"máquina de guerra" é uma proposta filosófica formulada por Gilles Deleuze e Félix Guattari, que não diz respeito ao poder bélico e estatal, mas a uma potência inventiva e nômade, capaz de escapar e causar fissuras no poder dominante, inventando para si "linhas de fuga" e novas formas de ver e habitar o mundo.

30/10/2024

O CORPO COMO SENDA E CONDIÇÃO PARA O SER (Prefácio- Profa. Dra. Renata Bomfim)

 


O CORPO COMO SENDA E CONDIÇÃO PARA O SER

Prefácio para o poemario 

A Euforia do Corpo, de Anaximandro Amorim

Anaximandro Amorim é advogado e professor, mas, antes de construir um vasto currículo profissional, tornou-se escritor. Foi em 2001 que ingressou no universo literário integrando a Academia Jovem Espírito-Santense de Letras, considerada, institucionalmente, a primeira Academia Jovem de Letras do Brasil. Na atualidade, o escritor é autor de obras que transitam entre a prosa e a poesia e continua atuante no campo cultural integrando várias instituições, dentre as quais a Academia Espírito-santense de Letras.

A leitura inicial de A euforia do corpo me rememorou as ideias de Roland Barthes, para quem a escrita, afastada dos deveres e pressupostos do fazer científico, possui a potência de produzir diferenças, provocar deslocamentos e descentralizar sujeitos e palavras. Barthes nos diz, também, que o corpo vincula-se à escritura por meio do prazer. Foi a partir desse prisma que passei a deleitar-me com a leitura desse poemario e compartilharei com vocês, leitores, algumas sendas por onde passei nesse espaço dinâmico e plural.

Acredito que A euforia do corpo busca implicar os leitores num percurso de ambiguidades — rompendo com obviedades —, a começar pelo título, indicativo de estados abissais do ser, pois, a euforia pode indicar tanto alegria e otimismo quanto o seu oposto, o patológico, bipolar, a euforia depressiva. Jacques Lacan referiu-se à depressão como uma espécie de covardia moral, uma recusa do sujeito frente ao seu desejo. Anaximandro aceitou o chamado interno para refletir poeticamente sobre temas e conteúdos pulsantes e limítrofes. O escritor elegeu o filósofo francês Jean-Luc Nancy, estudioso de Lacan, como interlocutor privilegiado, como poderão observar em mais de duas dezenas de epígrafes. Essa escolha, que julgo ser consciente e bastante adequada, põe em cena o ente delimitador-mor da existência e condição primeira para a materialização de outros corpos: o corpo. A jornada começa com o impulso que arremessa para “fora (ex) do não-ser”. Sob o signo/bússola do desejo, — negado ou vivido às últimas consequências —, o saudável e o que, oprimido no inconsciente busca vir à luz, se comunicam como instâncias afins.

A euforia do corpo desnuda esse ente que nos acompanha do nascimento à morte/desencarne, impondo inquietações, espantos e, em momentos preciosos, nos regala com o maravilhamento e a epifania. Corpo plural e, como podemos observar no poema homônimo à obra, subdividido em três partes, apriorístico. Tomei a liberdade de ler esse poema como se fossem lâminas, ou seja, cartas do tarô. No início, observamos que loucura, magia e desejo constroem uma senda arquetípica, “labirinto sem mapas ou réguas”, que encaminha o leitor para um eufórico “balé

feérico”, onde tomará contato com outra subjetividade. A imagem do Louco, que subsiste nos baralhos modernos como o “coringa”, não tem posição fixa e, livre, transita entre os demais personagens do jogo. O eu poético parte daí, carta de número zero, liberto dos códigos tradicionais, “sem arrependimento, abrindo cordões, correntes e camisas de força”, enfim, “em procura”. “Uma charada que convida a repetir o enigma” está lançada. Chega o tempo da experimentação: O corpo é Amuleto! Na primeira carta do tarô, o Mago, criador e embusteiro, dirige a sua atenção para tudo o que lhe rodeia criando mundos imaginários e “um pacto de mistério”, a partir do qual o eu poético vivenciará o processo de diferenciação necessário à sua evolução, uma espécie de rito de veneração e de delícias que transforma a matéria alheia em uma coisa outra, “colosso”, “Porto aberto, macio e úmido”, “augusto deus pagão” e “objeto de culto/delírio”. Simplesmente, não há como resistir, “O corpo é uma tentação!”, não existem diques que contenham a sua força e nem o seu furor, embora o homem seja “feito de carne, ossos, músculos e vontade”, a qualquer momento “explode o que está (nele) contido”. Percebemos o germe de algo novo, a emergência de uma energia feminina poderosa.

A deriva do corpo é sempre produtiva e, ao desbravar uma Geografia íntima, o eu lírico se depara com “falésias” e “planícies”, repousa no “golfo”, “corpo de fuga”, sempre animado pelo “desejo do perder-se” e “Tendo a adrenalina/ do querer como/ ópio da procura”. Inexiste um manual que aponte saída para as antinomias do desejo, entretanto, o caos enuncia uma nova ordem e, “como monção que tudo destrói/ mas também tudo renova”, e o eu lírico

encontra nessa “geografia íntima”, “em cima,/ um cheiro de porto-seguro/ embaixo,/ um gosto de corpo.” Seguimos acompanhando a evolução dessa subjetividade poética que supera o medo de perder-se, pois crê ser preciso o seu destino: “o território do corpo”. Nessas andanças, o erro deixa de ser falta grave, tornando-se “brincadeira”, e as cicatrizes do corpo tornam-se um convite erótico, “portas semicerradas pelo tempo” cuja chave é outro corpo. Persistem as imagens que sugerem a existência de um código de acesso para todos esses mistérios, e nessa altura do texto, na qual o corpo tornou-se local privilegiado de enunciação, — seja ele um corpo de carne, filosófico ou linguístico —, urge “Buscar o eterno/ no irromper do instante// sabendo-se/ cativo/ no vazio/ do depois”, ou seja, é tempo de desafiar “o estado da matéria”. O eu poético vê-se impelido a “subverter a ordem do mundo,/ virar o macho do avesso/ – criar uma grande confusão!”: “Lilith”. Tomamos contato com a lâmina segunda do tarô: a Sacerdotisa. O conteúdo feminino latente é poderoso, mas, aqui essa imagem deve ser observada a contrapelo, ou seja, ser a carta de número dois não indica subjugação ou inferioridade, antes como ente emergente da sombra do um, vinculada à serpente, mentora da segunda esposa de Adão: Eva. O poema, dedicado a “todas as mulheres do mundo”, desafia o corpo sociocultural e opressor do patriarcado ao apresentar um modelo de entregar desmesurada. O tempo tornou-se propício para que constelasse essa que possui “entre as pernas”/- uma máquina de castração!”. 

A primeira esposa de Adão, Lilith possui um forte conteúdo revolucionário e pode ser encontrada em mitologias de variados países, entre eles as da Assíria, da Suméria, da Babilônia, da Cananéia, da Arábia, da Pérsia, entre outras, escancara o “desvario da criação” revelando a necessidade uma nova arquitetura, a “Arquitetura do Nada”, plantada em um domínio “fértil de símbolos”. Assim, sob o signo da insurreição, nos deparamos com outra personalidade emblemática, o desejado Jacinto, que entra em cena como um “corpo de alívio”, fluido como um “rio soberano” e transbordante, — poeta e amante —, presenciamos, então, a “Soberania do corpo”. Tudo é prazer, “um mundo se põe em delírio”, “dedos” e “língua” são senhas para a penetração, mas ainda há alguma reserva. 

Retorno a Roland Barthes em minhas reflexões. Esse pensador nos diz que a escrita cria um espaço relacional, nem sempre harmonioso, entre o escritor e a sociedade. Acontece ai um embate profícuo que, em essência, busca liberar a literatura de comunicar fatos históricos e de transmitir mensagens, para que possa realizar-se em si mesma: prazer e gozo. 

Na poesia de Anaximandro sinto esse pressuposto em operação, há no seu processo criativo uma bússola que o orienta para que não se desvie do cuidado/compromisso com a linguagem, sempre burilando os poemas, explorando sons e formas e jogando com os sentidos das palavras, como observamos no poema “A Pele. O Pelo” que, anaforicamente, repete cinco vezes a palavra “voo”, ao passo que brinca com as consoantes “p” e “l”. Esse poema ratifica o movimento ascensional ensejado nos poemas anteriores. A pele e o seu “raso”, o pelo, são peças no jogo da sedução e levam o eu poético ao desfrute de um “Acalanto doce” que é “remanso” e “abrigo”, e a possuir um “gosto de eterno”. Tempo de dizer, tempo de dizer-se: “A Boca”. A escritura efetua a linguagem na sua totalidade e deparamo-nos uma poética de hierarquização dos corpos: “imaculados”, “aceitáveis”, “rebotalho”, “transitórios”, todos esses presos à ilusão de serem senhores de si. Avesso do avesso: “o não- corpo” influi, seduz e tenta, espelho no qual o sujeito poético se vê refletido de forma invertida.

Jean-Luc Nancy terá dito que “Um corpo só é fazendo e se fazendo”, dessa maneira, o próximo conjunto de poemas construirá, a partir da “fresta da palavra”, o mundo. O eu poético denuncia: “aquilo que cala,/mata” e a semente que dormitava desperta “feito poema de devir”, semente-ostra gerando pérolas espetaculares, guardadas pelo “segredo-oceano”. No campo da beleza e do “sublime” ressurge o “corpo de alívio”, agora, maturado pelas vivências, ele anseia “apenas o inominado:/ Um casamento de almas” que possibilita “A Humanidade/ Recompor/ A beleza/ Dos dias” e, eis o milagre: “(o corpo inteiro)”.

O movimento circular do texto enseja um reinício, a “queda” torna-se uma espécie de senha para novas viagens e descobrimentos, o corpo torna-se “cordilheira” e o eu poético vislumbra, enfim, o segredo que se escondem por trás da complexidade, “para além do absurdo”: “A dor de máquina do mundo”. O olhar dessa subjetividade peregrina se (re)constrói com a imagem de um embate entre “Nasciso” e “Medusa”, ela percebe então que há beleza no brutal das criaturas, ou melhor, que brutal é a própria beleza. Essa visada que tomou a leitura da obra A euforia do corpo como a leitura da profundeza do ser buscou centelhas de compreensão, de forma nenhuma tentou esgotar o seu significado, até porque a potência da palavra poética nos impede de cometer tal hybris.

Há “segredos” inesgotáveis escondidos “por trás de um silêncio prenhe de signos”, o caminho buscado, agora é o da “alegria”. Mas, esses segredos podem ser acessados apenas por meio da leitura individual, na solidão essencial que emana da obra literária, como diria Maurice Blanchot. Mas, lembre-se sempre da senha: “aquilo que cala/ mata”.

Renata Bomfim
Doutora em literatura, poeta e ativista ambiental
Vitória ES Brasil, Agosto de 2020

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