Uma das principais vozes do pós-feminismo, a escritora valoriza a mãe que abre mão da carreira para cuidar da família. A escritora americana Camille Paglia, 60 anos, é considerada uma das principais teóricas do pós-feminismo e uma das intelectuais mais influentes da atualidade. É professora da Universidade das Artes, na Filadélfia, EUA, colunista do site salon.com e editora da revista Interview. Camille ficou conhecida mundialmente na década de 90 ao lançar o livro Personas sexuais, no qual aborda de forma particular (contrariando as teóricas de sua geração) a mulher e o feminismo do século passado. Freqüentemente apontada como "a feminista que as outras feministas amam odiar", Camille, eleita em 2005 pela revista inglesa Prospect a número 20 da lista dos 100 intelectuais vivos mais respeitados do mundo, trata com igualdade de valores as mulheres que têm uma vida profissional de sucesso e aquelas que optam por abrir mão de carreiras promissoras para ficar em casa cuidando da família. Nesta entrevista, Camille, que tem cinco livros publicados (o último é Break, Blow, Burn, ainda não editado no Brasil), fala, entre outros temas, sobre o comportamento das mulheres e dos jovens contemporâneos, de sexualidade e política. Ela votará em Barack Obama, em abril, nas prévias no Estado da Pensilvânia.
ISTOÉ - No dia 8 de março é comemorado o Dia Internacional da Mulher. Quais as principais conquistas femininas?
Camille Paglia - Desde a Revolução Industrial, de dois séculos para cá, as mulheres vêm conquistando, de uma maneira gradual, espaço na vida pública e na política. Graças ao acesso à educação, elas têm conseguido cargos até então improváveis de ser alcançados, em profissões como direito, medicina e na pesquisa científica, por exemplo. A maior dificuldade, tanto para as mulheres quanto para os homens, ainda é, porém, a aceitação do sexo feminino em cargos de chefia, tanto nas empresas quanto na política.
ISTOÉ - Por quê?
Camille - A questão é a seguinte: como uma mulher deve manter o equilíbrio no exercício de sua autoridade, a natureza de seu lado emocional e a sexualidade de suas roupas, acessórios, cosméticos e jóias? É um dilema que não faz parte do universo masculino, cujas vestes de trabalho são menos provocativas e expõem menos o corpo. É importante que ela aprenda a lidar com essa questão e seja treinada para assumir posições de chefia.
ISTOÉ - Como?
Camille - As mulheres precisam aprender técnicas de expressão e apresentação que combinem poder e clareza, consistência e dignidade. Em muitos países, como no Japão, os códigos locais ainda predominam e exigem da mulher um comportamento cordial, o que inevitavelmente as marginaliza no local de trabalho.
ISTOÉ - No Brasil, casos de mulheres que abrem mão de sua profissão para cuidar dos filhos, marido e casa são cada vez mais comuns. Como é nos EUA?
Camille - Até a década de 50, a maioria das moças americanas colocava o casamento e a família acima de qualquer coisa, inclusive da carreira. Muitas nem sequer fizeram faculdade, outras se formavam e seguiam direto para o altar. Mas a minha geração, dos baby boomers, que chegou à universidade nos anos 60, quando o movimento feminista pulsava, era mais egoísta. Acontece que, na década de 90, quando elas alcançaram os 40 anos, claramente começaram a se questionar.
ISTOÉ - O que questionaram?
Camille - As mulheres que haviam deixado a maternidade para priorizar a carreira começaram a querer ser mães e a ter problemas para engravidar. As líderes feministas, que haviam prometido um mundo de possibilidades a elas, nunca haviam mencionado o fato de que ficar grávida é muito mais fácil e saudável para as jovens. Então, profissionais bem-sucedidas e solteiras começaram a perceber que haviam aberto mão de sua vida pessoal. Elas passaram a escrever artigos e livros sobre sua solidão e desilusão a despeito da posição profissional e da prosperidade material. Só para ilustrar, os homens de 40 anos, solteiros ou divorciados, não estavam casando com mulheres da mesma idade, mas com moças de 20 e poucos anos.
ISTOÉ - As mulheres de hoje aprenderam com a experiência de suas mães?
Camille - As jovens de hoje, tendo observado as escolhas feitas pelas feministas mais velhas, parecem reconsiderar o equilíbrio entre família e carreira em suas vidas. Não há mais o culto à mulher bem-sucedida profissionalmente como case de fêmea ideal. As mais novas devem se perguntar sobre o que irá lhes satisfazer quando atingirem a meiaidade e a velhice. Por outro lado, é preciso que encorajemos as jovens a desenvolver seus talentos e seu lado profissional, para que tenham independência financeira. No passado, era a dependência da mulher por seu pai ou marido que criava tantas e severas injustiças sociais.
ISTOÉ - A sra. já disse que Madonna é a maior responsável pelas mudanças do feminismo na década de 80. Diria que o comportamento dela nos últimos anos (casou, teve filhos, está mais caseira) tem sido parecido com o de grande parte das mulheres contemporâneas no Ocidente?
Camille - A Madonna tinha uma dificuldade enorme em manter relações românticas. Ela é muito forte, decidida e workaholic e sua personalidade apaga a de seus pares. Isso tem acontecido com grandes estrelas - de Marlene Dietrich e Joan Crawford a Barbra Streisand. A Madonna precisou aprender como é que se vive em reciprocidade com um homem. Finalmente, em Guy Ritchie ela encontrou alguém que tem confiança própria, que sabe como se portar e que controla seus excessos.
ISTOÉ - Mulheres como Madonna precisam de homens como Guy?
ISTOÉ - Mulheres como Madonna precisam de homens como Guy?
Camille - Ela já admitiu publicamente que teve de fazer muitas e desconfortáveis concessões para manter seu casamento. Houve muito stress e conflito, mas tanto Madonna quanto Guy devem ter optado por colocar as necessidades das crianças em primeiro plano. Por isso o casamento deles parece ser uma relação sólida. Desde os anos 90, a maioria das cantoras e atrizes tem tido filhos e sinalizado a seu público a importância da família em seu sucesso profissional.
ISTOÉ - No seu livro mais recente, Break, Blow, Burn, a sra. reage às "expectativas frustradas" e às "energias perdidas" dos jovens de sua geração. Como analisa a transição deles para o mundo adulto?
Camille - Nos anos 60, muita gente se entupiu de drogas. Eles tinham grandes ideais de transformação política e social, mas se destruíram e se neutralizaram. Depois, essa minha geração de libertação sexual deu de cara com a Aids, que explodiu nos anos 80. Mais uma vez, muitas pessoas brilhantes e profissionais promissores foram impedidos de agir. Eu tenho uma grande melancolia em relação aos meus parceiros de geração, cujas idéias, tremendamente inspiradoras, não tiveram tempo de se tornar ações na prática.
ISTOÉ - Atualmente, a preocupação com a aparência tem tomado proporções cada vez maiores entre as mulheres, inclusive entre as bem jovens. O que pensa disso?
Camille - O corpo se tornou algo como um trabalho de escultura, que pode ser infinitamente remodelado. E o Brasil tem sido o pioneiro no desenvolvimento de novas e sofisticadas técnicas de cirurgias plásticas. O que antes alcançava só a elite endinheirada, agora se tornou uma intervenção corriqueira e virtualmente acessível a todos. De qualquer forma, eu me preocupo com cirurgias realizadas em adolescentes descontentes com seus rostos e corpos ainda em desenvolvimento - antes mesmo de as feições adultas, obviamente diferentes, terem tempo de vir à tona. Além disso, uma aparência exageradamente jovem pode minar a autoridade da mulher em seu trabalho. E a neurose de uma sociedade em relação à juventude joga para baixo a condição da mulher de mais idade, que se torna planta seca na paisagem. Filmes, tevê e revistas saturam o ambiente com imagens de beleza e glamour. É muito difícil, senão impossível, resistir a esse constante apelo visual.
ISTOÉ - O que acha de os jovens americanos estarem se assumindo como homossexuais cada vez mais cedo? Camille - A heterossexualidade efetivamente voltada para a reprodução é natural e biológica, algo que teóricos pós-estruturalistas e alguns acadêmicos fazem a loucura de negar. Mas também acredito que a maioria dos seres humanos tem um potencial para a bissexualidade, algo que deveria ser encorajado de uma maneira leve e sem moralismos. Por outro lado, estou chocada com a força do ativismo gay nas high schools (escolas que, no Brasil, correspondem aos ensinos fundamental e médio) nos EUA. Isso tem pressionado os jovens a "sair do armário" o quanto antes. Para eles, crianças e jovens de 12, 14 ou 16 anos devem fazer declarações públicas sobre sua homossexualidade. Não se sabe o que isso vai desencadear nessas pessoas quando adultas. Essa clara polarização entre gays e héteros é simplista e nada produtiva. A experiência homossexual, ou até mesmo uma fase homossexual na vida de alguém, não torna necessariamente uma pessoa permanentemente gay. Essas regras rígidas são tiranas e devem ser descartadas. A vida é mais complexa do que isso.
ISTOÉ - No Brasil, alguns casais homossexuais já conquistaram na Justiça o direito de adotar crianças. A sra. acha que esse é um ponto positivo do ativismo gay?
Camille - Os gays deveriam ser contemplados com os mesmos direitos dos heterossexuais, incluindo pensão e adoção de crianças. É claro que aplaudo essa conquista brasileira. Sou privilegiada por viver em um Estado americano (Pensilvânia) que reconhece a adoção gay, isso não acontece em todos os EUA. Eu adotei legalmente o filho de cinco anos da minha parceira, Alison Maddex, o Lucien. Eu estava profundamente envolvida com todo o processo de gravidez da Alison e tenho agido como uma segunda mãe desde que ele nasceu.
ISTOÉ - Como democrata declarada, quais são as suas impressões sobre o processo eleitoral americano? Camille - Eu estou encantada com a forma com que Barack Obama tem conquistado o apoio dos eleitores americanos, de costa a costa do país, incluindo os mais conservadores, a maioria de "Estados brancos" da "América profunda". Obama está, inclusive, inspirando eleitores republicanos, atraídos por sua mensagem de reconciliação nacional e renovação. Eu amo o fato de Barack Obama ter uma linhagem internacional - seu pai é queniano -, de ter vivido sua infância em outro país (ele morou na Indonésia) e de ter conhecimento sobre o Islã, uma grande vantagem para um presidente no perigoso mundo de hoje.
ISTOÉ - Acredita que os americanos estão mais bem preparados para um presidente negro ou para uma mulher?
Camille - Definitivamente, os EUA estão preparados para uma presidente mulher. Nós temos mulheres nas prefeituras, nos governos e como presidente da Câmara dos Deputados (Nancy Pelosi). Não é pelo fato de Hillary Clinton ser mulher que muitos eleitores a rejeitaram. Ela tem um longo e questionável histórico de intrigas e decepções e, apesar de seu interesse por questões voltadas para as mulheres e crianças, seu conjunto de ações nessa área é desprezível. Além disso, a carreira inteira dela é baseada na notoriedade de seu marido, Bill Clinton - desde sua contratação como alta executiva de uma empresa de advocacia no Arkansas (ela foi reprovada no teste para um cargo de advogado em Washington) até sua eleição para o Senado por Nova York, um Estado onde ela nunca morou. A visão política de Hillary se tornou exposta com seu voto a favor da invasão do Iraque - uma escolha desastrosa dentro de um tema com que Obama está sabendo lidar.
ISTOÉ - Os Estados Unidos têm uma imagem mais negativa do que positiva no mundo. Acha isso justo?
Camille - A política internacional dos EUA precisa de um ajuste radical. Como portavoz contrária à invasão do Iraque, eu entendo por que existe tamanha visão negativa a respeito dos EUA. Existem diversas bases militares americanas ao redor do mundo e muita intromissão política em outras nações. Os EUA têm sido lentos ao se adaptar às mudanças das realidades econômicas - por exemplo, a vagarosa mudança em relação à China, que claramente está pleiteando a condição de superpotência. Tenho esperança de que Obama presidente conserte os problemas diplomáticos de hoje, obras da arrogante e incompetente administração Bush-Cheney.