22/01/2023

O Beijo de sangue: a pós-modernidade do corpus hilstiano em Rútilo nada (Profa. Dra. Renata Bomfim)

Joalheira da linguagem, Hilda Hilst desafia com uma obra ora doce com um afago, e ora, terrível como um beijo de sangue. É assim que somos confrontados ao primeiro contato com Rútilo nada. 

Prosa poética ganhadora do prêmio jabuti de 1994, fragmentada, composta por uma orquestração dissonante de vozes, Rútilo nada se aproxima do teatro do absurdo de Ionesco e do teatro da crueldade de Beckett. Este estudo explora os caminhos obscuros/luminosos do texto hilstiano buscando seus atravessamentos com os estudos da pós-modernidade.

 “As palavras de amor trabalham feito um luto” (Henri Heine). Certa vez Hilda Hislt disse em entrevista ao Caderno de literatura brasileira: “Toda a minha ficção é poesia. No teatro, em tudo, é sempre o texto poético, sempre” (HILST, 1993, p. 39). O percurso poético hilstiano pode ser conhecido e apreciado a partir da vasta obra deixada por esta escritora, que compreende, aproximadamente, cinquenta anos de produção literária que transita entre os gêneros da poesia, da música, da prosa e da dramaturgia.

Este ensaio pretende abordar aspectos da pós- modernidade a partir da prosa poética Rútilo nada, ganhadora do Prêmio Jabuti em 1994. Acredito que tais aspectos são fatores importantes que fazem com que a obra de Hilda Hilst seja cada vez mais lida e conhecida não só no Brasil como em outros países.

Hilda Hislt nasceu em Jaú, interior de São Paulo, no dia 21 de abril de 1930. É considerada, hoje, uma das mais importantes vozes da literatura brasileira contemporânea. A crítica literária Nelly Novaes Coelho, no ensaio intitulado Da Poesia descreve a poética hilstiana como sendo “obscura/ luminosa”, destaca ainda a “paixão desmesurada com que a poeta se entrega, desde sempre, ao corpo- a- corpo com a vida”. Para Coelho a poesia de Hilda Hilst “ilumina- se contra o pano de fundo da tortuosa/ luminosa/ efêmera vida terrena, que se pressente participe de algo imensurável e eterno”, assumindo o papel de buscar Deus nas coisas terrenas (COELHO, 1999, p.66- 71).

Rútilo nada, desde o título, já nos desafia. Insurreto e com uma abstração quase absurda, a prosa poética nos lança num vazio que reverbera o vazio que existe dentro de cada um de nós. No Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa, encontramos a palavra rútilo definida como um adjetivo que designa luzente, cintilante, cujo brilho chega a ofuscar, já a palavra nada, é descrita como coisa nenhuma, entre outras significações, encontramos, verdadeira natureza divina concebida como oposição, [...] diferença ou transcendência absoluta em relação aos seres e a realidade do mundo natural. Conforme Terry Eagleton em As Ilusões do Pós-modernismo (1998, p. 37), “a história pós-moderna desconfia de histórias lineares”, assim, Hilda Hilst estrutura Rútilo nada de forma que sua temporalidade seja não linear, ela subverte o tempo ordinário tumultuando as cenas e as falas, os tempos presente- passado- futuro se misturam, resultando um mosaico que vai sendo construído numa relação dialética com o leitor.

A linguagem se metamorfoseia e experimenta em círculos e espirais, fluindo ora doce com um afago, e ora, terrível como um beijo de sangue. Este texto traz variadas possibilidades de leitura, é multifacetado, e possui uma polifonia que busca capturar as vozes do mundo. Ele nos apresenta uma orquestração dissonante, onde diferentes vozes e timbres formam um coro que evolui e reproduz o status quo, como por exemplo, as vozes ouvidas por Lúcius Kod no velório de Lucas, as quais, ele não consegue identificar, mas que, aparentemente, são de pessoas estranhas a ele: “coitado, o que foi hein? Tá demais branco o homem, olha ali, saiu de um velório, quem é que morreu? Foi o filho dele foi? foi à mãe? [...] ele está desfigurado, olha, olha” (HILST, 1993, p. 14). Destas vozes Kod afirma poder ver apenas “as caras pétreas”, “caras graníticas, ódio e vergonha”, esta passagem da prosa nos instiga a pergunta: estaria este mesmo grupo tão sensibilizado se soubesse que ali, um homem chora a morte de seu amante, namorado de sua filha de 15 anos, que foi induzido ao suicídio pelo pai/ avô/ perverso? Hilda Hilst é dona de um “eu lírico do cão”, e fazem parte da sua assinatura a polêmica, a ousadia e a inquietude, que culminam numa busca ferrenha por configurar Deus.

O narrador hilstiano é implacável e muitas vezes cruel, ele nos ameaça com suas questões herméticas, filosóficas e de alta erudição, como uma esfinge pós-moderna. Uma escrita onde nada é gratuito, onde a palavra é cinzelada, Hilda é uma artesã da linguagem, ela percorre as dimensões da língua, deslocandose sem cerimônia do erudito para o chulo, o baixo calão, propositadamente brincando com as sensações e emoções do leitor. Os personagens Lúcius Kod e Lucas experimentam as delícias e as dores da paixão, o desabrochar do amor, e conhecem o alto preço que deve ser pago pela realização amorosa. A partir da fala destes personagens revelam-se facetas e nuanças do erotismo do texto hilstiano, que busca um “para além” do amor orgânico e físico da sexualidade, um algo mais profundo, um sentido maior para a existência, um re-ligare, busca Deus. No trecho que se segue, o personagem Lúcius Kod descreve poeticamente o momento em que se abre para o amor descobrindo suas contradições:

[...] Os atos não podem ficar flutuando, fiapos de paina desgarrados daquela casca tão consistente, a casca era firme, abriu-se, o delicado foi se desfazendo, círculos, volutas, assim pelos ares, desfazido. Posso deduzir que escapei da casca consistente que eu estava encerrado ali, não, que o meu corpo era o fruto da paineira, todo fechado, e nem instante abriu-se. Abriu-se por quê? Porque já era noite para mim e aquele era o meu instante de maturação e rompimento. Porque fui atingido pela beleza como se um tigre me lanhasse o peito. O salto. O pânico. O que é a beleza? Translúcida como se o marfim do jade se fizesse carne, translúcido Lucas, intacto, luz sobre os degraus ocres de certa escada na eloqüência da tarde. [...] Vejo-o de costas agora, é sólido, crível, nada de angélico ou inefável, e um novo ou talvez um antigo e insuspeitado Lucius irrompe, dois escuros e contraditórios, aguçados e leves, violentos e sólidos. (HILST, p. 16, grifo meu).

A potência da escrita hilstiana traduz as inquietudes do nosso tempo e expressa às transformações e as contradições de uma época que ainda se configura. Terry Eagleton descreve a pós-modernidade como:

Uma linha de pensamento que questiona as noções clássicas de verdade, razão, identidade e objetividade, a noção de progresso ou emancipação universal, os sistemas únicos, as grandes narrativas, ou os fundamentos definitivos de explicação. [o mundo torna-se] um contingente gratuito, diverso, instável, imprevisível, [...] fenômeno tão híbrido que qualquer afirmação sobre um aspecto dele, quase com certeza, não se aplicará a outro (EAGLETON, 1998, p. 35).

Rútilo nada tem uma estrutura literária dinâmica, as cenas se entrecruzam, a escrita muitas vezes é do tipo telegráfica, que estilhaça com as ideias, desestruturando-as, adiciona-se uma violência sem precedentes na prosa brasileira, que revela jogos ideológicos e de poder que buscam inviabilizar o diálogo, e a expressão das alteridades. Entre os personagens da trama destaca-se a figura do banqueiro capitalista, pai de Lúcius Kod, este personagem já é desnudado por Kod no início da narrativa: “[...] Lucas, meu amor, meus 35 anos de vida colados a um indescritível verdugo, alguém Humano e há tantos indescritíveis Humanos feitos de fúria e desesperança, existindo apenas para nos fazer conhecer o nome da torpeza e da agonia” (HILST, 1993, p. 13, grifo meu). O discurso deste personagem é totalitário, intolerante e repressor, e o corpo de Lucas, torna-se lugar privilegiado de enunciação, depositário dos desejos deste personagem, de Lúcius Kod, e de sua filha de 15 anos:

Um ilógico de carne e seda, um conflito esculpido em harmonia, luz dorida sobre as ancas estreitas, o dorso deslizante e rijo, a nuca sumarenta, omoplatas lisas como a superfície esquecida de um grande lago nas alturas, docilidade e submissão de uma fêmea enfim subjugada e aos poucos um macho novamente , altivo e austero, enfiando o sexo na minha boca viscoso. Cintilante. Pela primeira vez o meu olhar encontrava a junção do nojo e da beleza. (HILST, 1993 p. 22).

O corpo de Lucas é a representação da alteridade, ele é o outro, o poeta, Orfeu pós-moderno, encantado/ encantando com seu corpo lírico/poético, impiedosamente despedaçado pelas bacantes. É assim também o corpus literário de Rútilo nada como um todo, fragmentado, sacrificado, prenhe de transgressão e denuncia da opressão social amorosa, familiar, profissional, etc. Roland Barthes levanta a questão: “como fazer que o corpo fale?”. Ele recorre a um meio também utilizado por Bataille, que julga interessante do ponto de vista do trabalho atual sobre o texto, é articular o corpo não no discurso, mas na língua (BARTHES, 2004, p. 306).

Hilda Hilst faz isso em profusão, em Rútilo nada o corpo é parte importante da trama, desdobrando-se em metáforas até ao final: “pesadelos da carne”, “o adorado corpo morto de Lucas”, que mesmo morto não se cala, e conta, e denuncia, e fala, transgressão esta possível apenas na literatura. A morte, é um personagem que ronda como uma sombra faminta, é a “escura e finíssima senhora, grande ventre sem decoro [...] recebendo o mundo, migalhas, excrementos”, enfim, todos se alimentam do corpo.

Em Rútilo nada há uma busca por respostas para a “esquizofrenia” pós-moderna, a busca pela unidade mítica, pela completude, percebemos este aspecto na relação entre os personagens Lúcius Kod e Lucas:

Quem és, Lucas? Inteirissimo poeta, de fiel construção, de realeza até, severo [...] quando vi que não sabia da tua identidade, eras aquele que me mostrava o poema? Muros escuros, tímidos Escorpiões de seda No acanhado da pedra. [...] Ou eras o outro no quase escuro do quarto. Tua macia rouquidão de uma sonhada mulher, só que não eras uma mulher, eras o meu eu pensando em muitos homens e em muitas mulheres. (HILST, 1993 p. 22, grifo meu).

Coellho nos diz que na escrita hilstiana “a experiência de comunhão com o Outro, a partir do corpo, atinge raízes metafísicas do Ser e o faz sentir partícipe da totalidade” (COELHO, 1999, p. 74). Terry Eagleton, por sua vez, destacou o corpo como “lugar privilegiado de enunciação na pós-modernidade”, ele afirma que:

O prazer voltou com força total para infestar um radicalismo cronicamente puritano, [...] O corpo- um tema tão óbvio e inoportuno para ser ignorado sem a menor cerimônia, durante séculos abalou as estruturas de um discurso racionalista enxágue, e está no mento, em vias de tornar-se o maior fetiche de todos (EAGLETON, 1998, p. 34).

Em Rútilo nada a questão da alteridade é repensada, o oprimido não é um fora, um excluído, ele é peça importante do jogo, ele atua com força, não havendo lugar para a figura do “coitado”. Dentre os temas que perpassam a prosa poética encontramos o amor, o homo erotismo, o martírio, a morte, o encantamento, a busca por Deus, muitos deles, recorrentes também em outras obras da escritora. Amor e erotismo, em especial, dão tônica a Rútilo nada, e “o instinto sexual não corresponde apenas a uma função orgânica específica, [...] mas a algo vasto e profundo, [diverso] do que se entende vulgarmente por função sexual” (COELHO,1999, p. 74).

Em entrevista, a Hilda Hist declarou: “O erótico, é quase uma santidade! (HILST, 1999, p. 31). Octávio Paz examina a proximidade entre o erotismo e a poesia, dizendo que “o primeiro é uma poética corporal, e a segunda uma erótica verbal. Ambos feitos de uma oposição complementar”. Para Paz a linguagem é composta de sons que emitem sentido, um traço, uma materialidade que dá a idéia de corpo e possibilita que sejam nomeadas sensações, que são o que há de mais fugaz e evanescente no indivíduo, e “o erotismo é sexualidade transfigurada em metáfora” (PAZ, 1994, p. 12, grifo meu). A metáfora é um artefato literário muito utilizado por Hilda Hilst, elas são especialmente luxuosas e cinzeladas com um preciosismo barroco: “gritos finos de marfim”, “musgos finos pendendo dos abismos”, “areia- anil”, “cães de gelo”, “escorpiões de seda”. As metáforas hilstianas também possibilitam que o inominável seja nomeado, dito, muitas vezes gritado:

Os sentimentos vastos não têm nome. Perdas, deslumbramentos, catástrofes do espírito, pesadelos da carne, os sentimentos vastos não tem boca, fundo de soturnez, mudo desvario, escuros enigmas habitados de vida mas sem sons, assim eu neste instante diante do teu corpo morto. Inventar palavras, quebrá-las, recompô-las, ajustar- me digno diante de tanta ferida, teria sido preciso, Lucas meu amor [...] (HILST, p. 13, grifo meu).

Octávio Paz declara que “o significado da metáfora erótica é ambíguo” e “plural”, dizendo coisas diferentes, mas que em todas elas aparecem duas palavras: “prazer e morte”, para este autor o amor se apresenta na maioria das vezes como uma “ruptura”, uma “violação da ordem social”, desafiando “costumes e instituições da sociedade” (PAZ, 1994, 19-103), tal aspecto pode ser verificado em diálogos entre Lúcius Kod e seu pai:

[...] então, anos de decência e de luta por água abaixo e eu um banqueiro, com que cara você acha que eu vou aparecer diante dos meus amigos, ou você imagina que ninguém sabia, crápula, canalha, tua sórdida ligação, e esse moleque bonito era o namoradinho de minha neta, então vocês combinaram seus crápulas, aquele crapulazinha namorou minha neta para ficar perto de você. Gosta de cu seu canalha? Gosta de merda? Fez-se também de mulherzinha com o moço machão? Ele só pode ter sido teu macho porque teve a decência de se dar um tiro na cabeça, mate-se também seu desgraçado mate-se. (HILST, 1993, p. 13-14, grifo meu).

Risadas. Meu pai: pederastas, vadios e vadias, escritorezinhos de merda, articulistas do meu caralho, você defende esta corja de apartados [...] viciosos, assassinos miseráveis e não me venha com discursos, com esse tipo de sensibilidade cretina, ou você pensa que a ordem se faz com choramingas, com coraçõezinhos partidos, com tremeliques como é que você pensa que se faz uma fortuna, uma empresa de porte, um banco? Trabalho e sagacidade (HILST, 1993, p.19).

Lúcius Kod, encontra em Lucas, Eros, a expressão de uma subjetividade austera. Lucas é um jovem de 20 anos, que estuda história e é poeta, ele escreve “sobre muros”, Lucas põe “os muros” em xeque, por meio da poesia, entendamos estes muros como uma das metáforas centrais de Rútilo nada, que desdobra- se ao final do conto com um poema deixado por Lucas. Otávio Paz alude à poesia como sendo: “o testemunho dos sentidos”. Testemunho verídico: suas imagens são palpáveis, visíveis e audíveis. [...] feita de palavras enlaçadas, que permitem reflexos, vislumbres e nuances:[...] A poesia nos tocar o impalpável e escutar a maré do silêncio cobrindo uma paisagem devastada pela insônia. O testemunho poético nos revela outro mundo dentro deste, o mundo outro que é este mundo. Os sentidos sem perder seus poderes, convertem-se em servidores da imaginação e nos fazem ouvir o inaudível e ver o imperceptível (PAZ, 1994, p. 11, grifo meu).

Lucas é uma ameaça ao socialmente instituído, no caso, o capital simbólico de honra da “família convencional”, ele põe em xeque também, o próprio Lúcius Kod, o filho do banqueiro capitalista, o “herdeiro”, que em inúmeras passagens do texto é humilhado pelo pai por rejeitar um modo de vida pautado na hipocrisia e na mentira, e por ousar ser ele mesmo. O banqueiro, pai de Lúcius Kod, é o outro lado da moeda, não suporta ver o filho “inteiro livre”, emancipado, inveja-lhe o estado de liberdade de alma, livre pelo amor, contraditoriamente “preso numa armadilha jamais pensada”, apaixonado por outro homem. Esta figura emblemática e autoritária, julga-se dona do poder, podendo arbitrar na vida do filho não apenas no âmbito financeiro, mas também no afetivoemocional.

Este patriarca é uma figura contraditória, mas, ao final da narrativa, quando a sua máscara cai, podemos ver o que está por trás, o mais miserável e “pobre” dos indivíduos, cuja única relação possível é a de dominação e aniquilamento do outro, seu dinheiro não consegue comprar o amor. Otávio Paz define este tipo como libertino, segundo este autor, na libertinagem, a relação erótica está totalmente desvinculada do religioso, este tipo afirma o prazer como único fim diante de qualquer outro valor como religião e ética, assim:

O Libertino necessita sempre do outro e nisto consiste sua condenação, depende de seu objeto e é escravo de sua vítima. A relação erótico-ideal implica, por parte do libertino, um poder ilimitado sobre o objeto erótico, unido a uma indiferença igualmente sem limites sobre a sua sorte, por parte do ‘objeto- erótico’ uma complacência total diante dos desejos do seu senhor (1994, p. 25- 26).

Para o libertino é importante saber que o corpo que toca é uma sensibilidade e uma vontade que sofre, estabelece-se um jogo entre vitima e algoz de prazer e de dor. No cerne da libertinagem está o sadomasoquismo que, contraditoriamente, nega a soberania do libertino por tornar este “dependente” de seu objeto, e nega também a passividade da vítima. Paz nos esclarece que [...] “A libertinagem é contraditória: busca simultaneamente a destruição e a ressurreição do outro” (PAZ, 1994, p. 26).

O jogo erótico desenrola-se, o pai de Lúcius Kod contrata dois capangas para espancarem Lucas, estes personagens, “ritualisticamente” e com requintes de crueldade, também o violentam, deixando Lucas muito ferido. E o corpo da alteridade, representado pelo corpo de Lucas, revela a verdade ao deixar um bilhete para Lúcius Kod:

Lúcius, Os dois homens me tomaram como duas fomes, duas mandíbulas. Um clarão de dentes. Sorriam enquanto tiravam as camisas. Vagarosamente desabotoaram os botões. Cheguei a sorrir porque os gestos eram como que ensaiados, lentos... lentos... idênticos. Depois os cintos escuros, as fivelas de metal. Depois as calças. Imagine, dobraram as calças, acertaram os vincos, colocaram as calças no espaldar da poltrona. Pensei: eles estão brincando. E disse: vocês estão brincando. Sorriram. O olhar era afável.meus pulsos amarrados atrás das costas. [...] Vocês só podem estar brincando [eles responderam] pode chamar de brincadeira se quiser garotão (HILST, 1993, p. 23).

Quando os capangas foram embora, o banqueiro passou para “ver o serviço”, o texto nos revela que o pai de Lúcius Kod desliza o dedo ao longo da espinha de Lucas e lhe diz: “vai ter tudo comigo, moço. Afaste-se de meu filho”, e depois, volta a falar com Lucas: “posso te tocar menino?” (HILST, 1993, p. 24).

Lucas “suspende a cabeça para ver” e os lábios do banqueiro tremem. Rútilo nada tem um desfecho excepcional, o pai de Kod sela com um beijo na boca, um pacto de morte com o seu objeto de desejo: Ele beijou minha boca ensanguentada. Eu sorri. De pena da volúpia. [...] Até um dia. Na noite ou na luz. Não devo sobreviver a mim mesmo. Sabes porquê? Parodiando aquele outro: tudo o que é humano me foi estranho. Lucas (HILST, 1999, p. 25- 28, grifo meu).

Quanto a Lucas escolheu a morte, ele comete suicídio com uma arma deixada pelo banqueiro em cima da mesa. Neste jogo não houve ganhador, segundo Otávio Paz, “como castigo, o parceiro [Lucas] não ressuscita como corpo, mas como sombra, o libertino transforma em sombras tudo o que toca, e ele próprio se torna sombra entre as sombras. (PAZ, 1994, p. 26). Coelho acrescenta que “Hilda Hilst rompe o círculo mágico de seu próprio eu, [...] para lançar-se na voragem do eu- outro, em face do enigma (da existência, da morte, de Deus, da sexualidade, da finitude, da eternidade...)”. Para esta crítica, ao abordar o tema da morte, a poeta “se entrega a um desafiante diálogo, [a morte é] enfrentada cara a cara [permitindo que a poeta entre] na intimidade dessa temerosa figura, revelando-a essencialmente participante da vida. (COELHO, 1999, p. 73- 75).

Os muros, “sobre” os quais Lucas escreve, é tema que nos leva a refletir acerca da grande miséria humana chamada preconceito, e os emparedamentos das alteridades que impedem o contato, as trocas simbólicas, a aproximação, promovendo o isolamento, a dor e a morte. E o poeta nos é apresentado como àquele capaz de extravasar, de romper, transbordar e de sair dos confinamentos. Rútilo nada termina com um poema sobre muros, que foi escrito por Lucas: [...]

Muros longínquos Na polidura esgarçada dos sonhos Tão altos. Fulgindo iluminuras. Muros de como eu te amei: Brindisi. Altamura. [...] Muros prisioneiros do seu próprio murar. Campos de morte. Muros de medo. Muros silvestres, de ramagens e ninhos: Os meus muros da infância. Esfacelados. Muros de água. Escuros. Tua palavra: Um mosaico de vidro sobre o rosto altivo. Devo me permitir te repensar? [...] (HILST, 1993, p. 27).

Paz nos diz que “jogando conforme as regras dos opostos complementares, um dos acordes da união amorosa é a separação” este autor salienta que estar apaixonado não nos exime de sentir dor, medo, que este sentimento não nos protege, ao contrário, nos expõe, nos abre para o outro, nos diz que “qualquer amor, é feito de tempo, e nenhum amante pode evitar a grande calamidade: [...] a morte” (PAZ,1994, p.188).

O diálogo em Rútilo nada é uma característica que abre espaço para o teatral, e ao enunciar o texto, como defende Roland Barthes em O rumor da língua (BARTHES, 2004, p. 40), o leitor toma parte na trama como personagem, sendo convidado a captar “a multiplicidade de sentidos, dos pontos de vista, das estruturas, como um espaço estendido fora das leis que proscrevem a própria contradição”. Voyers, assistimos extasiados/ assombrados ao espetáculo, onde o narrador hilstiano domina a cena. Leo Gilmar Ribeiro no ensaio intitulado Da Ficção, aproxima a teatralidade da obra hilstiana com o teatro do absurdo, de Eugene Ionesco, e Samuel Beckett do teatro da crueldade, por espelharem questões comuns no campo do humano, revelando mazelas da uma sociedade hipócrita, mascarada (RIBEIRO, 1999, P. 80).

Terry Eagleton afirma que “o globo está mesmo perdendo funestamente a identidade” (EAGLETON, 1998, p. 20), pensamento ratificado por Stuart Hall, que afirma que o declínio das “velhas identidades” que, durante muito tempo estabilizaram o indivíduo socialmente estão ruindo, sendo “fragmentadas”, “descentradas” e “deslocadas”, dando origem a um sujeito de identidades múltiplas e gerando uma “crise de identidade” (HALL, 1998, p. 14). Percebemos estas crises na estrutura estilhaçada e convulsiva do texto e em especial nos personagens de Rútilo nada. O termo crise vem do grego krísis, que segundo o Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa, pode significar ação ou faculdade de distinguir, decisão, esta especificação encaixa-se bem nas personagens Lucius Kod e Lucas, que a despeito do que pudesse acontecer, fizeram suas escolhas, buscando transpor os “muros” do preconceito, e romper com a dominação de um pai tirano, que é bem uma representação do sistema patriarcal vigente. Embora haja todo um discurso de igualdade, percebemos que vivemos uma época tão excludente quanto às anteriores, percebemos “formas de subjetividade se degladiando”, e que a alardeada “abertura para o outro” que nos aponta um caminho de maior justiça e respeito sociais, compartilha como concebeu Hilda, de momentos rútilos de esperança e neutro, nulos de desânimo e indiferença (EAGLETON, 1998, p. 43).

Em consideração ao que foi explicitado neste estudo, podemos concluir que a obra de Hilda Hilst está em total consonância os novos tempos, pois ela desnuda o sujeito contemporâneo cindido, dividido entre o desejo e a tradição e em busca de si mesmo e de suas verdades. Outra razão é o fato desta não ser uma obra unilateral, ela acolhe as contradições e oposições possibilitando que num mesmo universo coexistam luz e sombra, amor e ódio, sagrado e profano, vida e morte, polos necessários ao fiat lux. Afinal, positivo e negativo, não é assim que o fenômeno da luz se dá? E rútila, Hilda Hilst já ultrapassou as fronteiras da língua portuguesa, suas obras já foram traduzidas para o francês, o inglês, o espanhol, o alemão, o italiano, pelo visto, nada será empecilho para que esta continue, cada vez mais, conquistando novos espaços.

Profa. Dra. Renata Bomfim.

Originalmente publicado no site do Instituto Hilda Hilst. Fonte

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