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06/10/2007

Alteridade e Colonialismo em A tempestade de Willian Shakespeare


Renata Bomfim – UFES

A Tempestade é uma peça que foi escrita por Willian Shakespeare por volta de 1611, e apresenta grande complexidade no que se refere à questão da alteridade na relação entre europeus (colonizadores) e nativos (colonizados), trazendo várias visões típicas do novo mundo em sua época.
Resumidamente a peça nos conta que Próspero, duque de Milão, tem o seu ducado usurpado por seu irmão Antônio. Próspero e sua filha Miranda, exilados, são postos em um barco apenas com os livros da biblioteca de Próspero e alguns suprimentos. Vagueiam e vão parar numa ilha “mágica”, onde Próspero estabelece seu domínio, escravizando os nativos e tramando sua vingança contra Antônio, todos os que contribuíram para com sua queda.
Próspero é o protótipo do europeu colonizador. Pode - se perceber que seu poder já é sugerido desde o seu nome, “Próspero” que significa aquele que tem sucesso, que enriquece. O relato da ilha como “mágica” e habitada por espíritos e monstros, reflete o total desconhecimento do colonizador europeu acerca das terras conquistadas. Este aspecto pode ser visto no ato I, onde Próspero demonstra seu poder sobre a natureza e sobre as criaturas. Ele pergunta a Ariel, espírito que mantém escravo, “Você executou, espírito, a tempestade que lhe encomendei? Nos mínimos detalhes?” (cena I, p. 20).
Ao colonizador europeu importava a posse total do território, incluindo os nativos, pois estes eram utilizados como fonte de mão de obra gratuita. Bonnici nos diz:
Sabe-se que o objetivo principal do europeu, no caso os ingleses, era o aumento da extensão de terras que a nação possuía, fato que viabilizou a formação de um império. [...].
A exploração abrangia o controle dos povos e tribos colonizados, terras, natureza, animais, língua, tradições, cultura, hábitos, e tudo mais (BONNICI, 1998, apud BARZOTTO, acesso em 13 out de 2006).
Como representante do poderoso colonizador europeu, Próspero utiliza estratégias para dominar, uma delas é a apresentação do colonizador como superior, civilizado, em detrimento do colonizado, que é selvagem, degenerado e inculto, nota-se o nome do espírito Caliban, que é um anagrama de canibal. Janmorramed (1985, apud Gonçalves e Bonnici, 2005, p.61) afirma que:
Este modelo dominante da relação de poder é de interesse de toda sociedade colonial, é a oposição maniqueísta entre a alegada superioridade do europeu e suposta inferioridade do nativo. Este eixo constitui a característica central da estrutura cognitiva colonialista e da representação literária colonialista: a alegoria maniqueísta – um capo de oposição diversas, porém, intercambiáveis entre branco e preto, bem e mal, superioridade e inferioridade, civilização e selvageria, o eu e o outro, sujeito e objeto.
Este aspecto mencionado pode ser constatado em vários trechos da obra onde Próspero humilha os subalternos, afirmando-se como senhor absoluto destes. No início da peça (ato I, cena II, p. 24), Próspero refere-se à Caliban como sendo “um filho sarnento, um filhote de bruxa”, Miranda, sua filha, também o humilha o espírito quando afirma que “Caliban não é gente”, [...] e que não gosta de olhar para ele (ato I, cena II, p. 25).
Quando Caliban entrada em cena, o faz em resposta a um chamado depreciativo de Próspero: “Tu, escravo venenoso, gerado pelo próprio demônio dentro de sua monstruosa mãe, aparece” (ato I, cena II, p.26).
Caliban é o dono de direito da ilha da expropriada por Próspero, ela era de propriedade da Bruxa Sicoraz, que segundo o texto havia sido expulsa da Argélia e tido sua vida poupada da morte pelo fato de estar grávida, a ilha fora deixada como herança para seu filho.
Muitas vezes, o colonizador tinha a colaboração do colonizado na conquista da sua terra. Na época colonial, sabe-se que o europeu detinha maior conhecimento científico e, aproveitando da ingenuidade dos nativos, astutamente estabelecia um primeiro contato amistoso. Tal aspecto pode ser percebido no trecho onde Caliban se amaldiçoa por ter confiado em Próspero:
“Esta ilha é minha, pois a herdei de Sicoraz, minha mãe, e tu a roubaste de mim [percebe-se em Calibã um lampejo de consciência e ele reflete a sua condição de escravo]. Quando aqui chegaste, me acarinhavas e me tinhas em alta conta; dava-me água com pinhões de cedro, [...] e eu então te amava e te mostrei todas as virtudes da ilha, as fontes de água doce, as salinas, os pontos desérticos, as terras férteis. Maldito seja eu, que assim procedi. No (ato I, cena II, p.23).
Na construção do personagem Calibã, vemos o conceito de monstro e animal sendo utilizado, o que lhe confere o status de selvagem. Próspero acusa Caliban de tentar violentar Miranda, e é este o fato que ele utiliza como motivo para escravizá-lo e ter poder total sobre a ilha: “Tu és o mais mentiroso dos escravos [...], eu te tratei
(imundície que tu és) com humildade e te alojei e te acolhi em minha própria morada até que tentaste violar a honra de minha filha” (ato I, cena II, p. 27).
Caliban representa o outro, o sujeito colonizado, ele é demonizado e encontram na rebeldia uma forma de resistência e protesto, recusando a objetivação a que foi subjugado.
Encontramos em contraponto a Caliban, o espírito subserviente Ariel, que foi libertado por Próspero, após ter ficado por doze anos aprisionado pela bruxa Sicorax. Ariel é citado por Próspero como “meu bom espírito”, pois ele submete-se a próspero que sempre lhe acena com promessas de liberdade:
Suplico-lhe, senhor, lembra-se que lhe prestei serviços valorosos, não lhe menti, não o enganei, servi ao meu amo sem reclamar, sem resmungar; o senhor prometeu abater um ano do meu tempo de servidão (ato I, cena II, p.22).
Próspero irrita-se com a ousadia do escravo e muda o tom, de “meu bom espírito”, Ariel passa a ser chamado de “coisa lerda”, tartaruga”, “coisa maligna”. Ariel busca a liberdade obedecendo e agradando próspero. Para agradar a seu senhor ele metamorfoseia-se em “ninfa dos mares”, entra sempre com “música e cantos”. Ariel é um grande trunfo para Próspero, que utiliza-se de suas potências mágicas para alcançar seus intentos, e Ariel perde a dignidade de ser sobrenatural.
Alinguagem é também uma forte arma de dominação utilizada pelo colonizador, ela é imposta ao colonizado como uma forma de “civilizá-lo”.
De acordo com Stuart Hall:
A língua é um sistema social e não um sistema individual. [...] Falar uma língua não significa expressar apenas nossos pensamentos mais inferiores e originais; significa também ativar a imensa gama de significados que já estão embutidos em nossa língua e em nossos sistemas culturais. (HALL, 2004, p.40
Junto à língua, costumes e preceitos, encutem no colonizado um sentimento de inferioridade. Terry Eagleton em A Teoria da Literatura, nos diz que:
Só podemos ter os significados e as experiências porque temos uma linguagem, na qual eles se processam. Isso sugere além do mais, que nossa experiência como indivíduos é social em suas raízes, pois não pode haver nada como uma linguagem particular e imaginar uma linguagem é imaginar toda uma forma de vida social. (EAGLETON, 2003, p. 83).
No diálogo com Caliban, Miranda lhe diz “tenho pena de ti, a trabalheira que me deu, fazer-te falar [...], quando ainda grasnavas, como coisa, a mais bruta, facultei palavras aos teus propósitos, o que o tornou compreensível” (ato I, cena II, p. 27). É nessa dimensão que a luta entre dominador e dominado acontece, Caliban apropria-se da língua que lhe é imposta e a utiliza como arma de resistência, devolvendo ao seu senhor os insultos e xingamentos e rogando-lhes pragas e maldições:
Caliban: __ A senhorita me ensinou sua língua,
E o que ganhei com isso foi que aprendi a praguejar. Que a peste vermelha acabe com vocês, por me terem ensinado a sua linguagem.
(ato I, cena II, p.28).
Caliban: __ Que todas as inflamações que o sol suga dos brejos, charcos e pântanos caiam sobre próspero e façam de cada polegada de seu corpo uma doença ambulante.
(Ato II, cena II, p. 53).
E as conspirações não param, Caliban trama junto a Estéfano e Trínculo depor Próspero do poder, desta vez, o espírito submete-se ao bêbado europeu sem questionar seus propósitos, esta atitude por parte de Caliban pode ser interpretada como fruto das condições a que vem sendo submetido, e da introjeção da imagem do europeu como superior. Ele diz: “Eu vos beijarei os pés. Presto juramento e me faço vosso súdito”. Percebe-se que Caliban repete as atitudes como fez com Próspero, ao facilitar sua dominação: “Eu vos mostrarei cada fértil polegada dessa ilha; e beijarei vossos pés, eu vos peço, sede meu deus (ato II, cena II, p.60).
Finalizando abordaremos a estratégia de dominação feita por meio da força, entre elas a tortura, que poder infringida em diferentes níveis. Sofrimento determinado pelo trabalho árduo e não remunerado, o castigo físico, acrescido de ameaças que obrigam os mais fracos a se submeterem às ordens, estão bem representados na peça. Própero utiliza a ameaça como ferramenta de tortura psicológica para que lhe obedeçam, ele diz a Caliban: “Torturo-te com velhas cãibras, ponho dores em todos os seus ossos, te faço uivar tanto que as feras vão estremecer frente aos seus berros” (ato I, cena II, p. 28).
Esse outro, ou seja, essa alteridade, é definida por Bonnici (2005, p. 15), o termo vem do latim alteritas, e significa ser o outro, ser diferente, manter a diversidade. O termo alteridade defendido por Bonnici, refere-se ao outro engajado num contexto político, cultural religioso e lingüístico.
Percebe-se que a alteridade é negada ao colonizado, este é excluído pelo discurso de poder, há a massificação em detrimento da singularidade do sujeito, que passa a ser objeto, coisa. Oliveira (2002, p. 34) nos diz que a igualdade pressupõe necessariamente conceituar e julgar o outro como responsável pela sua identidade. A dialética do escravo e do senhor é uma alegoria do mundo moderno, o que torna a tempestade uma peça atemporal e ainda, passível de muitas leituras críticas.

Referências:

-SAHAKESPEARE. W. A Tempestade. Tradução de Beatriz Viegas Faria. Porto Alegre: L & MP, 2002.
-GONÇALVES, A. A; BONNICI, T. Estratégias de Outremização em The narrative of Jacobus Coetzee.Maringá, PR, v. 27, n.2, p.151-161, 2005.
-BARZOTTO, L, A. Estratégias de sedução em King Solons mine. Disponível em: <>www.dge.uem.br//geonotas/vol16-1/ leone.shtml> Acesso em13 out. 2006.
-HALL, S. A identidade cultural na Pós-modernidade. 9. ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2004.
-OLIVEIRA, C.M. de. Pluralidade racial: um novo desafio para a psicologia. Psicologia: Ciência e profissão. Conselho Federal de Psicologia, Brasília, ano 22, p. 34- 45, 2002.