11/08/2025

CINQUENTENÁRIO DO DESAPARECIMENTO DE CARMÉLIA MARIA DE SOUZA (Renata Bomfim)

 

Edições de Vento Sul.

Carmélia Maria de Souza é uma das personalidades mais emblemáticas da cultura capixaba. A “cronista do povo” abordou temas atemporais que tocam e comovem: amor, humor, poesia, amizade, ironia, boemia, a cidade. Personalidade marcante, Carmélia foi uma mulher, segundo ela própria “muito mais festiva que revolucionária”, ela foi voz da alteridade e representante da contracultura no Espírito Santo. A singularidade da vida e da obra da cronista centra-se numa resistência corajosa ao establishment e na capacidade que ela teve de ultrapassar, por meio do lirismo de seus textos e de um desespero, — que traduzo como “ânsia de viver”, os desafios de sua época. 

Foi em 2002 que tive o primeiro contato com a obra de Carmélia, na ocasião do lançamento da terceira edição de Vento Sul. O livro foi um presente do saudoso amigo poeta Sérgio Blank. Quando comecei a ler Carmélia passou a se formar na minha mente uma imagem da escritora. Sabemos o quanto é temerário desenhar o retrato de alguém, corre-se o risco de exagerar alguns aspectos, diminuir outros e, até mesmo de fetichizar a figura representada. Dessa maneira, o retrato é uma ideia incapaz de contemplar a complexidade da pessoa. Lançar um olhar sobre a vida e obra de Carmélia, cinquenta anos após a sua partida, é um desafio que impõe, também, criatividade.

Podemos vislumbrar a imagem inquietante de Carmélia desenhada através de relatos de pessoas que a conheceram, peças teatrais, fotos, documentos, documentários, artigos e ensaios biográficos, como o Carmélia por Carmélia, organizada por Linda Kogure para a coleção Roberto Almada. O crítico literário José Augusto Carvalho declarou que “ter conhecido Carmélia é um privilégio de capixaba, ter privado de sua companhia, ter batido longos papos com ela passou a ser um atributo de poucos”. Quando Carmélia faleceu eu tinha dois anos de idade, assim como eu outros entusiastas de sua obra não tiveram a oportunidade de acompanhar a sua produção em tempo real e experimentar o frisson que sua escrita produzia. Portanto, para este ensaio, busquei dialogar com pessoas que conviveram com a cronista, com Ruy Dias, sobrinho da escritora, e acessei materiais generosamente cedidos por amigos pesquisadores como Francisco Aurélio Ribeiro e Kátia Fialho, a quem agradeço imensamente. Meu desejo é trazer à luz ou realçar alguns traços da imagem desta capixaba que “A cidade tratou de transformar em mito”. 

Variados eventos celebram Carmélia no cinquentenário de seu desparecimento, dando prova da perenidade de sua obra e da importância do seu legado. O Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo (NEPLES), dedicou a ela o XI Bravos/as Companheiros/as e Fantasmas: Seminário Sobre o/a Autor/a Capixaba; foi lançado o Documentário “Não se Aproxime: a Vida e Obra de Carmélia M. de Souza”, dirigido por Tati Rabelo e Rodrigo Linhares, e essa seleta produzida pela Academia Espírito-santense de Letras (AEL) juntamente com a PMV na 40ª edição da coleção José Costa. Inicialmente, a ideia era publicar uma edição fac-símile de Vento Sul, cheguei a produzir o livro, mas questões técnicas e limitações como o número de páginas tornou o projeto inviável. Dessa maneira, essa obra oferece ao leitor um estudo que busca elencar diferentes aspectos da obra carmeliana, obviamente, sem a pretensão de esgotar nenhum tema, e uma seleta de escritos, fotos e documentos, que permitirão ao leitor construir ou enriquecer os seus próprios retratos de Carmélia. Confesso que estou muito feliz por tecer essas considerações sobe Vento Sul, considero uma homenagem a “Félia” por ter me feito companhia durante muito tempo, enquanto leitora, antes de eu me tornar escritora e pesquisadora.

 “Diga aos que me amaram que eles me fizeram feliz. O seu amor justificou o meu amor e a ternura”. Essas palavras de Carmélia mostram que a cronista foi capaz de transitar sem medo pelos campos da afetividade e que foi querida por muitos. A sua morte por embolia pulmonar, no dia 13 de fevereiro de 1974, foi um impacto para familiares, amigos e leitores. Luiz Fernando Tatagiba escreveu no jornal A Tribu na do dia 15 fevereiro: “A ilha não é mais uma delícia, a au rora e o crepúsculo sorvem fel, e como os roseirais, os ideais cedo fenecem, e apenas a hipocrisia cada vez mais floresce. [...] Que esta seja a última flor e a última dor a incomodá-la, Carmélia, onde quer que esteja perdida a sonhar com 
versos livres e paisagens líricas na tarde”. 

No ano seguinte ao falecimento, 1975, Amylton de Almeida e Milson Henriques reuniram amigos da cronista para a organização e encena ção do Show musical “Carmélia, por amor”, apresentado pela Fundação Cultural do Espírito Santo no Teatro Carlos Gomes. Foi feita a retrospectiva da vida e da obra de Car mélia tendo no elenco a participação de Maura Fraga, então redatora do jornal A Tribuna; Mariângela Pellerano e Aprí gio Lyrio, redatores do jornal “A Gazeta”; além do pianista Gilberto Garcia, que integrava o vocal. Amylton de Almeida esclareceu que a ideia central do espetáculo era “enfatizar a força e a grandeza espiritual de Carmélia M. de Souza, uma pessoa que se manteve fiel às exigências e crueldades da pai xão, obtendo como recompensa a humanidade do senso de humor”. Amylton ressaltou, ainda, que aceitou fazer o show e estrear como intérprete por objetivar “homenagear o amor, a beleza, a solidariedade e a confiança” valores que ele julgava esquecidos, e concluiu: “Esse é o único aspecto ‘anacrônico’ de Carmélia por amor: a sua crença no ser humano”2. Vale destacar que, aos 20 anos do desaparecimento de Carmélia, a escritora e Kátia Bobbio escreveu o cordel “Vinte anos sem Carmélia, a cronista da Ilha”. 

Na crônica intitulada “testamento”, publicada na coluna Caderno Dois do dia 18 de maio de 1969, Carmélia escreveu: “Deixo as minhas crônicas (publicadas ou inéditas) para você. Deixo também para você os personagens de um livro que jamais terminarei de escrever. Termine-o por mim, Dindi! Escreva o Vento Sul”. Em 1976 o desejo de Carmélia foi realizado com a publicação póstuma do seu livro. A obra veio à lume pela Fundação Cultural do Espírito Santo e contou com a organização e apresentação de Amylton de Almeida. A segunda edição aconteceu em 1994, resultado de uma par ceria entre a Rede Gazeta de Comunicações e a Universidade Federal do Espírito Santo. Lançado como o segundo volume do Projeto Nossolivro, essa edição foi distribuída no formato encarte, dentro do jornal A Gazeta. Em 2002 foi lançada a terceira edição de Vento Sul como “um meio termo” entre as edições anteriores, mantendo integral a introdução feita por Amylton de Almeida, mas suprimindo alguns textos. 

Carmélia Maria de Souza, desesperada e lírica, 40ª edição da Coleção José Costa, se abre para a leitura, com a arte da capa, obra criada por Attilio Colnago, artista plástico capixaba de grande relevância na contemporaneidade, professor aposentado da UFES, pesquisador, pintor, restaurador, ilustrador. O retrato em aquarela criado por Attilio para este livro traz a imagem de Carmélia para mais perto do leitor, a obra permite variadas leituras, especialmente a partir da presença do duplo, mitema que dialoga com o imaginário de diferentes gerações e desdobra temas referentes a identidade, multiplicidade, hibridismo, fantasma, simulacro, entre outros. O cenário composto por elementos significativos do universo de Carmélia destaca a bebida, indispensável nas noites de poesia com os amigos pelos bares de Vitória e o conhecido bilhete “não se aproxime”, que compõe de forma complementar e irônica com o duplo afetivo da escritora. 

Essa obra é uma homenagem que também eu presto a escritora.  Carmélia Maria de Souza: desesperada e lírica é um caleidoscópio da obra carmeliana, com crônicas da revista Comandos, Vida Capixaba e das diferentes edições de Vento Sul. Escolhi textos mais conhecidos da cronista e outros não tão difundidos por estarem na primeira edição, esgotada a mais tempo. Os textos não seguem ordem cronológica, mas se ligam por afinidade temática: poesia, boemia, amizade, borogodó e outros caros à escrita carmeliana. Meu anseio é que Carmélia seja mais conhecida dos capixabas, e que a sua crônica poética conquiste cada vez mais leitores. 

 Renata Bomfim 
 Ocupante na Cadeira nº7 na AEL 

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