01/12/2025

UMA VOZ INQUIETANTE: Entrevista com Juliana Sankofa Por Francis Kurkievicz*


Juliana Sankofa é uma escritora mineira, pretativista, pesquisadora, educadora agora com residência fixa em Vila Velha/ES onde veio trabalhar para a Secretaria de Educação da cidade. Nascida como Juliana Cristina Costa, veio ao mundo no dia dois de fevereiro de 1990, na cidade de João Monlevade–MG. Ela é Doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Uberlândia, pesquisadora de literatura preta brasileira e mestra em estudos literários pela UFJF. Além disso, é escritora fundadora da articulação literária nacional Pretas das Letras. Escreve nos Blogueiras Negras e tem muitos dos seus poemas publicados em diversas revistas e blogs literários no Brasil.  Como escritora, iniciou sua jornada  em 2014, participando das tradicionais antologias dos Cadernos Negros. Em 2019, Juliana publicou o livro "Comovida como o Diabo" de forma independente, lançando-o, também, no formato e-book. 


Francis Kurkievicz - QUEM é Juliana Sankofa e quem é Juliana Cristina Costa? A que veio? O que quer? Qual  o seu Ori? Quais os seus sonhos e projetos?

Juliana Sankofa – Juliana Sankofa é a minha autodefinição, pois carrega, no sobrenome, a filosofia do tempo não linear, em que o passado precisa ser revisado enquanto força vital, para que eu possa me projetar em futuros melhores e viver o presente da melhor forma possível. Juliana Cristina Costa é o nome dado, que eu não escolhi, e cujo sobrenome paterno eu recuso, pois meu genitor não cumpriu o seu papel, foi só mais um opressor.

Sobre o meu Ori, ainda não sei o nome, não joguei os búzios; apenas sinto sua presença feminina desde a infância, protegendo-me e orientando-me para boas escolhas. Meu sonho é poder viver, no mínimo, 24 horas sem ter que lidar com o racismo.

Entre os meus projetos, em nível pessoal, quero estar mais presente na vida das minhas amizades. Embora cada pessoa resida em diferentes lugares do país e do mundo, quero que o afeto esteja mais presente do que a luta, pois estou cansada de ter que lutar só porque a sociedade nos esmaga se não lutarmos.  Em nível profissional e na carreira literária, pretendo, em 2026, publicar meu primeiro livro impresso, o qual escrevi em Vila Velha (ES), enquanto me recuperava do luto e, ao mesmo tempo, atendia às exigências acadêmicas do doutorado. Escrever é minha profissão e é minha arte, mas é na arte que consigo fortalecer minha Ori, meu corpo e minha mente.

FK – O que significa para você a celebração da Consciência Negra? Quais impactos sociais, políticos e culturais estão implicados nesta data?

JS -É uma data que surge devido a muita luta por reconhecimento, mas que tem sido banalizada pelas dinâmicas do capitalismo e pelo contexto de extrema ignorância e retrocesso que estamos experienciando em termos de sociedade.  A data é para lembrar que a construção do país, nação, também se deu pelas mãos africanas, expropriadas de seu continente, estigmatizadas e violentadas desde 1500 por uma Europa que se chamou, e ainda se chama, de civilização.

          A inserção dessa data no calendário nacional é de relevância histórica, porém isolada, sem a inserção do letramento racial no currículo escolar ou em projetos ligados a sociedade, pode ser banalizada.

FK – A Literatura Negra é uma afirmação identitária e uma reivindicação de cidadania através da Poesia e das Narrativas, como você ocupa este espaço e por que é tão salutar hoje?

 JS – A literatura negra brasileira não é só uma afirmação identitária, é uma expressão estética do nosso ponto de vista acerca do mundo e é nossa possibilidade de questionamento de imagens de controle, estereótipos, que nos desumaniza e nos subordina. Seu teor reivindicatório é um dos elementos que a compõe. Eu comecei minha carreira literária em 2014, pelos Cadernos negros, antologia paulista tão relevante para divulgação da literatura negra brasileira no Brasil e no exterior.  Não sei dizer exatamente como eu ocupo este lugar, mas um dos meus objetivos é que minha palavra literária possa atravessar quem ler, desassossego, puro desassossego, pois quem naturaliza uma sociedade não consegue desnaturalizá-la apenas se receber uma conversa amigável. Quando escrevo sobre racismo não tenho o interesse de ser amigável. No entanto, o que eu escrevo não se resume só a isso, escrevo sobre a vida acadêmica, sobre o amor, sobre a saúde mental, sobre gordofobia etc.  

FK – Como você lida com o racismo, o preconceito, o patriarcado, o negacionismo vigentes e vicejantes na sociedade brasileira? Ser afrodescendente com voz, poder e lucidez atrai oposição?

JS – Eu lido com ironia (risos). A oposição é gratuita, eu chamo de desfã club. Eu gosto do meu desfã club, trato até com respeito e escuta, mas é o meu fã club que me faz querer escrever cada dia mais, porque demonstram o quanto que eu escrevo os blinda socialmente dos efeitos psíquicos das violências raciais. O Brasil é afrodescendente, assim como é indígena e europeu,  a minha ascendência é brasileira nesse sentido, porém, ninguém vê meu sangue europeu, vê a cor da minha pele preta. Então, ser mulher preta gorda em uma sociedade como a nossa é conviver diariamente com a violência gratuita nos espaços públicos ou até mesmo em casa, a depender onde mora.  Querem pessoas do meu perfil em condição de subalternização, isso não é só esfera de trabalho, é nas relações interpessoais também, só que eu não ando como se as pessoas fossem minhas donas, eu ando como dona de mim, consciente do que eu sou e exigindo respeito.

FK – O que é Poesia para você? O que representa a Poesia em sua vida? A Poesia tem o poder de transformar a realidade e ressignificar a existência humana?

JS – A poesia, para mim, é tudo aquilo que consegue tocar sentimentalmente a nossa reflexão. Ela é uma prática comunicativa instantânea. A poesia pode mudar o sujeito e, assim, o sujeito pode mudar a realidade, caso tenha recursos simbólicos disponíveis para isso. Quando não os tem, pode ainda fortalecer sujeitos para o enfrentamento das mazelas sociais e para a afirmação de sua humanidade diante de uma civilização que nos desumaniza constantemente.

FK – Como poeta, ativista, professora que conselho ou argumento você defenderia a partir da Celebração da Consciência negra? Os pontos fundamentais desta data têm poder de transvalorar costumes e hábitos, transformar a plasticidade mental do brasileiro e criar uma nova percepção justa, clara e real do povo negro?

JS O conselho que eu dou é que o letramento racial, como os outros tantos que precisamos ter frente às experiências sociais que não sentimos em nossa pele, deve ser uma busca individual, além das políticas públicas de promoção desse letramento. A nossa sociedade é estruturada pela colonialidade que, junto com a dinâmica neoliberal, faz com que as desconstruções dos paradigmas coloniais sejam pouco de interesse para as pessoas. Nossa sociedade tem como costume o egoísmo quando se pensa em acessos e oportunidades, o que se sustenta pela ideia de meritocracia em um contexto social desigual.

FK - Qual a importância dos Cadernos Negros para a Literatura Nacional e para os escritores afrodescendentes? Qual a dívida a Literatura Canônica deve aos escritores negros?

JSCadernos Negros é reconhecido internacionalmente como uma antologia que proporciona a inserção de escritores e escritoras negros(as) na cena literária brasileira há mais de 40 anos. É, para muitos artistas negros(as), a opção mais viável de publicação e de ter seus textos visibilizados. A literatura canonizada pelo sistema social brancoeurocentrado não nos deve nada; quem nos deve é o próprio sistema social que se beneficiou com séculos de exploração do sujeito africano e da estereotipação de seus descendentes. Esse sistema nos deve reparação histórica e condições de existir sem genocídio e sem nossa constante pauperização.

Quem representa esse sistema é a hegemonia que ocupa o poder desde o início, independente de ser de esquerda ou de direita; o contexto permanece centrado no mesmo perfil hegemônico: homens brancos.

FK – O seu poema CORPO-ÁFRICA é o mais famoso e o que melhor define a sua poesia e voz lírica, tal como aconteceu com Conceição Lima e o poema Afroinsaluridade. Como este poema aconteceu e quais opiniões você colheu dessa repercussão?

JS – No contexto dos Cadernos Negros, esse é o meu mais famoso poema. Ele surgiu enquanto eu fazia o mestrado na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Enfrentava o racismo acadêmico que colocava o meu corpo como objeto sem voz a partir dos estereótipos de como eu deveria me comportar: sempre concordando com o que é imposto, isto é, subordinação epistêmica. Após uma série de situações em que eu me via sendo alvo constantemente de imagens de controle, eu fiquei desgastada psicologicamente e foi esse poema que surgiu quando eu não aguentava mais e precisava espairecer a mente. Corpo-África é um poema que fala de como todo corpo negro é saqueado nas relações sociais e também como há uma associação instantânea entre nosso corpo e o continente de origem, que muitas vezes é feita para menosprezar, porém, no poema, eu faço para nos engradecer e lembrar que nós somos e viemos do continente berço da humanidade.

 

FK – Todo poeta e escritor possui referências literárias, sociais, históricas etc., livros essenciais, ideais cultivados, utopias íntimas, quais as suas?

JS – Minha referência mor é a escritora Miriam Alves, cuja escrita literária me alivia e me faz pensar, e cujo estilo me atrai. Ela também é a minha referência enquanto intelectual e a ela eu devo muito da pesquisadora e escritora que me tornei. Depois dela, admiro a escrita de Machado de Assis, menos do livro Americanas, devido ao seu discurso preconceituoso em relação a população indígena, verdadeiros donos dessa terra; gosto do Saramago, Cuti, Cristiane Sobral, Irmãos Passos, Luana e Leandro, Jovina Souza, enfim, fazer uma lista é difícil, porque há muitas vozes em que sou leitora.

 

FK - Quais os marcos políticos, direitos, valores, bens culturais etc. a comunidade afrodescendente ainda não alcançou? O que fazer para que a justiça social seja efetiva, abrangente e verdadeira?

JS – Há quem diga com mais propriedade que eu, pois é conhecedor(a) e age de frente nessas questões; muitos ativistas e intelectuais negros(as) estão trabalhando nisso há anos. A meu ver, sem muita familiaridade com todo o debate, pois só tenho uma experiência fora das dinâmicas políticas institucionais, eu acho que nos falta, principalmente aos jovens negros, alcançar a liberdade de ir e vir sem a violência gratuita e desmedida da polícia. Antes que alguém diga que eu estou defendendo a criminalidade ao pensar dessa forma, eu digo que não: nem todo jovem negro periférico é bandido e não é só esse perfil de bandido que existe no Brasil; o crime de colarinho branco está gerenciando tudo há séculos. Penso que, para assegurar uma equidade jurídica e de direitos, ainda falta muito.

 

FK – Que pergunta você faria para si mesma que este pobre entrevistador branco não conseguiu contemplar?

JS -  Sobre o meu próximo livro? Então, em 2026, pretendo lançar meu primeiro livro de poemas inéditos, pois há uma cobrança para que eu lance livros, embora eu prefira publicar nas redes sociais e no blog pessoal. O livro está pronto e serviu como instrumento para lidar com o luto da perda de uma das minhas irmãs. Agora, assim que eu concluir o doutorado e puder respirar um pouco, lançarei meu livro, e outros tantos virão logo em seguida.

 

 

CORPO-ÁFRICA

 

Meu corpo é uma África

e o mundo, um navio negreiro.

Enquanto cantos que não entendo

oscilam dentro de mim,

eu vejo as atrocidades que ainda não tiveram fim.

“Vivemos tempos de Lei Áurea” − assim nos dizem

enquanto socialmente nos constrangem

pelo cabelo crespo que adoramos

pela coroa simbólica que levantamos

e se ofendem quando nos amamos.

 

Meu corpo é uma África

que ainda grita

todos os crimes contra sua terra

e contra sua gente.

O racismo de nossa era

vem junto com uma boca sorridente

que dissimula

e tudo que é negro anula

como contribuição social.

 

Meu corpo é uma África

meu Ori vive comigo a resistir

Já que não podemos mais permitir

o silêncio a nos chicotear,

nem os discursos com outros termos a inferiorizar o que somos. 

 

*Francis Kurkievicz é poeta.

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