07/01/2022

Os anos passaram (Renata Bomfim)

 Os anos passaram,

a melodia tornou-se outra,
eu me tornei outra.
O cais assustador já
não assusta mais,
o inverno, mais suportável,
as flores não perderam  a cor, 
mas, o seu perfume foi capturado
pelo mercado.
Os anos passaram.
O prazer nas coisas pequenas e simples
se intensificou.
Janela aberta, observo
as árvores, sobreviventes
da fúria dos lenhadores da prefeitura.
Na árvore que guarda
a minha saúde mental canta
um passarinho da cabeça vermelha,
o canto dessa criatura me assombra,
parece que nasci ontem e que
desconheço as coisas do mundo.
Fecho os olhos e agradeço a Deus,
a Brahma, a Buda, a Krishna, ao Cosmos,
ao grande Nada, e a todas as entidades 
pelo dom de escutar.
A indiferença lacera a minha carne 
como se um cutelo separasse as partes
do tenro ao osso.
Sou o que sou: apenas um ouvido
aberto para o mundo, escutando 
o canto dos pássaros,
e nada mais.
A poesia ameaça voar com esse pássaro
de cabeça vermelha, num átimo
vem à memória os índios capixabas,
penso nos seus corpos urucum,
flamejantes como o sol,
guerreiros do indizível,
vitimas de uma chantagem chamada
progresso.
Os anos passaram, mas, muita coisa
não passou.
A dor permanece a mesma,
a saudade sei lá de quê também.
Que tudo isso, um dia, faça sentido.
 Amém!

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