Se as palavras são a minha única posse,Farei com elas o que ninguém mais pode:Milagres.Renata Bomfim
Renata Bomfim emerge no Colóquio das Árvores (Chiado Editora, 2015 – Coleção Prazeres Poéticos) como um poeta que não apenas escreve, mas vive a poesia como um ato de resistência, um grito que brota da terra e se eleva aos céus. Capixaba de Vitória, nascida em 21 de novembro [Dia de Nossa Senhora da Saúde] de 1972, ela carrega em sua escrita a herança de uma ilha beijada pelo Atlântico e a sensibilidade de quem fez das árvores não apenas musas, mas aliadas numa luta por um mundo mais vivo, mais autêntico, feminal. Publicado em sua primeira edição em setembro de 2015, este livro é um marco em sua trajetória — um coro polifônico onde a natureza, o feminino e a utopia se entrelaçam numa dança sagrada, como bem apontado por Ana Luísa Vilela no prefácio e Pedro Sevylla de Juana no posfácio.
Dividido em cinco movimentos — “O Grito da Rosa”, “Colóquio das Árvores”, “O Cisne e a Flor”, “Cantos de Vida e de Esperança” e “Hortinha Poética” —, o livro é um organismo vivo, cujas, cerca de cem poemas, pulsam com uma energia que transcende o papel, a tinta e a leitura. Renata, doutora em Letras pela UFES e pesquisadora das vozes de Florbela Espanca e Rubén Darío, não se limita a dialogar com a tradição literária; ela a reinventa, enraizando-a num imaginário visceralmente brasileiro, com cores capixabas. As árvores, símbolo central da obra, não são meras figuras decorativas: são interlocutoras de um colóquio ancestral, como sugere a epígrafe de Darío, que exalta a “selva sagrada” como fonte de vida capaz de vencer o destino. Em poemas como “Brasil” e “A Tupiniquim que me habita”, o poeta canta a terra capixaba e a memória coletiva de um povo que resiste à usura do tempo, fundindo raiz e voo, origem e devir.
A potência lírica de Renata reside em sua capacidade de transformar o concreto em sublime, o cotidiano em epifania. Em “O Grito da Rosa”, sob a tutela de Sylvia Plath e do evangelho de Lucas, ela clama contra a indiferença: “Eu te incomodo, sim! / Te arrasto da zona de conforto, / É por amor!”. Aqui, a rosa não é apenas beleza frágil, mas um grito que rasga o silêncio, um espinho que fere para despertar. Já em “Bífida”, dedicado a Ferreira Gullar, a língua do poeta se bifurca, querendo “explicar o mundo” e “religar com firmeza / Tudo o que se rompeu”. É uma poesia sem pose, como nota Vilela, coloquial e íntima, que transmuta a dor em beleza com um “gáudio feroz” e uma jovialidade irônica, muitas vezes escarninha, mas sempre terna.
O simbolismo ecológico atravessa a obra como um fio verdejante. As árvores — pau-brasil, jacarandá, anil — são mais que metáforas; são protagonistas de uma redenção telúrica. Em “Terra de Santa Cruz”, Renata mergulha e voa, sintetizando uma cosmogonia que renova o espírito ancestral brasileiro: “os gestos simétricos da poeta / — o voo e o mergulho — / sintetizam uma cosmogonia”. Essa conexão visceral com a natureza reflete sua vida fora das páginas: desde 2005, ela mantém a Reserva Natural Reluz, em Marechal Floriano, onde planta árvores e preserva a biodiversidade, um ato concreto que ecoa nos versos de “A transubstanciação do vegetal”: “Deixo de ser eu mesma para me tornar outras coisas. / Coisas com aura e prenhes de inéditos”. Aqui, a ingestão de brócolis, cenoura e bebida é um ritual místico, uma refeição com o sagrado orgânico.
A militância ecológica de Renata não é acessório, mas cerne de sua poética, uma poética ativa. Vegana condenada, ela subverte até o imaginário gótico em “Vampiro vegano”, um monstruoso que “invadirá quitandas e hortifrutis / em busca de clorofila”, preferindo “os orgânicos e os sem-conservantes”. É um humor ácido que desmonta convenções e exalta a vida não-humana, como nos poemas dedicados aos gatos — Elvis, Joaninha —, totens de afeto que habitam sua “comunidade de amigos”. Em “Todo gato”, a frase: “Todo gato é zen e / Oportunidade de amor ilimitado / Para um ser humano”. Essa ternura pelos seres vivos dialoga com sua atuação como arteterapeuta e fundadora do Rosa Rubra e do Espaço Terapêutico Arte (ESTARTE), onde a criação se entrelaça com a cura e a consciência ambiental.
A feminilidade insurgente é outro pilar desta obra singular. Em “Identidade X”, Renata desafia rótulos — “Querem saber se sou feminista, / Marxista, / Crente, / ou Pagã” — e reivindica uma deficiência que é “carnal e transcendente”. Figuras como Joana d'Arc, Salomé e a Viúva Negra são resgatadas em versos que celebram o poder e a ambiguidade do feminino, enquanto “Fogo” reescreve a história: “A MULHER descobriu o fogo. / Um dia, O HOMEM teve uma ideia / Maldita: / Queimar as mulheres”. Um poeta não apenas denuncia; ela redime, transformando cinzas em flores, como faz Joana ao “colher flores” num futuro utópico.
Colóquio das Árvores é, enfim, um convite à ação e à contemplação. Sevylla de Juana, no seu posfácio, o define como “impossível e necessário”, um livro de Renata, “leona que ronronea como gatita”, morde e beija, sangra e balsamiza. É uma obra que não tolera a indiferença, que exige do leitor um mergulho na “selva sagrada” da existência. Para além de sua erudição — evidente nas referências a Blanchot, Darío e Florbela —, há uma simplicidade radical, um apelo à alegria nas coisas mínimas, como o chá entre amigos ou o irmão de heras em “Erosão”. Renata Bomfim não apenas escreve poesia; ela planta sentimentos, literal e metaforicamente, num mundo sedento por sentido.
*Francis Kurkievicz é poeta, professor de Filosofia e,
eventualmente, resenhista.
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