Rubén Darío e Florbela Espanca
A
poeta portuguesa Florbela Espanca (1894-1930) e o poeta nicaraguense Rubén
Darío (1867-1915) são personalidades literárias cuja relevância das obras e
legado de resistência aos discursos autoritários, via poesia, têm despertado na
contemporaneidade o interesse, tanto do público leitor, quanto de pesquisadores.
Embora tenham nascido em continentes diferentes e cumprido percursos literários
singulares, Florbela e Darío compartilharam da mesma modernidade, descrita por
Octávio Paz (1990) como sendo tempos de autodestruição criativa. Essa
autodestruição criativa descrita por Paz pode ser observada por meio do desejo
de ruptura com a tradição e com o status
quo propostos por Florbela e Darío.
As
variadas mudanças sócio-políticas e literárias propostas pela modernidade não
se ancoraram na negação do passado e nem da tradição, mas, na desconstrução e incorporação
dos códigos do passado, daí os questionamentos e contribuições que Florbela e
Darío propiciaram à tradição literária. A barreira que separava o antigo e o tradicional
do novo enfraqueceu fazendo desvanecer antagonismos, e o artista moderno foi convocado
a desempenhar as funções heróicas e de conseqüências trágicas, desvelar o
universal e sobreviver em um mundo onde a arte torna-se, cada vez mais,
mercadoria. Paz (1990, p. 37) salientou
que a época moderna, que teve início no século XVIII, engendrou aspectos como a
diferença, a heterogeneidade e a revolução, nomes que podem ser condensados em
apenas um: “futuro”.
Florbela
Espanca nasceu em Vila
Viçosa, Portugal. A poeta foi uma mulher extemporânea e a sua
obra é prenhe de encantamento. O eu florbeliano se metamorfoseia e joga com as
formas do mundo. Ele busca conhecer a si mesmo e desafia os lugares instituídos
e a distribuição desses lugares. Florbela trabalhou, poeticamente, variados
aspectos do universo feminino e a sua poesia possui uma sedução própria
da alteridade. A poeta ousou adentrar em um campo tradicionalmente masculino, a
literatura, e foi além, ela escreveu poemas que abarcam variadas vozes, e que
encontram ressonância no coletivo de deferentes épocas. Florbela cantou o amor,
o erotismo, a angústia, o desejo, o sonho, entre outros temas que revelam o seu
desejo de fazer dialogar dicotomias. Sua obra é marcada por uma inquietação
reveladora que desnuda, tanto a incapacidade de expressão plena do feminino,
quanto às dificuldades de realização profissional e pessoal comuns às mulheres
de sua época. A vida pessoal de Florbela
Espanca imantada pelo espírito da insurreição formou, juntamente como a sua
poesia, uma espécie de tragédia da vida privada.
Rubén
Darío nasceu em um pequeno povoado Nicaragüense chamado Metapa. O poeta é
considerado o príncipe das letras castelhanas, e foi um escritor que afirmou o
papel do artista nas discussões a respeito da sociedade e da cultura moderna denunciando
de forma irreverente os valores laicizados da sociedade burguesa emergente. Ele
registrou poeticamente a desarmonia relacionada à perda dos valores e dos ritos.
Darío lançou mãos de suportes como a pintura, a música, a ciência e o
pensamento filosófico na tessitura de seus poemas, lançou mão, também, dos
mitos. Estes aspectos contribuíram para com a renovação estética que culminaria
com o movimento modernista hispano-americano e a renovação das letras
castelhanas.
Florbela
Espanca incomodou a estamental sociedade católica portuguesa, não é
circunstancial que ela tenha se tornado uma importante referência para o
movimento feminista. Rubén Darío também sofreu muitas criticas à sua obra,
especialmente por parte dos nacionalistas que diziam que ele escondia um
penacho de índio centro-americano embaixo do chapéu francês. Política e Poética
são temáticas que se imbricam de forma especial nas obras desses dois poetas. Paz
(1990, p. 13) foi categórico ao afirmar que “a atividade poética é
revolucionária por natureza”, e a
poesia, uma “uma operação capaz de mudar o mundo”. Em consonâncias com este
pensamento está o do filósofo Jacques Rancière, para quem a criação poética só
se torna possível quando o homem se libera do peso da história, o que só
acontece a partir de uma insurgência violenta sobre a linguagem. Essa violência
consistiria em separar as palavras umas das outras, arrancando-as de suas conexões
e aproximações costumeiras, para que, num segundo ato, estas voltassem a se
reunir convertidas em “objeto de participação” (Paz 1990, p. 38).
Jacques
Rancière na obra Políticas da escrita
afirmou que “a escrita é coisa política”. O filósofo não fundamentou essa
afirmação apenas no fato da escrito ser um “instrumento de poder ou a via real
do saber”, mas, no fato dela, além de alegorizar a constituição estética de uma
comunidade, ser a forma como esta comunidade partilha o sensível e delimita os
seus espaços reais e simbólicos. Assim, política e escrita se inscrevem, de
forma radical, no campo da comunidade, permitindo aos grupos sociais designarem
o que lhes é comum, e diferenciando o que lhes é particular (RANCIÉRE, 1995, p.
7). A escrita, especialmente a poética, além de coisa política, traça e
significa uma redivisão entre as posições dos corpos, sejam eles quais forem,
operando uma re-divisão na ordem do discurso e das condições:
Escrever é o ato que,
aparentemente, não pode ser realizado sem significar, ao mesmo tempo, aquilo
que realiza: uma relação da mão que traça linhas ou signos com o corpo que ela
prolonga; desse corpo com alma que a anima e com os outros corpos com os quais
ele forma uma comunidade; dessa comunidade com a sua própria alma (RANCIÈRE,
1995, p. 7).
Os
pensamentos de Rancière e de Paz acerca da escrita confluem para a ideia de que
no principio da democracia, existe o poder da literalidade. Dessa forma, a
poética, “coisa política” e, “revolucionária por natureza”, para a pensadora Hannah
Arendt realciona-se com o campo do comum. Arendt (1999, p. 21) declarou que “a
política baseia-se na pluralidade dos homens”, em função dela tratar “da convivência
entre diferentes” para a realização de projetos comuns. Como podemos observar,
a partir dessa ótica, a operação poética torna-se um ato compartilhado, pois o
poeta cria e o povo recria o poema ao recitá-lo e, poeta e leitor compartilham
momentos de uma mesma realidade, de forma alternada, cíclica. Paz (1990)
identificou nesse processo cíclico a existência de uma centelha, a poesia. As
palavras que, durante a criação poética, foram separadas da fala coloquial ou
popular, se reagrupam tornado-se a fala de uma comunidade e, a linguagem comum
se transforma em imagens míticas e datadas de valor arquetípico. O poema é o
mediador entre a sociedade e aquilo que a funda, ele revela aquilo que somos e
nos convida a sermos aquilo que somos (PAZ, 1990, p. 39).
Florbela
Espanca e Rubén Darío foram, durante muito acusados pela critica de não terem
envolvimento político. Mas se a “uma sociedade dividida corresponde uma poesia
em rebelião”, como destacou Paz (1990, p. 41), é possível observarmos nas
poéticas de ambos um engajamento que põe em xeque essa ideia de alienação.
Uma
visada histórica revela que na virada do século XIX para o século XX, Portugal passou
por uma grande crise política e por importantes transformações sociais, Florbela
Espanca nasceu nesse tempo, e não foi alheia a ele. Em 1894 Portugal já vivenciava
há 43 anos uma monarquia parlamentar, instituída aos moldes do parlamento
inglês. Esse regime foi o resultado de um golpe militar dado pelo Marechal
Saldanha e esse tempo ficou conhecido como Regeneração,
este regime se estendeu até 1910,
época de instauração da República.
No
Portugal finissecular o pessimismo, sentimento que encontrava ressonância no
hedonismo decadentista, e que se alastrava por toda Europa, tomou conta da
intelectualidade portuguesa. Esse sentimento, aliado a um fato político
conhecido como ultimatum inglês, que
em 1890 forçou os portugueses a se
retirassem das colônias africanas, marcou a safra de poetas com os quais
Florbela dialogaria em suas obras. A concessão feita aos ingleses se deu em
função da franqueza de Portugal no cenário político-econômico internacional.
Este episódio foi o golpe fatal na monarquia, pois afastou os partidários da
burguesia e a intelectualidade ligada ao povo, aproximando-os dos ideais
republicanos.
Florbela
Espanca viveu tempos de governos provisórios. A Revolução Nacional de 1926 dissolveu
os grupos feministas portugueses que lutavam pelo sufrágio e pelo direito de
instrução das mulheres, estes movimentos políticos já marcavam uma concepção
antiparlamentar de Estado que culminaria com o Estado Novo, regime político
autoritário, que duraria de 1933
a 1974.
Octávio
Paz na obra El arco e La lira (1990,
p. 187) afirmou que o poema, além de ser algo que “transcende a história, e se
situa num tempo anterior a toda a história, no princípio do princípio, mas não
fora dela”, é também, como toda produção humana, “um produto histórico, filho
de um tempo e de um lugar”. Florbela fez parte de um grupo seleto de mulheres
portuguesas, ela teve acesso à educação, mas acabou abandonando o Liceu para se
casar. Seu pai, João Maria Espanca, era militante engajado do movimento
Republicano e recebia na sua casa, importantes personalidades políticas que
compartilhavam dos mesmos ideais. Foi em 1916, ano que Portugal ingressou na
Primeira Guerra Mundial, que, por meio de um amigo de seu pai, Florbela
conheceu Raul Proença, intelectual que, junto a outros poetas, integrou o
movimento cultural Renascença Portuguesa,
que buscava recuperar certos valores da tradição lusa para inseri-los na
modernidade. Esses poetas foram liderados pelo poeta Teixeira de Pascoaes e as
idéias do grupo foram divulgadas na revista A
Águia (GOMES, 1994, p, 117).
Posteriormente, Proença, já dissidente das revistas A Águia e Renascença Portuguesa, foi co-fundador da
revista Seara Nova, que entre os anos
de 1919 e 1927, foi símbolo de resistência ao salazarismo.
Foi
em 1916, também, que Florbela Espanca reuniu cerca de trinta poemas escritos
desde o ano anterior, em um caderno manuscrito que ela denominou Trocando Olhares. Nessa época a poeta se
declarou “anarquista” e, entre os poemas recolhidos no manuscrito Trocando Olhares, constava um projeto
poético chamado Alma de Portugal.
Carlos Sombrio publicou uma carta escrita de próprio punho por Florbela à Madame
Carvalho, na qual ela detalhava os seus planos:
[...] Submeto a apreciação de
V. EXª o esboço geral que eu já tinha formado acerca do livrito. Chamar-se-á Alma de Portugal e será dividido em duas
partes, intitulada a primeira: “Na Paz” e a segunda, “Na Guerra”. Madame acha
bem? Desta forma o livro terá um pensamento único a ligar todos os versos, e
não posso achar melhor pensamento do que esse em homenagem humilíssima à pátria
que estremeço (ESPANCA, 1994, p. 48).
Como afirmamos anteriormente, durante muito tempo a
critica míope acusou Florbela Espanca de ter sido uma poeta sem nenhum
envolvimento político, bem como, de ser superficial e refugiar-se no mundo dos
sonhos. José Gomes Ferreira (1965), amigo de Florbela dos tempos de
faculdade, no artigo intitulado Encontro
com Florbela Espanca, descreveu que, por acaso, ao desfolhar numa livraria
um manual escolar, encontrou “pela primeira vez”, o nome de Florbela Espanca: “lá jazia, [...] a poetisa mais
portuguesa de todos os tempos...”, e disse mais:
Florbela nunca desconfiou da
época em que viveu [...]. Presa por um último fio ao século XIX, nunca tentou
sequer suprimi-lo. O Orpheu (primeiro
rebate coletivo do século XX na literatura portuguesa) mal a atingiu por pontes
indiretas. Fernando Pessoa? Nem reparou. Nas noites de febre branca apenas lhe
martelava a obsessão de manter esperto o fogo do rastilho tradicional Antero-
Junqueiro- Nobre- Eugênio de Castro, quase a estinguir-se. Associem a esta
lista mais dois ou três poetas franceses (Baudelaire, Verlaine, Samain...) e
pronto, completa-se o quadro (FERREIRA,1965, p. 237).
O
artigo de Ferreira corrobora a imagem de uma poeta alheia aos acontecimentos
sócio-culturais e políticos de sua época. Outra imagem comum entre os críticos
e que teve muito destaque foi a de uma de escritora sem rumo, sem
espiritualidade e desiludida, que “teve
na poesia o meio de evasão que não possuiu no amor”, como observamos no trecho
do artigo Florbela e o Fantasma da morte,
escrito por Duarte de Montalegre, em 1947:
O suicídio esperava por
Florbela, e a poetisa abraçando-se a Morte, saboreou o beijo realizador que não
saboreou em vida [...]. Se a poetisa
pudesse encontrar dentro de si força de sublimação cristã, então sim,
completar-se-ia no encontro redentor. Isso era impossível, contudo, a sua
mentalidade, porque não tinha fé
[...]. É muito difícil, porém, notar
resignação cristã nos lamentos dolorosos de seus versos (MONTALEGRE, 1947, p.
32- 33, grifo nosso).
A marginalidade
vivenciada por Florbela Espanca dá visibilidade a uma questão crucial para o
entendimento do lugar de exclusão ocupado pela poeta enquanto literata, pois, a
poesia era um lugar tradicionalmente masculino e Florbela era uma mulher. Ana de Castro Osório relatou que a poeta não
abriu para si “nenhum horizonte profissional” a não ser o de “literata”,
atributo considerado “o mais desagradável que podia ser dito de uma senhora,
que era vista com um livro na mão” (ESPANCA, 1995, p. 16).
O
manuscrito Trocando olhares foi, alem de nascedouro de variados projetos poéticos de Florbela, a fonte onde ela buscou
poemas que integrariam as suas obras publicadas. Em vida, a poeta publicou o Livro de Mágoas (1919) e o Livro de Sóror Saudade (1923), porém, o
seu terceiro livro, Charneca em Flor
(1930), foi publicado postumamente, pouco tempo após o seu suicídio, no dia em
que completaria 36 anos de idade, em 1930.
A
agitação causada pelo suicídio e o silêncio da mídia quanto à morte de Florbela,
incomodou a classe intelectual, especialmente a feminina/feminista, que se
reunia em torno da Revista Portugal
Feminino, grupo que fora freqüentado por Florbela no seu ultimo ano de vida.
Esse movimento em torno da memória de Florbela Espanca foi denominado por Maria
Lúcia Dal Farra como “affaire Florbela
Espanca”. A partir de então Florbela
Espanca se tornou bandeira do
movimento feminista português que ressurgia apresentando-se como uma ameaça à
ideologia dominante. O regime ditatorial de Salazar considerou Florbela Espanca
um “anti-modelo do feminino”, em função de “sua vida privada”, marcada pela
“ruína” e “pela miséria” (ESPANCA, 2002, p. 17).
Florbela foi uma mulher cujos interesses caminharam na
contramão do que se esperava de uma mulher no primeiro quartel do século XX e a
poeta tinha plena consciência de seu desenquadramento:
Eu não sou em muitas coisas nada mulher; pouco de
feminino tenho em quase todas as distrações de minha vida. Todas as ninharias
pueris em que as mulheres se comprazem, toda a fina gentileza duns trabalhos em
seda e oiro, as rendas, os bordados, a pintura, tudo isso que eu admiro e adoro
em todas as mãos de mulher, não se dão bem nas minhas apenas talhadas para
folhear livros que são, verdadeiramente, os meus mais queridos amigos e os meus
inseparáveis companheiros (ESPANCA, 2002, p. 223).
É
consenso entre variados pensadores que Florbela não pode ser considerada uma modernista
aos moldes do Orpheu, porém, a poeta
não pode ser arrancada do cenário da modernidade e nem do século XX, época em
que construiu sua obra e que viveu. José Carlos Seabra Pereira, classificou
Florbela Espanca como “neo-romântica”, ao passo que mostrou o desvio que ela
representou em relação aos movimentos literários da altura: “o luzitanismo, o
vitalismo e o saudosismo” (DAL FARRA, 1995, p. 30). A pesquisadora Renata Junqueira (2003, p. 32)
chamou atenção para o fato de que, se as ligações dos escritores modernos com
os valores de fin de siècle fossem
mais claras, poderiam ser associados outros nomes que não somente os de
Fernando Pessoa, Mário Sá- Carneiro, Almada-Negreiro, a este movimento, e “o
nome de Florbela Espanca estaria na lista dos convidados, sem dúvida”.
Toda
a obra de Florbela Espanca nasceu do diálogo que a poeta estabeleceu com o seu
tempo, com a tradição literária, com os críticos, com a família e os amigos. O
seu percurso literário revela interlocuções fundamentais, e mostra que a poeta
produziu em consonância com o seu tempo, embora tenha sido alijada dele pela
critica. Chamamos a atenção para o livro póstumo de Florbela Espanca, Charneca em Flor, que escandalizou a sociedade católica portuguesa pelo
seu erotismo, como pode ser observado no soneto de abertura do mesmo, que
possui o mesmo nome da obra:
Enche o meu peito num encanto
mago.
O frêmito das coisas dolorosas.
Sob as urzes queimadas nascem
rosas...
Nos meus olhos as lágrimas
apago...
Anseio! Asas abertas! O que
trago
Em mim? Eu oiço bocas
silenciosas
Murmura-me as palavras
misteriosas
Que perturbam meu ser como um
afago!
E nessa febre ansiosa que me
invade.
Dispo a minha, o meu burel,
E, já não sou, amor, Sóror
Saudade...
Olhos a arder em êxtase de
amor,
Boca a saber a sol, a fruto, a
mel:
Sou a charneca rude a abrir em
flor.
(ESPANCA, 1996)
O amor, o erotismo, a entrega, o corpo da
mulher transmutado em terra fértil que se abre em flor, são temáticas que
revelam a ruptura de Florbela com o ideário
feminino de sua época. Acreditamos que o engajamento político da poeta aconteceu,
predominantemente, via poesia. Ao poetizar o universo feminino, Florbela também
contribuiu para com a denúncia do silenciamento milenar que marcou o discurso
feminino na história.
Nas obras anteriores ao livro Charneca em Flor, Florbela Espanca dialogou com a tradição dos
trovadores medievais, por meio das quadras populares, e com temas como a dor, a
saudade e a melancolia, por meio da interlocução com poetas portugueses como
Antônio Nobre, Raul Brandão, Américo Durão. Por meio desses poetas,
incorporou-se à poética florbeliana, a tradição Garrettiana e a Junqueirista,
bem como as vozes de Simbolistas como Baudelaire, Verlaine, Samain, com
lampejos de um Musset. Importa-nos destacar uma interlocução ainda pouco
pesquisada, esta realizada com o poeta nicaragüense Rubén Darío.
Se a
poética de Florbela Espanca rompeu com o ideário feminino de sua época,
encontraremos na poética de Rubén Darío uma ruptura com o cânone literário que
será responsável pela renovação das letras hispano-americanas e marcará o
surgimento do primeiro movimento genuinamente hispano-americano, o Modernismo. As
poéticas de Florbela Espanca e de Rubén Darío comungam, tanto a tendência de
romper com o status quo, quanto questões
relacionadas ao erotismo.
Dario
reuniu a tradição neolatina em sua obra, dialogando cristianismo e paganismo, e
elegendo o personagem grego Orfeu e seus mistérios, música e magia primitiva,
como potencializador de encantamento, revolucionando dessa forma a poética
hispano-americana. Assim como Florbela Espanca em Portugal, Rubén Darío viu a
sua terra natal, a Nicarágua, passar por muitas intervenções políticas. Desde a
Doutrina Monroe, documento construído
pelos Estados Unidos que considerava as repúblicas hispânicas recém libertas do
jugo colonial imaturas para se auto-governarem e, portanto, dependendo da sua
intervenção e proteção, a América Hispânica foi enredada em uma nova forma de
colonização, o neo-colonialismo norte-americano.
Um
dos poetas nicaragüenses mais importantes do século XX, José Coronel Urtecho
(1906-1994), escreveu no prólogo para a obra Cantares de la liberdad: antologias para la nueva Nicarágua (1984) que:
Foram em realidade os poetas
nicaragüenses, desde Rubén Darío em diante, os que de certa maneira
predispuseram a sensibilidade nicaragüense e até certa medida a cultura
nicaragüense para a revolução. Não é de se estranhar que quase todos os poetas
nicaragüenses tenham se identificado com o povo, assim como quase todos os
poetas latino-americanos, porém, ao contrário desses, quase todos os poetas
nicaragüenses identificados religiosamente com o povo, não se identificaram com
a burguesia que lhes era antagônica e, cuja religiosidade formal só poderia ser
a expressão de seus interesses econômicos [...]. A realidade é que a revolução nicaragüense
parece estar, assim como a Nicarágua, intimamente vinculada à poesia. [...] por
revolução se entende agora a Nicarágua como sendo a conjunção de Darío e
Sandino. [...] A partir desta perspectiva é que se pode assegurar que a
revolução da Nicarágua, que a revolução que é a Nicarágua, é um poema coletivo
(CASALDALIGA, 1984, p. X-XI).
Frantz
Fanon (1979), cuja obra, Os condenados da
terra, é um marco na análise da relação dominador/dominados, a partir da
ótica da minoria destaca a importância do poeta, assim como o fez Urtecho,
afirmando que este, sendo colonizado, deve “determinar com clareza o tema povo
de sua criação”, pois:
Só se pode avançar
resolutamente quando, antes de tudo, se toma consciência de sua alienação.
[...] O homem colonizado que escreve para o seu povo deve, quando utiliza o
passado, fazê-lo com o propósito de abrir o futuro, convidar a ação, fundar a esperança.
Mas para garantir a esperança, para lhe dar densidade, é preciso participar da
ação, engajar-se de corpo e alma no combate nacional (FANON, 1979, p. 193).
A
luta revolucionária pela libertação dos países da América Hispânica das garras
da metrópole espanhola foi alimentada pela desigualdade social, exploração
econômica e opressão política, nos faz saber González (1997, p. 17). Desde os tempos da colonização a sociedade
dividiu-se em classes muito desiguais: “peninsulares, criollos, indios, mestizos
y negros”. Rubén Darío era mestiço, ou
seja, ele integrava um grupo social que, ao molde das castas, geralmente era
formado por pessoas encarregadas de realizar trabalhos mecânicos, e era, também,
a força motriz da milícia. Juan Antonio Cabezas (1954) na obra Rubén Darío: um poeta y uma vida,
delineou a trajetória de vida de Darío destacando que o poeta veio à luz contra
a vontade de seus progenitores, sendo criado, como filho, pelo coronel Ramirez,
homem influente que era amigo e colaborador do general Máximo Jerez, que
foi seu padrinho de batismo. Estes apadrinhamentos possibilitaram que Darío
crescesse numa casa grande, estilo colonial, tivesse educação, dentre outras
oportunidades. O pai biológico de Darío, Manuel Darío, não foi presente na sua
criação, nem lhe ofertou afetividade paterna, relatou o próprio poeta em sua
biografia, e a sua mãe, Rosa Sarmiento, não foi mais que uma sombra na sua
história.
Darío,
que era um menino mestiço, passou a estudar com os jesuítas da Companhia de
Jesus e, com 14 anos de idade, teve acesso à redação do periódico político La Verdad,
onde escreveu versos blasfemos e artigos contra o governo. O jovem poeta tomava
como modelo os textos de um escritor equatoriano “famoso, violento, castiço e
ilustre” chamado Juan Montalvo. Iniciava-se aí um enlace com a política e com a
poesia, bem como com os periódicos, a imprensa e com o governo que duraria por
toda a sua vida. Estas publicações tornaram Dario conhecido na Nicarágua e nas
outras quatro repúblicas da América Central ele ficou conhecido como “o poeta
menino” (DARÍO, 1990, p. 15).
Darío
possui uma vasta obra que percorre a poesia clássica e metrificada, á prosa
poética, novela, contos e crônicas. Ele foi embaixador da Nicarágua em variados
países e correspondente em jornais como o La Nacion
de Buenos Aires. Seus livros mais conhecidos são Azul, publicado em 1888, Prosas
profanas e outros poemas, em 1896, e Cantos
de Vida e Esperança. Os cisnes e
outros poemas, publicados em 1905.
O
poeta Cosmopolita abriu os versos castelhanos à poesia francesa que, processada
pelo simbolismo, possibilitou uma renovação dos mesmos e, especialmente,
vencendo a resistência da Espanha e enfraquecendo o casticismo. A
modernização “à francesa” apresentou-se como uma forma de “resistência” e uma
“alternativa ao domínio cultural espanhol”, paralelo a este movimento, tomava
força um discurso de independência em toda América Central
(FIORUSSI, 2010, p. 43).
A
publicação do primeiro livro de poemas de Darío, Azul, repercutiu no meio
culto, especialmente entre jovens poetas e em torno de seu nome também se
reuniram grandes poetas do modernismo. Prosas
profanas, publicado em 1893, se tornaria um marco deste movimento literário
e a escrita de Darío passaria a incorporar de forma mais aguerrida questões
políticas e sociais. Em 1898 a
obra Cantos de vida y esperanza, deu
voz a sentimentos nacionais. Essa literatura de incorporação, ou, impura, delineada
por Darío e seguida por outros poetas, deu forma ao Modernismo Hispano-Americano
e foi a base da Vanguarda Latino-Americana, a partir da qual a América Latina
passou a construir seus próprios modelos literários e culturais, e a criar
referências para si mesma e para outrem.
Os
deslocamentos nômades de Darío levaram-no a Nova York. No hotel onde se
hospedou integrou-se a um grupo de imigrantes cubanos que conspirava contra a
Espanha, dentre os quais, se encontrava José Martí, colaborador do jornal La Nacion,
e Gonzalo de Quesada, e desde então Darío passou a participar dos encontros dos
correligionários de Martí. O líder
revolucionário, que era também escritor, acolheu a Darío e aos seus versos e
chamou-o de “filho” (CABEZAS, 1954, p. 92). Importa ressaltar que as revoluções
pelas quais passaram os países hispânicos em busca de independência, imbricam-se
com as revoluções estéticas, em especial como a revolução estética promovida
por Rubén Darío, o Modernismo.
O
modernismo latino-americano irrompeu com a ‘geração de 98’, sem abandonar as suas
conquistas formais, dando forma à literatura latino-americana do século XX. Sob
o signo do Modernismo, Darío escreveu, em 1901, em resposta a intervenção
ianque, no panamá, em 1903 aquele que é considerado o primeiro grande poema
político da literatura latino-americana, o poema A Roosevelt, onde ressoam muitos “nãos”, observemos o fragmento do
poema:
[...]
Eres los Estados Unidos,
Eres
el futuro invasor
De
la América
ingenua que tiene sangre indígena,
Que
aun reza a Jeuscrissto y aún habla en espanhol.
[…]
(DARIO, 2004, p. 71).
O
Chileno Francisco Contreras descreveu a irrupção dos problemas nacionais na
literatura latino-americana tomando como ponto de Partida Cantos de vida e esperança, de Darío, destacando o poeta como “o
fundador da lírica hispano-americana” (RETAMAR, 1989, p. 124). Nas “Palavras
preliminares” de Prosas profanas
Rúben Darío escreveu: “Existe no meu sangue alguma gota de sangue africano, ou
de índio chorotega ou nagrandano? Pode ser, a despeito de minhas mãos de
marquês; entretanto, vereis em meus versos princesas, reis, coisas imperiais,
visões de países longínquos ou impossíveis”, essa gota de sangue afriacano ou índio, citada por Darío,
ressoará em poetas como Vallejo, Arguedas, Gullén, Carpentier, Rulfo, em
Cesaire, em Neruda e Jorge Amado, enquanto a visão de países longínquos ou
impossíveis ressoará em escritores como José Maria Egurem, Vicente Huidobro,
Jorge Luiz Borges ou Haroldo de Campos. Jorge Luiz Borges afirmaria em 1955:
“Nossa pátria é a humanidade” (RETAMAR, 1989, p. 127).
Rubén
Darío lançou mão da riqueza e heterogenia de variados produtos culturais, como
a mitologia, submetendo-os a recombinações que alteraram radicalmente seus
valores originais, mesclando-os a outros materiais. Darío desafiou um código
fechado, instituído, recodificando, dessa forma, a poesia produzida na América
central, ou seja, inserindo novos códigos na poesia hispânica. Darío afirmou
que a obra Prosas profanas causou um
grande escândalo entre os seguidores da tradição e do dogma acadêmico, e que
não faltaram censuras e ataques, mas que ele contou com a defesa de “destemidos
soldados da reforma nascente” (DARÍO, 1990, p. 83).
Foi
a partir da obra Cantos de vida e de esperança, publicado em Madri, em 1905, que o poeta passou a utilizar com
maior intensidade os mitos, e a destacar a coragem dos povos hispânicos; e
passou também a denunciar a intervenção dos Estados Unidos na soberania dos
países da América Hispânica. No poema Cyrano
em España o poeta diz:
¡Oh poeta! Oh celeste poeta de la
facha
Grotesca!
Bravo y nobre y sin miedo y sin tacha,
Príncipe de loucuras, e suenos
y de rimas.
(DARÍO, 2004, p. 64).
Este
poema, escrito em versos alexandrinos, demonstra como Darío uniu à erudição
poética, temáticas que trouxeram para primeiro plano personagens hispânicos. Darío
diálogou com os escritores finiseculares como Charles Baudelaire, Victor Hugo,
Verlain, com a tradição hispânica e Espanhola, com os mitos. A temática
política ficará ainda mais forte nos livros subseqüentes de Darío. No poema Cyrano em España o poeta diz:
Y
Cyrano há leído la maravilla escrita
Y
al pronunciar el nombre del Quijote, se quita
Bergerac
el sombrero: Cyrano Balazote
Siente
que es lengua suya la lengua del Quijote.
[...]
¡Oh
poeta! Oh celeste poeta de la facha
Grotesca!
Bravo y nobre y sin miedo y sin tacha,
Príncipe de loucuras, e sueños
y de rimas.
(DARÍO, 2004, p. 64).
Destaco que Rubén Darío é poeta
chave para o entendimento da história da poesia hispano-americana.
Rubén Darío e Florbela Espanca
se tangenciam de forma especial no terceiro livro publicado de Florbela, Charneca em Flor (1919). Defendo a tese
de que, ao escolher Dario como epígrafe da obra Charneca em Flor, Florbela Espanca ultrapassou o desejo de apenas
homenagear o poeta, até porque nos seus livros anteriores é possível perceber
que os autores escolhidos para as epígrafes, extrapolam este espaço especifico,
atravessando toda a obra. Charneca em Flor chocou a sociedade
católica portuguesa por seu erotismo, como pode ser observado no soneto de
abertura, de mesmo nome do livro:
Enche o meu peito num encanto
mago.
O frêmito das coisas dolorosas.
Sob as urzes queimadas nascem
rosas...
Nos meus olhos as lágrimas
apago...
Anseio! Asas abertas! O que
trago
Em mim? Eu oiço bocas
silenciosas
Murmura-me as palavras
misteriosas
Que perturbam meu ser como um
afago!
E nessa febre ansiosa que me
invade.
Dispo a minha, o meu burel,
E, já não sou, amor, Sóror
Saudade...
Olhos a arder em êxtase de
amor,
Boca a saber a sol, a fruto, a
mel:
Sou a charneca rude a abrir em
flor.
(ESPANCA, 1996)
Temas relacionados ao erotismo como a entrega,
o corpo transmutado em terra fértil se abrindo em flor, comungam com o universo
dariano. É possível, também, perceber que Florbela Espanca e Rubén Darío possuem
afinidades nas suas interlocuções. Ambos beberam da tradição simbolista
francesa e do acervo poético medieval; ambos, também, tinham como referências
os poetas Verlaine, Eugênio de Castro, Samain, entre outros, valendo ressaltar
que, Darío era um profundo admirador da poesia de Walt Whitman. Florbela e
Darío dialogam não apenas a partir de seus interlocutores, mas dos temas e da
forma poética culta e popular, os quartetos e os sonetos.
A
possessão erótica, em Dario, é o reencontro consigo mesmo, e em Florbela, como
nos faz saber Maria Lúcia Dal Farra (2002, p. 20), o erotismo possui “sinal de
menos”, por ser marcado mais pelo “comedimento”, “retiro” e “silêncio”, que
pelo “excesso”. Esta crítica explica que:
Para proferir o erótico é
preciso derrubar barreiras, estilhaçar a permissão, visto que é de tabu social
que se trata – e era assim, pelo menos na época em que Florbela ensaiava
fazê-lo. Transgredir é, portanto, a
única lei viável para os arroubos sensuais. E depois, sendo a atividade
erótica aquela que ocupa por inteiro o sujeito, ou ele deixa de fruir o seu
momento prazeroso com o fito de poder comunicá-lo com precisão, ou a ele se
entrega desmensuradamente sem direito de voz (DAL FARRA, 2002, p. 20, grifo
nosso).
Onde
Florbela poderia buscar afirmação para o seu discurso feminino e transgressor
se não fora da própria casa? A poética de Darío, mesmo com o crescimento
desordenado da metrópole, preservou a ordem natural, expresso pela sua “selva
sagrada”, onde, a partir de uma articulação de símbolos, forma uma unidade em
que os opostos podem coexistir. Na “selva sagrada” dariana os contrários
aspiram à unidade, se necessitam e se juntam, para, reconstituir a sua forma
primordial. Já Florbela, faz da Charneca rude e “sacrossanta”, o seu corpo a
florir; este é o seu espaço sagrado, é onde poderá despir-se do hábito de
monja, sair da clausura e liberar a força latente e pulsante que, em toda a sua
poética anterior, é ensaiada. A propósito, Dal Farra destaca que:
A mediação da natureza para a
inovação do corpo e do desejo, se por um lado, não deixa de ser sintoma do
pudor traduzido da convivência com a Sóror, por outro se impõe como o mais
eficaz meio de sedução, mercê do enviesamento e da insinuação próprios. Mas
enfim, são estes os ganhos [...] ela ganhou o direito de abrir ou fechar,
segundo seu próprio alvitre, a sua cela. Atingiu, finalmente, a tão ansiada maioridade poética! (ESPANCA, 1996, p.
XLIV).
A
relação entre as poéticas de Florbela Espanca e de Rubén Darío são, ainda,
pouco estudadas, o que nos causa estranheza, pois o conhecimento da obra deste
poeta é relevante para uma compreensão da lírica hispano-americana e, no caso
em questão, para o entendimento do Livro Charneca
em Flor, de Florbela. Esta importância
pode ser observada, por exemplo, em um dos sonetos mais conhecidos,
traduzidos e musicados de Florbela Espanca, intitulado Amar, que mostra grande afinidade com o poema Amo, Amas..., de Rubén Darío. Este poema foi o escolhido como
epígrafe do livro Charneca em Flor.
Estes dois poemas
dialogam entre si e com outros poemas da literatura mundial.
A
análise que se segue foi feita por nós e consta na dissertação de mestrado
intitulada; Vozes femininas: a polifonia
arquetípica em
Florbela Espanca. Observemos os poemas:
Amar
Eu quero amar, amar,
perdidamente!
Amar só por amar; Aqui...
além...
Mais este e Aquele, o Outro e a
toda gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer?
Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É
bem?
Quem disser que se pode amar
alguém
Durante a vida inteira é porque
mente!
Há uma primavera em cada vida;
É preciso cantá-la assim
florida,
Pois se Deus nos deu voz foi
pra cantar!
E se um dia hei de ser pó,
cinza e nada
Que seja a minha noite uma
alvorada,
Que me saiba perder... pra me
encontrar...
(ESPANCA, 1996, p. 232).
Amo, Amas
Amar, amar, amar, amar siempre
y com todo
El ser com La tierra y com El
cielo,
Com
lo claro Del sol y lo obscuro Del lodo.
Amar
por ciência y amar por todo anelo.
Y
cuando La montaña de La vida
Nos
sea dura y larga, y alta, y llena de abismos,
Amar
La inmensidad, que ES de amor encendida,
Y
arder em La fusión de nuestros pechos mismos....
(ESPANCA,
1996, p. 207).
Arturo
Massaro ressaltou que, para Darío, a doutrina do amor é: “exaltação universal,
é romântica: aspiração de amor indefinido, filantrópico” é “amor universal, sem
ser graça ou caridade, abarca as antinomias do que se pode ou não amar, e do
que se deve ou não se deve amar.” Dario compôs o poema Amo, Amas, após ler Plotino e em dialogo estreito com Victor Hugo e
Charles Guérin. Estes escritores persistem na repetição de caráter afetivo. Em
Hipólito de Eurípedes, por sua vez, é a voz do coro que clama: “amor, amor”...
“Eros, Eros”. O coro também se faz ouvir em Garliaso (soneto XXVII): Amor,
Amor... e Gerin repete três vezes, amar: “Une voix murmurait dans l’ombre:/
Amour! Amour! Amour! Amour!” (MASSARO, 1954, p. 273).
Eis
aí a emergência da voz lírica de Florbela Espanca, sempre coral, de ecos de
ecos. Florbela Espanca segue um fluxo vocal que
abarca, a partir da voz de Darío, também as vozes de Plotino, Hugo, Guérin,
etc., o que reafirma a polifonia da sua poética, bem como sua relação de
abertura radical para a alteridade e a linguagem
Florbela
e Darío cantam o desencontro, o eu poético florbeliano, no soneto Versos de orgulho é uma “Princesa” entre
“plebeus”, presa, “numa torre de orgulho e de desdém”, princesa com asas, com
possibilidade de voar e ascender aos céus, asas que os outros lhe invejam
porque não as possuem (ESPANCA, 1996, p. 210). Darío, por sua vez, em Canción de Otonõ busca sua princesa, mas
não há princesa para cantar: “Mi sed de amor no tiene fin” e busca entre
“Herodias y Salomé”, a princesa. “Em
vano busque a La princesa/ que estaba triste de esperar/ La vida es dura.
Amarga y pesa./ Y no hay princesa que cantar” (MASSARO, 1954, p.
227-228).
Florbela
Espanca travou, através de sua poesia, um embate com outros discursos, no caso,
vozes que ultrapassaram as fronteiras e continentes, e a sua poética é uma resposta
a estes outros enunciados. Dario diz em A Uma estrella, do livro Azul: “Princesa del divino imperio azul, quem besara tus lábios
luminosos!, ele se define como “el enamorado estático” que sonha e canta em
seus sonetos “tu místico florecimiento”, revela a o desejo de “contarte um
poema sideral, [...] ser tu amante ruiseñor, e darte mi apasionato ritornelo,
mi etérea e mi rubia somadora” ele diz que a luz de sua musa “hace cantar a los
poetas” (DARIO, 2009, p. 133-34). Dario clama por uma musa, uma princesa que
possa cantar, aquela que será uma luz a guiá-lo, Florbela responde: “E fui
aquela que habitou Paços Reais;/ No mármore de curvas ogivais/ [...] Tantos
poetas em versos me cantou” (ESPANCA, 1996, 68).
A
vida extemporânea da poeta Florbela Espanca deu forma ao fenômeno que denominei
“amalgama vida e obra”, numa confusão que muitas vezes transformou a poeta em
caso clínico. Com Darío não foi diferente, ele foi considerado um castizo, ou seja, portador de um
discurso que, ao contrário do purismo
que normatizava e buscava proteger a “pureza” do castelhano, acolhia o
estrangeirismo. O discurso castizo
possuía bastante força no fim do século XIX e pode ser confundido com o
discurso xenófobo. O critico Juan Valera afirmou que não existia catelhano mais
francês que Darío e classificou a inclinação parisiense do poeta como
patológica. O discurso de Valera embora pareça ferrenho, estava balizado pelo
casticismo da época (FIORUSSI, 2010, p. 41).
Acreditamos
na existência de uma responsividade entre as poéticas de Florbela Espanca e de
Rubén Darío no livro Charneca em flor,
e que a poesia atuou como estratégia de resistência para estes autores que
conquistaram um lugar de destaque no cânone literário, depois de muitos
conflitos com a ordem política e ideológica dominante
Referências:
§ CABEZAS,
Juan Antônio. Rubén Darío: um poeta y
uma vida. Buenos Aires: Espalsa-Calpe, 1954.
§ DARÍO, Rúben. Autobiografia: oro de Mallorca. Introduccíon de Antonio Piedra.
España: Mondadori, 1990.
§ DARÍO, RUBÉN. Cantos de vida y esperanza. Madrid: Alianza Editorial, 2004.
§
DARIO, Ruben, Quarenta e cinco poemas. Disponível em <http://www.scribd.com/doc/10551970/Ruben-Dario-Cuarenta-y-cinco-poemas>.
Acesso em 21 de dez de 2009.
§
ESPANCA, Florbela. Poemas Florbela Espanca. Estudo introdutório, edição e notas de
Maria Lúcia Dal Farra. Martins Fontes. 1996.
§
ESPANCA, Florbela. Afinado Desconcerto: (contos, cartas e diário). Estudo
introdutório, apresentações, organização e notas de Maria Lúcia Dal Farra. São
Paulo: Iluminuras, 2002.
§ ESPANCA,
Florbela. Florbela Espanca. Organizado
por Maria Lúcia Dal Farra. Rio de Janeiro: Agir, 1995. (Nossos Clássicos; 121).
§
FANON, Frantz. Os condenados da terra. 2. Ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1979.
§ FIORUCCI,
André. Jóias novas de prata antiga:
Artifício e versatilidade na poesia de Rubén Darío, São Paulo: FFCH/USP, 2010.
(Coleção Produção acadêmica premiada)
§
GONZÁLEZ,
Mirza L. Literatura revolucionária
hispano-americana. Madrid: Editorial Betânia, 1994.
§
HANNAH, Arendt. O que é política. 2. Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
§
JUNQUEIRA, Renata Soares. Florbela Espanca uma estética da teatralidade. São Paulo: UNESP,
2003.
§
MASSARO,
Anturo. Ruben Dario y su creación poética. Bueno Aires: Kapelusz,
1954.
§
MONTALEGRE, Duarte de. Florbela e o fantasma da Morte. [s.l.], 1947.
§ PAZ, Octávio. El arco y la lira. 7. Ed. México: Fondo de Cultura Econômica, 1990.
§
PAZ,
Octávio. Los hijos del limo: Del
Romantismo a La vanguardia. Barcelona: Seix Barral, 1993.
§
RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Rio de janeiro: Editora 34, 1995. (Coleção
Trans)
§
RETAMAR. Roberto Fernández. Caliban e outros ensaios. Prefácio de Darcy Ribeiro. São Paulo:
Busca Vida, 1988.