12/07/2021

Luz del Fuego: a Lilith capixaba (por Renata Bomfim)

 Olá amigos leitores(as), compartilho este texto que escrevi para o Caderno Pensar, do Jornal A Gazeta. Eu sou fã de Luz del Fuego, uma capixaba que nasceu anos luz a frente de seu tempo. Espero que curtam! Renata.

Existe no feminino um aspecto que está para além da beleza física, uma energia misteriosa que alguns seres humanos carregam como dom ou como kharma, uma força arrebatadora que provém das profundezas insondáveis da psique, dotando-os de grande poder de sedução. De acordo com a psicologia analítica junguiana esta energia denomina-se arquétipo. Na tradição oral rabínica, em textos sumérios, hebraicos, acadianos, e em mitologias de variados países encontramos tal arquétipo, uma imagem feminina que tanto seduz quanto assombra, ela é conhecida como Lilith. Geralmente descrita como um demônio noturno, essa imagem feminina se opõe a da esposa e a da mãe, representadas por Eva e pela Virgem Maria. 

Imagem de mulher rejeitada pela cultura patriarcal e pela religião tradicional por ter um grande componente revolucionário e de transgressão, Lilith antecedeu Eva no paraíso, ela foi a primeira esposa de Adão. A recusa em se submeter a um lugar de inferioridade na relação com o homem que deveria ser seu companheiro na jornada da vida, e a pretensão de encontrar alguma realização sexual, rendeu a Lilith o banimento do paraíso. Eterna inconformada, ela voltaria a reaparecer no Gênese bíblico como a serpente que convenceu Eva a comer o fruto da árvore do conhecimento (do bem e do mal). O lugar de Lilith na tradição é o de fora, o do maldito, do proibido, do tabu. Nenhuma mulher no Brasil constelou com tanta potência este arquétipo transgressor como a capixaba Dora Vieira Vivacqua, conhecida nacional e internacionalmente como Luz del Fuego.

Dora Vieira Vivacqua nasceu no dia 21 de fevereiro de 1917 no município de Cachoeiro de Itapemirim, Espírito Santo. Foi uma capixaba que experimentou a vivência arquetípica do banimento, pois, foi praticamente expulsa da sua terra natal por não se submeter às normas sociais vigentes. Da “Capital secreta do mundo” (Cachoeiro de Itapemirim) para a “Cidade maravilhosa” (Rio de Janeiro), Dora passou então a escandalizar, com o seu comportamento liberal, a sociedade brasileira. 

Na contramão do ideário feminino de sua época, décadas de 1940 e 1950, Dora recusou o pedido de casamento de um jovem carioca de família tradicional, desde menina ela sonhava ser artista. Sua carreira artística teve inicio no picadeiro do Circo Pavilhão Azul, onde dançava seminua com o codinome “Divina luz”, era anunciada como: "a única, a exótica, a mais sexy e corajosa bailarina das Américas”. Começa ai, também, a relação de amor de Dora com as serpentes, que lhe acompanhariam por toda a vida, especialmente as serpentes de estimação Cornélio e Castorina. A exposição do corpo nu e envolto em serpentes desenhando arabescos evocou no inconsciente de homens e mulheres a energia da poderosa Lilith, conferindo a Dora uma sensualidade radical.
Dora tomou o nome Luz del Fuego emprestado de um baton que fazia sucesso na boca das mulheres argentinas. Adotá-lo como nome artístico foi sugestão de seu amigo, o Palhaço Cascudo. Luz del Fuego caiu na boca do povo e Dora passou a conhecer o sabor do reconhecimento que tanto almejava. Esta era uma época de grande preconceito e intolerância, as vedetes, as cantoras, as atrizes e as dançarinas eram vistas como prostitutas, e muitas delas chegaram a ser fichadas na polícia. O Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo (DIP) proibiu as manifestações de Luz del Fuego sob a alegação de serem uma “perversão da moral vigente”. Os irmãos de Dora, um deles Senador da República, passaram a boicotar todas as ações que a dançarina desenvolvia, como por exemplo, comprar e queimar quase todos os exemplares do livro “Trágico blackout”, que a dançarina havia publicado.

Luz del Fuego foi precursora do Movimento Naturista brasileiro, na época chamado naturalismo. As idéias que trouxe do tempo em que passou na Europa eram muito avançadas para a sua época, Luz del Fuego defendia a nudez como uma expressão de liberdade numa época em que as mulheres brasileiras ainda não usavam duas peças na praia. A primeira manifestação pública do movimento encabeçado por Luz, além de escandalizar a sociedade carioca, resultou em prisão para todos os participantes, a nudez pública era algo insuportável. A Lilith capixaba possuía admiradores nos altos escalões do poder, esta influência lhe rendeu a concessão de uma ilha, a “Tapuaba de dentro”, localizada na Baía de Guanabara (RJ), e foi nela que Luz del Fuego criou a primeira colônia de naturismo da América Latina.

Batizada como “Ilha do Sol”, este espaço logo se tornou um refúgio para os praticantes do naturismo. As regras eram rígidas na Ilha: era proibido falar palavrões, consumir bebidas alcoólicas e praticar sexo. É certo que nem sempre Luz tinha controle sobre o que acontecia em todo o seu território, certa vez ela declarou: “aqui não é rendez-voux, nem motel, se querem farra e sexo, fiquem em seus apartamentos em Copacabana”. Luz del Fuego não fumava e nem ingeria bebidas alcoólicas, ela era vegetariana e admirava música clássica e literatura. A sua singularidade levou-a a se projetar internacionalmente, Luz foi capa da Life americana e recebeu na sua Ilha celebridades como Ava Gardner, Brigitte Bardot, Lana Turner, Steve McQueen, entre outras estrelas do cinema. A dançarina possuía princípios firmes e ideais libertários, ela defendia que todos os seres eram dignos de respeito e liberdade, para Luz "um nudista é uma pessoa que acredita que a indumentária não é necessária à moralidade do corpo humano, e não concebe que o corpo humano tenha partes indecentes que se precisem esconder". Vivendo em função da difusão da nova doutrina, Luz decidiu institucionalizar o movimento fundando o Partido Naturalista Brasileiro (PNB), para arrecadar o dinheiro necessário para tal empreitada, Luz passou a dançar seminua nas escadarias do teatro Municipal. Candidata à deputada federal, não conseguiu se eleger e nem conseguiu registrar o PNB.
Foram muitos os legados de Luz del Fuego, ela foi a precursora de um movimento germe de um estilo de vida que busca reaproximar homem e natureza, o Naturismo, movimento que abarcaria o vegetarianismo e a defesa ambiental. Luz del Fuego publicou outro livro, "A Verdade Nua", nele a dançarina engajada lançou as bases de sua filosofia. Em função de sua importância para o Movimento, no dia do seu nascimento se comemora o “Dia do Naturismo”.

A energia transgressiva de Lilith ressurge de tempos em tempos quando a mulher evoca para si direitos e liberdade, quando aceita o seu corpo e reconhece a sua beleza, bem como, quando descobre o significado recôndito de sua criatividade. Luz del Fuego, se não quebrou, afrouxou muitos dos grilhões sociais das suas contemporâneas. Ela inspirou, entre outras importantes personalidades femininas, Leila Diniz, Martha Anderson, Ítala Andi e Darlene Glória, também capixaba e ícone do cinema nacional.

Dora Vivacqua foi brutal e covardemente assassinada em 1967. A mulher de sonhos luminosos que lutou contra tudo e contra todos pelo direito de ser ela mesma, certa vez declarou que seria lembrada na sua terra natal “apenas cinqüenta anos depois da sua morte”. Maciel de Aguiar no livro Nós, os capixabas (2009), afirmou que talvez cinqüenta anos não sejam suficientes para se “expurgar os resquícios do rancor, da ingratidão e do preconceito contra uma das mulheres mais corajosas e destemidas do seu tempo”. Acredito que é tempo de nós, capixabas, resgatarmos da sombra a memória de Dora Vivacqua, a nossa Lilith, linda e poderosa, e de nos orgulharmos dela, certamente ao fazê-lo estaremos resgatando partes de nós mesmos.


Lucélia Santos protagonizou  um filme sobre a dançarina.

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