Espaço literário e de defesa da arte, do meio ambiente e da democracia, compartilhado pela escritora e ativista ambiental Renata Bomfim.

27/03/2009

O Estrangeiro de Albert Camus: Filosofia e linguagem

Renata Bomfim – UFES
XXXXXA escrita de Albert Camus (1913- 1960) se inscreve numa época de grande conflito e sofrimento mundial, especialmente para a Europa que estava devastada pela guerra. O romance O Estrangeiro foi publicado em 1942 e tem como cenário a cidade de Argel, terra natal do escritor, lugar onde viveu durante alguns anos e onde começou a carreira como jornalista.
XXXXX Camus participou diretamente dos acontecimentos de seu tempo e, por meio da escrita, teceu uma ácida critica social ao século XX. Filosofia e linguagem se interpenetram e complementam em O estrangeiro, cunhando uma visão de mundo fundada no absurdo e no sentimento trágico da vida, visão geradora de desconfiança intensa para com aqueles que constroem e lutam para perpetuar os sistemas de valores. O temperamento de Camus e suas leituras de Nietzsche nutriram as suas suspeitas com relação a toda moral tradicional. De forma inquietante o escritor se entregada ao questionamento: como o homem deveria se conduzir em geral e, durante os anos obscuros, quando não acredita nem em Deus e nem na razão?(TODD, acesso em 23 nov. 2006).
XXXXX A obra camusiana apresenta e descreve o absurdo como algo da condição humana. Em Explicações de O Estrangeiro”, Sartre já afirmava que: “Se somos capazes de recusar a ajuda enganosa das religiões ou das filosofias existenciais, restam-nos algumas evidências essenciais, o mundo é um caos, [...] não há dia seguinte, visto que se morre”. Para Sartre, Camus tinha um certo gênero de sinistro solar, ordenado, cerimonioso e deslocado”, que anunciava “um clássico, um mediterrânico”, que diferiria desse “outro mediterrânico” em muitos aspectos, não lembrando tanto um “fenomenólogo ou um existencialista dinamarquês” (SARTRE, 1968, p.89-90).
XXXXX Já Boudon (1996, p. 1), ressaltava que O estrangeiro fitava a narrativa, “a partir do olhar do artista sobre o existir velado na sua estrangeidade, estado difuso, compacto, encoberto”, absurdo que pode ser percebido e descrito sob vários aspectos da obra, especialmente, no silêncio. Uma ausência propositada da fala, magistralmente trabalhada por Camus, põe Meursault, protagonista principal do romance, contra a convenção. Holanda (1992, p. 42) em Criação e Crítica afirma que “a linguagem contém seu poder de liberdade, de subversão do real, quando uma palavra imprescindível, um acordo inesperado, nos acorda a consciência". Para essa critica, “o primeiro passo de Meursault é o de tirar da palavra o ‘phathos’, termo grego que designa sentimentos, estados da alma, cujo peso impede uma relação mais livre com o mundo”.
XXXX O personagem Meursault surge como representante do absurdo camusiano que, para Sartre (1968, p. 90), “nascerá da impotência que temos de pensar com os nossos conceitos e com as nossas palavras os acontecimentos do mundo". O homem absurdo camusiano não vive sob os paradigmas da razão e nem da moral estabelecidas, o que pode ser percebido na abertura do livro, quando nos deparamos com o episódio da morte da mãe de Meursault: “Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem” (CAMUS, 1957, p. 9). Percebe-se que a linguagem é seca, fria, concisa, e há a ausência de emoção, como se a história fosse a de outro, e não a dele. Noutra passagem, desta vez no ônibus, a caminho do asilo, Meursault pensa que “poderia vê-la rápido” [refere-se à mãe morta], para poder “aproveitar os dois dias de folga que havia conseguido”. Ele dorme durante todo o trajeto e, ao chegar no asilo, quando perguntado se gostaria de ver a mãe, responde que não, a resposta do personagem suscita a réplica por parte de seu interlocutor, “por que não?”, e ele responde, “não sei”.
XXXXX Assim, palavras como não sei, tanto faz, nada comentei, disse que sim, mas tanto fazia, fazem parte do vocabulário de Meursault. Sartre (1968, p. 98) diz que “um mal comum a muitos escritores contemporâneos é a obsessão do silêncio”. O silêncio na obra de Camus reflete “a demasiada desconfiança diante do signo lingüístico”, Para Holanda (1992, 68), não podendo calar a sociedade, Meursault cala a si mesmo, e seu comportamento é o de quem “tendo perdido a adesão ao que as palavras vinculam, perdeu aí, a significação do mundo até então seu. Seu silêncio assinala desapropriação do mundo, desinteresse.
XXXXX Meursault reproduz em outros espaços e em diferentes situações a indiferença com que tratou a morte da mãe, por exemplo, quando é convidado por seu chefe para trabalhar em Paris, responde “que sim, mas que, no fundo tanto fazia”. Pois afinal, não tinha razões para mudar a sua vida (CAMUS, 1957 p. 46). Faltava a Meursault, uma razão, um sentido na vida. Corrobora essa afirmação a passagem em que a sua namorada, Maria, lhe perguntou se queria se casar com ela, e novamente a indiferença de Meursault se pronunciou, para ele “tanto fazia” casar ou não, “isso nada queria dizer”.Há também por parte desse personagem a banalização das instituições, das leis, a postura de Meursault aponta para um desmoronamento de valores que norteiam a vida social dos indivíduos. Maria lhe disse que “casamento é ciosa séria”, mas ele nada respondeu preferindo calar-se. Para Holanda (1992, p42) “O homem é prisioneiro de sua ordem social, [...] e também de sua linguagem. O silêncio em Meursault vai contra a convenção que pouco permite ao indivíduo que a sociedade paralisa a partir da linguagem que põe a sua disposição.
XXXXX Quanto ao crime cometido por Meursault, reproduz-se a indiferença, o personagem tira a vida de um árabe em circunstâncias repletas de subjetividade. Assassino circunstancial, Meursault atribui a culpa por seu ato criminoso ao sol e em várias passagens que cercam o acontecido ele atribui vinculação ao sol: “O sol estava agora esmagador”, “Era o mesmo brilho vermelho”, “sentia a testa inchar sob o sol”, “eu estava só [...] todo corpo ao sol”, “era o mesmo sol do dia em que enterrara mamãe”, “o gatilho cedeu”, “sacudi o suor e o sol”. Acerca da presença do sol na escrita camusiana, Sartre (1968, p. 99) escreve que “O estrangeiro oferece uma série de opiniões luminosas, [e que o] verão perpétuo de Argel é a sua estação preferida, a noite quase não entra no seu universo”.
XXXXX A narrativa nos mostra que as noções de bem e de mal parecem indiferentes para Meursault que, após cometer o assassinato, demonstra não tem noção da gravidade de seu ato, e que cometera um crime que, mais tarde, o condenará a pena de morte. Meursault não tem o hábito de refletir e nem de questionar, ele está entregue a própria sorte, ao acaso. O texto nos mostra que na prisão, quando este foi interrogado, por variadas vezes acreditou que seu caso “era muito simples”, mas seu advogado lhe advertia apontando o contrário, que o seu caso “era delicado”. O descaso para com a morte da mãe lhe pesou no julgamento, até com mais força do que a acusação de assassinato:
XXXXX O promotor voltou-se, então, para o júri e declarou:
__ O mesmo homem que, no dia seguinte à morte de sua mãe, se entrega a mais vergonhosa devassidão, matou por motivos fúteis e para liquidar um inqualificável caso de costumes.
[o advogado rebate]
__ Afinal, ele é acusado de ter enterrado a mãe ou de matar um homem? (CAMUS, 1957, p. 98).
XXXXX Meses de cárcere promoveram algumas mudanças em Meursalt, privado de sua liberdade ele passou a fazer algumas reflexões, o texto nos mostra que, no banco dos réus as vezes o personagem “ficava tentado a intervir”, mas o seu advogado lhe dizia: “cale-se, é melhor para o seu caso”. O personagem ressalta que acertaram seu destino “sem pedir opinião”, e que às vezes “tinha vontade de interromper todo mundo e dizer: mas afinal, quem é o acusado? É importante ser o acusado. E tenho algo a dizer” (CAMUS, 1957, p. 100). Mas logo o desejo esvaziava-se e ele percebia que “nada tinha a dizer”.
XXXXX Camus tece uma crítica sobre o arbitrário sistema da justiça quando, na fala do promotor, apesar do silêncio, Meursault tornou-se réu das próprias palavras:
__E aqui está meus senhores- disse o promotor. [...] não se trata de um crime comum, de um ato impensado que os senhores poderiam achar atenuados pelas circunstâncias, Este homem, senhores, [...] é inteligente. Ouviram-no falar, não é verdade? Sabe responder. Conhece o valor das palavras. (CAMUS, p. 101-102).
XXXXX Ao final da narrativa, Meursault “esvaziado de esperança”, entrega-se à morte. Para não se sentir só o personagem deseja que no dia de sua execução, “muitos expectadores” o recebam com “gritos de ódio” e o assistam morrer (CAMUS, p, 122). Segundo Holanda (1992, p. 80), “o que Camus intenta certamente, é fazer com que o leitor partilhe sua visão de sociedade, ele busca traduzir o absurdo da realidade social. Stuar Hall (2004, p.9), no livro A identidade cultural na pós- modernidade, aponta para as transformações que marcaram a modernidade, transformações estas que estão mudando também as nossas identidades pessoais e abalando “a idéias que temos de nós próprios como sujeitos integrados”. Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito.[...] e constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo.
XXXXX Em 1940, com o Estrangeiro já escrito, Camus escreveu: “Não sou daqui, mas também não sou do outro lado. E o mundo não é senão uma paisagem desconhecida, onde o coração já não tem apoio” e o escritor pergunta: “Estrangeiro, quem pode saber o que esse nome significa?” e desabafa: “Estrangeiro - confessar a mim mesmo que tudo me é estrangeiro” (HOLANDA, 1992, p. 78).

Referências:

- HOLANDA, Lourival. Sob o signo do silêncio. São Paulo: Editora da Universidade Federal de São Paulo, 1992.
- CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Tradução de Valerie Rumjanek. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1957.
- TOOD, Olivier. Que Absurdo? Texto disponibilizado em: <
%20.htm">http://www.rubedo.psc.br/Artlivro/absurdo>%20.htm. Acesso em 23 nov. 2006.
- BOUDOU, Telma Martins. A construção do olhar. Anais ABRALIC, 1996.
- HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-modernidade. 9. ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2004.

5 comentários:

Noslen ed azuos disse...

Olá moça, boa dica, já li algumas coisas de Nietzsche e O Estrangeiro deve seguir a mesma linha de filosofia; vou colocar em minha lista de livros para ler.

bjin
ns


bjin
ns

Renata Bomfim disse...

Olá Noslen, obrigada pela visita!
Acho que Nietzsche nos desafia com seu Zarastruta da mesma forma que Camus com seu mersault... dois gêniso, duas obras primas e dois personagens que roubam a cena de seus escritores...
abraços
um bom fim de semana
Renata

eder ribeiro disse...

Do Camus já li A Peste, O Estrangeiro e a peça teatral Estado de Sítio, do Sarte a Idade da Razão, do Nietzsche tem seus livros de filosofia, mas não me acho preparado para lê-lo. Que ótimo você postando sobre filosofia. Amei de coração. Um imenso beijo de gratidão.

Renata Bomfim disse...

Olá Eder, que legal você por aqui, sempre um prazer receber sua visita!!! A peste está na fila dos livros que pretendo ler, já ouvi ótimas criticas acerca dele, Já Nietzsche, não sei se meu miolinho suporta... eheheheheh, mas mas também está na fila, um dia... quem sabe...
Um abraçãoamigo

Bruna disse...

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