis, ciúme divino, e sobre o herói recaía a cegueira da razão.
Acteon incorreu na hybris quando observou, escondido, a deusa Diana banhara-se nua sob o luar. A deusa transformou o ousado caçador num corvo e fez com que ele fosse devorado pelos próprios cães. Aracne, exímia tecelã, desafiou Atena para uma competição acreditando que teceria mais rápido e com maior destreza que a deusa. Vencida, a ninfa foi transformada em aranha e condenada a tecer pelo resto de sua existência. Entre os inúmeros casos de hybris na mitologia destaca-se o de uma jovem que se orgulhava imensamente de sua beleza, seu nome era Medusa. Esta julgou-se mais bela que a deusa Atena e foi severamente castigada, a deusa transformou-a num ser horripilante: fez com que seu maior orgulho, seus cabelos, se transformassem em serpentes, e com que o seu olhar petrificasse aquele que ousasse fitá-la.
Na mitologia judaico-cristã Deus fez o homem “do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente”[1]. Entretanto, este ser feito de humo[2] (humano), nunca aceitou que a sua existência, por mais breve e efêmera, se resumisse a “pó, cinza e nada”[3], ele ansiou a eternidade, sentiu fome e sede de infinito: o homem quis ser igual a Deus.
Orgulho, arrebatamento e desejo de eternidade fazem de Charneca em Flor um caso de hybris poética. A ousadia de Florbela Espanca, assim como a da jovem Medusa, foi punida severamente. A poetisa, pelo seu canto insurreto e prenhe de estados nascentes, foi submetida a um processo disciplinar. As suas cartas nos dão conta do quanto a poeta sofreu com a calúnias e as maledicências durante a sua vida e como, depois de morta, teve o seu nome difamado e sua obra sofreu “estapafúrdias, desencontradas e insidiosas apropriações ideológicas”, como destacou a crítica Maria Lúcia Dal Farra[4].
O livro Charneca em flor (1919) reúne a quintessência da produção poética de Florbela Espanca. Vale destacar como, desde a nascente desta obra, e os primeiros passos para a sua materialização, Florbela Espanca dedicou-lhe especial atenção, basta observarmos a minúcia com que a poeta pensou em cada detalhe: “a capa”, “o nome depois do título”, a revisão em “absolutamente todas as folhas”, o cuidado de mandar datilografar o manuscrito para guardar o original, com receio de que este se perdesse no correio, e a pressa dos amantes que, “não espera nem mais um dia[5]”, para que o livro fosse publicado. É sabido que Florbela não viu o livro publicado, Charneca em Flor foi a sua primeira obra póstuma.
Em Charneca em Flor variadas imagens arquetípicas femininas nos arrebatam, dominam, e nos fazem ascender o “mais alto, sim, mais alto, mais além, do sonho, onde mora a dor da vida”[6], por meio delas tocamos, epifanicamente, o sublime. De acordo com Alfredo Bosi (2000) a imagem antecede a palavra e se enraíza no corpo. Amadas ou temidas, elas emergem nos sonhos e se perpetuam, como ídolo ou como tabu, nos rondando e enredando, pois, está imbuída de algo que lhe transcende: Os símbolos. É no mito que os símbolos emergem desvelando os registros dramáticos das experiências vividas pelo eu lírico, seus encontros e desencontros. Este teatro é encenado como por meio dos ritos. Para Luís Alberto Ayala Blanco[7] o mito cumpre outra função, ele é uma porta pela qual o ser humano passa buscando elevar-se da miséria de ser um resíduo, ou seja, de ser pequenas migalhas que refletem o devastador resplendor do princípio, como observamos expresso neste fragmento do soneto intitulado Mendiga[8]:
[...]
No silêncio das noites estreladas
Caminho, sem saber para onde vou!
Caminho, sem saber para onde vou!
Tinha o manto do sol... quem mo roubou?!Quem pisou minhas rosas desfolhadas?!
Quem foi que sobre as ondas revoltadas
A minha taça de oiro espedaçou?!
Quem foi que sobre as ondas revoltadas
A minha taça de oiro espedaçou?!
Agora vou andando e mendigando,
Sem que um olhar dos mundos infinitos
Veja passar o verme, rastejando...
Sem que um olhar dos mundos infinitos
Veja passar o verme, rastejando...
Charneca em flor expressa de maneira singular essa busca pela origem, na qual o eu “Judeu Errante”[9], não se fixa e nem é absoluto, mas, fragmentário, plural, precário, ou seja, detentor de uma humanidade profunda. Florbela Espanca escolheu para si o mundo da multiplicidade e sua poética joga com as formas do mundo: “Visões de mundos novos, de infinitos,/ Cadências de soluços e de gritos,/ Fogueira a esbrasear que me consome!”[10]. Os mundos criados por Florbela são híbridos, incorporam a completude e a incompletude, a fragmentação e a continuidade, o orgânico e inorgânico, e esta característica confere a sua poesia, especialmente as contidas no livro Charneca em Flor, uma sedução própria da alteridade.
No poema O meu mal [11] observamos o eu lírico examinando a origem da “ânsia estranha” que sente, e da “saudade louca” que faz de si um buscador. Tal reflexão leva-o a desafiar titãs da tradição: dogmas, preconceitos e tabus que comandam o sistema patriarcal e falocrata, depreciador da mulher e dos valores femininos e terrenos. Num ato desafiador o eu lírico florbeliano despe a “mortalha”, num compromisso radical com a vida, e faz de si a própria charneca alentejana em floração, como observamos no poema de abertura do livro, seu homônimo:
[...]
Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!
E nesta febre ansiosa que me invade,
Dispo a minha mortalha, o meu burel,
E, já não sou, Amor, Sóror Saudade...
Dispo a minha mortalha, o meu burel,
E, já não sou, Amor, Sóror Saudade...
Olhos a arder em êxtases de amor,
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!
(ESPANCA, 1999, p. 209)
O judaísmo, matriz do cristianismo, é um poderoso “protesto contra a natureza”[12] , da qual Florbela se ergue como porta-voz e representante. Esta doutrina fez com que as divindades femininas ligadas a terra fossem consideradas abominações, e com que os seus cultos fossem proibidos. Observemos que a palavra hebraica adam[13] significa “terra”, o que estabelece para a humanidade um pai-terra, Adão, e não da mãe-terra. Esta designação contrasta com as crenças que imperaram na antiguidade. Na Grécia, antes da ascensão dos deuses masculinos, o lugar mais sagrado do antigo mediterrâneo era o oráculo de Delfos, também chamado de Pítias ou Pitonisa, nome que deriva de Píton, gigantesca serpente que foi morta pelo deus masculino, Apolo. Esse rebaixamento das divindades femininas e ascensão das masculinas, fez com que o locus criativo da terra se transferisse para o céu, e com que a magia passasse do ventre para a cabeça. A mulher procriadora, bem como, o conceito de uma mãe-terra, integram a natureza ctônica combatida a milênios pelo patriarcado, e a cultura ocidental nasceu, especificamente, deste desvio da feminilidade. É aí que a poesia de Florbela Espanca, imbuída de um “ encanto mago”, adquire potência política e ideológica, evocando para o feminino, e seu representante máximo, a mulher, o lugar de direito. Florbela poetiza as múltiplas facetas do feminino, ela encarna tanto a Grande-mãe terra (Gaia): “E a erva altiva e dura do Marão/ É o meu corpo transformado em monte!”[14] , quanto a Grande-mãe cósmica (Nut): “Eu sou a manhã: apago estrelas!”[15].
Natália Correia[16] no prefácio do Diário de último ano (1982) definiu Florbela como modelo de “sacerdotisa do feminino”, atributo venatório que iluminaria o seu ser mitológico, fazendo dela curadora e portadora de encantamentos: “Eu trago-te nas mãos o esquecimento/ Das horas más que tens vivido, Amor!/ E para as tuas chagas o unguento/ Com que sarei a minha própria dor”[17]. Observamos que na poética florbeliana as divindades femininas reprimidas retornam para participar da vida, deixam de ser ídolos fechados sobre si mesmos. A operação mítica, que transcende os espaços históricos e geográfico, possibilita as múltiplas metamorfoses do eu poético que, por meio da experimentação, pode torna-se “a charneca rude a abrir em flor”, “princesa entre plebeus”, “Aquela que tens saudade,/ A Princesa do conto: “era uma vez...”, “menina”, “Infanta do Oriente”, “Essa que nas ruas esmolou/ [...] a que habitou Paços Reais;/[...] Sereia que nasceu de navegantes.../ Essas que fui,/ As que me lembro ter sido ... dantes!” e, muitas outras, marcadas pelo desejo de “amar, amar perdidamente”[18].A celebração dos valores terrenos são expressos por meio do desejo do eu poético de adentrar o espaço sagrado da natureza, visto que os sentidos deste estão “postos, absortos / Nas coisas luminosas desse mundo”, o que faz com que se sinta “asa no ar, erva no chão” [19].
No poema Podre de Cristo[20] observamos o reconhecimento da terra como o lugar gerador de sustento e abrigo: “Minha terra que nunca viste o mar,/ Onde tenho o meu pão e a minha casa”; “Minha terra onde meu irmão nasceu,/ Aonde a mãe que eu tive e que morreu/ Foi moça e loira, amou e foi amada!”. Ao fim do soneto o eu poético pede a terra que lhe alivie do cansaço da errância: “Sou um pobre de longe, é quase noite,/ Terra, quero dormir, dá-me pousada”. A terra guarda mistérios que não podem ser explicados pelo eu, apenas vividos, a “alma da charneca sacrossanta”, que é “Irmã da alma rútila” do eu lírico, encontra expressão. A chuva diz “coisas que ninguém entende”, dela, “Uma alada canção palpita e ascende,/ Frases que a nossa boca não apreende”, ao passar pelo rosto desperta “o lúgubre arrepio/ Das sensações estranhas, dolorosas...”. \o eu poético vivencia a tudo isso reconhecendo-se parte do mistério da vida guardada na morte: “Talvez um dia entenda o teu mistério...,/ Quando, inerte, na paz do cemitério,/ O meu corpo matar a fome às rosas!”[21]
Leia o artigo completo AQUI.
Outros textos sobre Florbela:
O AMOR NAS POÉTICAS DE FLORBELA ESPANCA E RUBÉN DARÍO. / Revista Interdisciplinar/ UFSE
Florbela Espanca e o devir monstro de uma poética fragmentada./ Revista Criola/USP
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