O teatro possui a antiguidade do próprio homem e ambos existiram primitivamente sofrendo transformações com o passar do tempo. Temos acesso a um farto material que remonta a pré-história que revela que muito tempo antes dos festivais de Dionísio na antiga Grécia já aconteciam atividades prenhes do teatro: danças rituais, festivais, adornos corporais, cantos.
O ato de uma pessoa se ‘transformar em outra’, ou seja, se metamorfosear é arquetípico e pode ser observado na pantomima de caça dos povos da idade do gelo. Falar sobre o teatro é desvelar o encanto mágico que, num sentido mais amplo, reside no ato de se apresentar perante o outro sem revelar o “seu segredo pessoal”, como afirmou Margot Berthold (2006, p.2). Encontramos tal habilidade no xamã, que era considerado o porta-voz dos deuses, no dançarino mascarado que expulsava demônios, também no ator que oferta vida a obra dos poetas. Os artefatos que possibilitaram a metamorfose no teatro primitivo eram as peles de animais, as penas, os chocalhos de cabaça, uma riqueza de acessórios cênicos que contrasta com o exercício da arte da redução no teatro realizado no século XX.
O teatro está vinculado ao sagrado desde seu nascimento com o culto aos deuses. Na obra Ideas sobre el teatro y la novela, de Gasset e ortega (1999), define “la cosa teatro” como sendo assim como o homem é, muitas e inumeráveis coisas diferentes entre si que nascem e morrem, que variam e se transformam até ao ponto de não parecer, à primeira vista, com nenhuma forma e afirma que:
“La Historia es um viaje entre lãs ruínas de lo egrégio. Ella nos arrebata aquellas cosas e seres los más nobles, los más bellos poe los quales nos habíamos interessado; lãs passiones e los sofrimientos lo han destruído: eran transitorios” (GASSET; ORTEGA. 1999, p. 68).
Junito de Souza Brandão em Teatro Grego: Tragédia e Comédia (2007) destaca que na nascente da poesia grega, desde Ésquilo, a presença de variadas representações arquetípicas femininas e as tensões existentes entre elas como a luta entre dike, o principio de justiça, com as moiras, o destino cego e a fatalidade se contrapondo à liberdade. O mito é parte estruturante de variadas teorias, tanto psicológicas quanto em outros campos do saber humano como a filosofia. O pai da psicanálise, Sigmund Freud, lançou mão de uma tragédia grega e de seus desdobramentos para estruturar um dos seus conceitos chave, o complexo de Édipo. Segundo Freud os impulsos incestuosos e o conseqüente ódio contra o pai-rival são encontrados em qualquer criança do sexo masculino:
Deve haver uma voz preparada em nosso íntimo para admitir o poder arrebatador do destino de Édipo... E há, de fato, um motivo na história de Édipo que explica o veredicto desta voz interior. Seu destino nos emociona porque poderia ter sido o nosso próprio, porque o oráculo nos fez, ao nascermos, a mesma maldição que caiu sobre ele (SOUZA apud FREUD, 2007, p. 44).
Outro pensador que se dedicou ao mito, posicionando-o no centro de sua psicologia foi Carl Gustav Jung, criador da psicologia junguiana, também chamada de psicologia arquetípica. Jung criou uma espécie de um “mapa” do mundo interior da psique humana, nele a psique é vista de forma multidimensional e está longe de ser uma unidade; pelo contrário, a mistura de impulsos, bloqueios e afetos contraditórios e o seu estado conflitivo”. O ego, especialmente na juventude, experimenta a ilusão de possuir grande autonomia e liberdade, mas o indivíduo está à mercê de sua estrutura de caráter e dos “demônios interiores”, tanto quanto da autoridade externa. “Os demônios da contradição conflitam com o ego”, estes demônios descritos por Jung são os complexos. Os complexos são imagens ou idéias emocionalmente carregadas, estas imagens são a via régia de acesso ao inconsciente (JUNG, 2006, p. 111).
Sendo o mundo interior uma “terra incógnita”, Jung lançou mão de ferramentas e métodos científicos para explorá-la, e ele descobriu que a psique é povoada. Existem complexos familiares e sociais que são coletivos, o que implica que, muitas pessoas estão psicologicamente ligadas de forma similar. Traumas são compartilhados e, muitas vezes, fazem parte de uma geração. Com a teoria dos complexos, Jung apresenta a existência de uma camada cultural do inconsciente, em parte individual, e em parte coletivo, por ser compartilhada com outros indivíduos.
Os complexos são materiais puramente psíquicos, elementos arquetípicos representáveis imageticamente. Essas imagens definem a essência da Psique e podem ter alguma correspondência com imagens objetivas, mas, não devem ser confundidas com elas. A teoria dos arquétipos é de grande importância para a concepção global da psique proposta por Jung, por exemplo, vidas podem ser sacrificadas pela imagem da cruz, ou da bandeira, ou por idéias como o nacionalismo, patriotismo e lealdade para com a religião ou país. Estas imagens são arquetípicas, pois, elas representam um elemento autêntico do espírito. Jung fala sem rodeios que “o conteúdo essencial de todas as mitologias, de todas as religiões e de todos os ismos é arquetípico” Os arquétipos não são derivados da cultura, pelo contrário, para Jung as formas culturais é que derivam dos arquétipos (STEIN, 2006, p. 116).
Durante milênios da história da humanidade, os arquétipos têm sido projetados em figuras mitológicas, nos deuses e deusas, e nos homens e mulheres vivos de cada época. Os deuses e deusas da mitologia podem ser considerados personificações de diferentes aspectos do arquétipo feminino e masculino. Durante muito tempo a mitologia constituiu a maneira mediante a qual a psique humana se personificava, e, na medida em que as pessoas acreditavam na realidade viva de seus deuses e deusas, podiam, através de ritos e cultos apropriados, estabelecer uma espécie de relacionamento com o seu mundo psíquico. O senso comum geralmente confere ao termo “mito” um sentido de “fabulação”. “estereótipo”, ou mesmo “invenção”, mas, embora seja utilizado em alguns momentos com esta conotação o mito (mythos), que tem a sua origem na Grécia, como nos mostra a sua etimologia, significa “relato”, “discurso” e “palavra” (HOUAISS).
Nas sociedades onde vigorava a oralidade, era através dos mitos que os homens estabeleciam relações com os deuses e, por meio de símbolos e relatos, recebiam deles regras e ensinamentos. Desde os tempos mais remotos os mitos cumprem o papel de facilicitador da expressão subjetiva e estruturador da identidade humana, servindo como uma espécie de ponte que faz uma ligação simbólica com o mistério, aplacando a angústia vital e o medo do desconhecido e da morte (NETTO, 2007, p. 14). É dessa forma que os arquétipos, forma irrepresentáveis, se deixam vislumbrar por meio da imagens arquetípicas.
Dentre incontáveis imagens arquetípicas destacam-se as da mãe, da esposa, da amante, da mulher insurrecta, da sofredora e mártir e da santa. No teatro estes arquétipos e suas múltiplas variações desafiam o expectador levando-o, muitas vezes, a um conflito interior e a reflexão sobre si e sobre sua visão de mundo. Em Mito, ideologia y utopia, José Antônio Pérez Tapias (2010) destaca a batalha existente entre mito e logos, e destaca que este fenômeno possibilita que alguns mitos se atualizem. Tapias afirma que os mitos encontram estreita vinculação com a ideologia, pois o discurso ideológico carrega em si a semente do mito, ou seja, a mitologia tende inevitavelmente à mitologia, ele esclarece que todas as mitificações tendem a jogar com o desejo de manutenção do domínio, ele reforça atitude de submissão:
Um cavalo entre aqueles são, em primeiro lugar, a fazer figuras-mito de importância pública como protótipos que encarnam as virtudes exigidas ou de certos valores hegemônicos (poder, sucesso, prestígio, segurança, obediência... aqui é o mito líderes, os "estrelas" do cinema, música, etc, e podemos até citar aqui o mito de tomada de personagens fictícios, e não efeitos insignificante (2010, p. 45).
O pensamento de Tapias encontra consonância com a proposta de Jung acerca dos arquétipos, muito embora relegue um fator primordial, que é a esfera inconsciente do mito. Mesmo que instituições e pessoas lancem mão do arcabouço arquetípico para dominar haverá uma parte do processo sobre o qual não terá poder, que correrá pelos campos do nosso não-saber.
O que dizer da tragédia escrita por Enrik Ibsen, Casa de Bonecas? Nessa obra encontramos um arquétipo que se encontra na base da sociedade ocidental, o arquétipo de Eva, da mulher submissa ao marido, presa por correntes seculares que lhe impõem um modo de ser e de agir e que lhe condena toda e qualquer forma de expressão e em prontidão para punir qualquer atitude que ameace romper com as leis do patriarcado. Nora é uma mulher cujo casamento pauta-se na mentira, a personagem idealiza o marido, os filhos, ao ponto de sacrificar-se para mantê-los. A peça teatral Casa de Bonecas, foi escrita em 1897 e traz em sua trama variados temas relacionados ao feminino, dentre eles:
• A desumanização do personagem central da trama, Nora, que é tratada como um animal, ou como uma boneca, um brinquedo, pelo marido que é o representante do sistema masculino/patriarcal.
• A desumanização do personagem central da trama, Nora, que é tratada como um animal, ou como uma boneca, um brinquedo, pelo marido que é o representante do sistema masculino/patriarcal.
• Temas relacionados à tradição religiosa ocidental como a culpa, o castigo, o engano, e a queda do paraíso.
• As convenções sociais que definem o lugar da mulher como esposa e mãe, sem a possibilidade de que esta se expresse.
• A idealização do casamento e as projeções dos cônjuges entre si.
• A idealização do casamento e as projeções dos cônjuges entre si.
Nora Helmer é a esposa ideal que se sacrifica pela pelo marido Torvald Helmer e pelos filhos (Ivar, Bob e Emmy), até que se sente traída pela família por que tanto lutou, e promove um mudança radical em sua vida. Esta mudança pressupõe um desvio no seu destino social de mulher, ser mãe e esposa. O Sr. Helmer cresceu na carreira sem saber que seu sucesso teve um preço, o endividamento de Nora. Nora havia contraído uma dívida com um agiota para cuidar do marido doente, e para não causar-lhe nenhum tipo de mal estar ou constrangimento por estar sendo cuidado e sustentado pela esposa, ela afirma que o dinheiro veio de uma herança deixada por seu falecido pai.
Há na fala inicial de Nora um discurso de submissão e, chama a atenção o episódio em que come escondida do marido “bolinhos de amêndoas”. Helmer afirma que o maior desejo de Nora é “alegrar a família”. Este falso equilíbrio é quebrado com a chegada da Sra Linde, ou kristina, uma viúva que passou por muitas dificuldades com morte do marido.
A Sra Linde, outra personagem feminina da peça, é o posto de Nora, a sua sombra, ela não possui filhos e nem dinheiro, é o bastante para que Nora se apiede dela e lhe prometa interceder a Helmer para que lhe dê um emprego no banco. Kristina conta como tem sobrevivido à viuvez e a falta de dinheiro e sugere que Nora é infantil, esta se ressente e responde: “Você é como os outros, todos julgam que não sirvo para nada sério”. Nora sempre foi tratada pelo pai e pelo marido como alguém incapaz e indigna de respeito e ela tinha consciência disso, tanto que a insinuação feita por Cristina foi suficiente para que ela se abrisse e contasse o foi capaz de fazer para salvar a família.
Nora passou a mostra a mulher por traz da máscara social (persona), e como foi capaz de subverter as leis vigentes que impediam que uma mulher contraísse emprestemos sem o consentimento do marido. Nora salvou o marido da doença e da falência e se perdeu, enredando-se em mentiras, mas em uma passagem da peça ela declara que descobriu o prazer de “trabalhar para ganhar dinheiro” fazendo artesanatos, e afirmou-se sentir-se “quase um homem”. O Drº Rank é médico e amigo antigo da família e nutre uma paixão secreta por Nora, ela é um objeto desejado pelos homens de sua época, submissa e bela.
Boneca, objeto de desejo para o marido, ela é chamada por Helmer de “louquinha”, “mulherzinha teimosa”, e se deixa tutorar pelo marido, que a considera uma incapaz. Nora é ameaçada por Krogstard, o agiota, caso ela não consiga impedir que Helmer o despeça do banco onde trabalha e este é gerente. Kristina e Krostard haviam tido um relacionamento há muitos anos, mas ela o abandonara para se casar com um homem com mais dinheiro, o que resultou na infelicidade dos dois. Ibsen põe em evidencia nessa peça temas tabus para a época, como por exemplo as relações mediadas pelo dinheiro, que davam forma a famílias cujos vínculos eram frouxos.
A mudança de Nora se dá quando ela conta para o marido sobre a divida que contraiu e sobre os motivos pelo qual havia contraído a divida e ele não a perdoa, ele a acusa de mentirosa. Nesse momento o mundo ideal de Nora cai e ela se depara com a realidade de sua condição, fato que não pode ser contornado mesmo com a dissimulação do marido e insistência para que esquecessem o assunto e continuassem suas vidas, Nora decide ir embora de casa.
Esta peça causou grande mal estar na sociedade da época em que foi escrita e encenada, mesmo hoje, em pleno século XXI mantém sua atualidade. Mas a ambigüidade arquetípica se revela na subversão de Dora, eis a revelação do que Jung denominou ”Sombra ”. Estando constelada na consciência de Dora o arquétipo de Eva, no seu inconsciente encontrava-se uma figura oposta de mulher, corajosa ao ponto de romper com o status quo e escrever sua própria história, esta é Lilith.
Dora conseguiu integrar uma importante parte de si que durante muito tempo fora negligenciada, ela busca responder aos apelos de sua alma e saber o que realmente deseja, quem realmente é. Este caminho denominado por Jung como “processo de individuação ”, é a vida que levará o individuo à auto-realização, ou a realização do “si-mesmo ”.
O escritor romeno Eugène Ionesco nasceu em 1909 e faleceu em Paris, em 1994. Juntamente com Samuel Beckett, Ionesco representa o teatro do absurso, mas o dramaturgo não gostava desta denominação e preferia que suas obras fossem referenciadas como sendo “insólitas”.
Ionesco escreveu a peça teatral A cantora careca em 1950 e traz outras representações arquetípicas femininas. A peça mostra dois casais, o Sr e Sra Smith, e o Sr. e a Sra. Martim em situações que revelam a problemática humana de relacionamento e comunicação. Há também questões de classe, de poder e de identidade. Estão presentes, também, questões relacionadas à memória. Observa-se que apenas a Sra Smith fala no início da peça, enquanto o Sr. Smith lê estala os dentes. O relógio que é destacado na trama e lhe confere uma espécie de ruído. Esta peça revela a solidão e o vazio da existência de pessoas que estão alienadas de si mesmas. Esta peça mostra a sua extemporaneidade ao revelar o que Reymond Willians denominou Tragédia Moderna.
Segundo Willians a tragédia tem alcançado variadas concepções desde seu nascimento, o que fez com que surgissem novas estruturas trágicas, ou seja, novas possibilidades de leitura e abordagem desta. Por exemplo, o herói trágico, pela ótica da critica marxista, “é um indivíduo histórico universal, cujos próprios objetivos particulares contém o que é substancial, e que é a vontade de espírito do mundo” , já para Nietsche o efeito da tragédia não é moral e nem purificador, é estético, assim, a tragédia crias seus heróis para depois destruí-los, pois há “uma estética de prazer trágico no sofrimento inevitável de um homem”, assim como o “intuito de transcendê-lo” (WILLIANS, 2002, p.58- 61). Dessa forma, Raymond Williams construiu, a partir dos estudos que realizou sobre a vanguarda moderna, que incluem a análise das obras de Ibsen e Eliot, Brechet, Pirandelo, Camus, Sartre, Ionesco, O’Neeill e Tchekhov, misturando à temática da tragédia, a crítica literária, uma teoria que põe em xeque aspectos da tragédia do nosso tempo.
Este pensador defende que as organizações que visavam, no século XX, combater o capitalismo em direção ao socialismo, foram as mesmas que fortaleceram e sustentaram a sociedade capitalista. A tragédia passou a alcançar uma dimensão maior do que a habitual, “fatalista”, e o tema passou a alcançar o cotidiano. Para Willians:
A tragédia possui estreitos atravessamentos com a tradição, que no caso, “não é o passado, mas a interpretação que se faz do passado”, o que torna o presente, “um fator de seleção e avaliação”, assim, lançar um olhar sobre a tradição, compreende “olhar critica e historicamente para obras e idéias” que possuem ligação e se deixam associar em nossas mentes. [...] Nada impede que a “guerra, fome, trabalho, tráfego, política”, acontecimentos que demonstram um “estreitamento da dimensão do humano” e que podem ser explicados historicamente, sejam considerados trágicos A divisão entre masculino e feminino, entre natureza e cultura, a força que separa o amor e o poder são trágicos (WILLIANS, 2002, p. 15- 34, grifo nosso).
A peça de teatro Toda donzela tem um pai que é uma fera, escrita por Glauco Gill, é possível observar o embate entre desejo e convenção. O texto, uma comédia, mostra Porfírio, um conquistador inveterado, e Joãozinho, o respeitador. Bem como Daisy e Lola, duas mulheres a quem interessa a convenção do casamento. Entre estes personagens o pai de Dayse, um General aposentado pronto para defender a honra de sua filha.
A trama surpreende na medida em que cada personagem vai mostrando ser capaz de bem mais do que se espera dela. Tendo como cenário um apartamento “kitchenette”, em Copacabana, Porfírio, que se diz “um profundo conhecedor da psicologia feminina”, acaba cedendo ao pedido do amigo de infância e vizinho, Joãozinho, para esconder Daisy, sua namorada, do pai que a procurava. Porfírio esconde Daisy no armário, local clichê quando se fala em esconder amantes, e acaba sendo descoberta pelo pai que, frente à cena, conclui que Daisy e Porfírio são amantes. A fama que acompanha os personagens Porfírio e Joãozinho fazem com que os acontecimentos que se desenvolvem na trama sejam tomados como verdadeiros, como por exemplo, na cena do guarda-roupas, quando Porfírio tenta explicar que escondera Daisy a pedidos de Joãozinho o General lhe diz: “─ Cínico! Como é que você tem coragem de incriminar um rapaz como o Joãozinho, que é um perfeito cavalheiro?. [...] Não vai ficar assim não, porque você vai casar com ela” (S. d., p. 27).
O casamento é visto como a saída para salvar a honra de Daysy, moça que se mudou de Minas Gerais para o Rio de Janeiro para trabalhar em uma casa de família como babá e estudar, mas que fugiu para morar com namorado. O General é um personagem solitário e que encontra em Loló companhia, depois de idas e vindas e muita confusão. Ao fim da peça Porfírio fica sozinho, pois todos os personagens se casam, a impossibilidade de aceitar a sua solidão lhe leva de volta para os braços de uma mulher, a sua mãe, o que revela a infantilidade camuflada sob a máscara de solteiro convicto.
Maria Beatriz Nader (2001) que no Brasil, historicamente, cada mulher tinha uma função diferente na sociedade, as senhoras, mulheres honradas, exerciam a função de mães e esposas. Às mulheres honradas eram dadas poucas opções na vida, era ou se casar ou entrar para um convento, ou seja, entregar-se à clausura. Mas as mulheres reivindicaram para si outros lugares por meio do movimento feminista. Embora as mulheres tenham galgados novos patamares sociais, observa-se que, ainda persistem os ranços do machismo na sociedade e as personagens femininas buscam a mesma coisa, se casar. Esta peça dá visibilidade ao poder titânico dos valore sociais patriarcais que mesmo mostrando-se mais fragilizados na modernidade, em realidade mantém o mesmo poder.
Questões de cunho sócio-político são a tônica da peça Eles não usam black-tie, de escrita por Gianfrancesco Guarniere em 1958 e estreada no mesmo ano sendo um grande sucesso de bilheteria. De acordo com o critico Sábato Magaldi (2008, p. 13) esta peça, estreada no teatro de Arena de São Paulo, “trouxe para o nosso palco os problemas sociais provocados pela industrialização, com o conhecimento das lutas reivindicatórias de melhores salários”. Esta obra de cunho social e político denuncia as desigualdades sociais e a estratificação de classes existente no Brasil.
O cenário é a Favela da Leopoldina, onde circulam personagens complexos e contraditórios. Dona Romana, mãe e esposa do sindicalista Otávio. Romana trabalha como lavadeira e é conformada com a vida que leva, já o filho do casal, Tião, que morou um tempo fora do morro com os padrinhos e não consegue se readaptar à vida no morro e sonha em se mudar. O irmão de Tião, Chiqueinho, faz o tipo sedutor e esperto, sempre se dá bem.
Na trama surge com destaque o personagem cantor Juvêncio que é autor do samba que dá título à peça e que ao final da peça é traído e tem a sua música roubada por outro cantor, podendo apenas ouvi-la tocando no rádio. Um analisador interessante nessa peça é a força que o autor confere a arte, pois, a música (samba) feita no morro vai para a cidade e leva consigo a ideologia do grupo que a criou. Maria, a noiva de Tião, não aceitava se afastar dos amigos e da família, não desejava sair do morro para morar na cidade, o que acabou resultando no rompimento com seu marido, Tião, e na dissolução da família que ainda estava em formação, pois Maria era recém casada e estava grávida. A separação é um outro analisador importante e permeia toda a peça.
A peça denuncia a separação entre favelas e bairros urbanizados, entre pobres e ricos, patrões e empregados, mostrando seus respectivos lugares sociais, mostra a separação que um sistema excludente promove entre pessoas que se amam, entre irmãos, pais, amigos. Tião recusa-se a integrar a greve na fábrica organizada por seu pai, este fato faz com que ambos rompam relação e este tenha que sair do morro. Esta é, aos moldes Raymondianos, uma tragédia moderna.
Buscando na história elementos que levem à compreensão da gênese das inúmeras formas de separção vivenciadas pela sociedade, encontramos o poder institucional.
A peça O santo inquérito, de Dias Gomes, mostra o poder da igreja e, mais especificamente, da inquisição, sobre o desejo e a liberdade das pessoas, especialmente das mulheres. A personagem principal se chama Branca, que é também um personagem histórico. Uma visada histórica revela que entre os séculos XVI e XVII a Inquisição investigou, prendeu e matou pessoas nas terras da América portuguesa. Os Judeus não podiam ser presos pela inquisição que, só podia investigar pessoas batizadas. Mas depois de convertidos à força e batizados, seus descendentes foram perseguidos por até dez gerações. Segundo o historiador Bruno Feitler (apud CORDEIRO, p. 27, 2010):
Os novos cristãos eram estigmatizados e perseguidos havia pelo menos três séculos. Com o surgimento de colônias afastadas dos centro de poder, muitos deles preferiram se mudar (ou foram expulsos) o que causou preocupação nas autoridades locais que temiam a retomada de práticas judaicas. Branca Dias foi vítima desse cenário. Branca Dias foi denunciada pela mãe e pela irmã (possivelmente sob tortura) ainda em Portugal, ela respondeu Às acusações de judaísmo, cumpriu pena de dois anos de prisão e depois imigrou com o marido para Pernambuco, onde foi investigada mais uma vez. Vários anos depois de morta, em 1558, acabou sendo condenada, assim como suas filhas e netas.
No Brasil colonial fogueiras eram acesas e pessoas queimadas, e o povo festejava madrugada adentro. As autoridades eclesiásticas locais eram responsáveis pelos processos e tinham autonomia para identificar e investigar casos suspeitos. Pesquisadores acreditam que no Brasil foram investigadas cerca de mil e setenta e seis pessoas, destas foram queimadas vinte e nove. A extinção formal da Inquisição no Brasil aconteceu em 1821.
Dias Gomes descortina na modernidade as atrocidades desse tempo sombrio revelando as injustiças realizadas pela Igreja Católica e pela Inquisição. A primeira fala da peça é Padre Bernardo, sacerdote a quem Branca salvou de um afogamento e que mais tarde lhe acusa de tê-lo beijado. Padre Bernardo diz:
“Os que invocarem os direitos do homem acabam por negar os direitos da fé e os direitos de Deus, esquecendo-se de que aqueles que trazem em si a verdade têm o dever de estende-la a todos, eliminando os que querem subverte-la, pois quem tem o direito e mandar tem também de punir”(GOMES, 2003, p. 30).
Padre Bernardo, desde que fora salvo por Branca de um afogamento e recebera respiração boca a boca não encontrou mais sossego, reconhecendo na moça “a tentação a obstinação demoníaca e o pecado”, e passou a interroga-la até descobrir que sua família era de cristãos novos e ainda mantinha práticas judaicas. Branca vivia com a família, era uma jovem pura, rústica, livre, feliz, diferente das outras de sua época e ia se casar com Augusto Coutinho, havia sido escolarizada pelo pai e ganhara do noivo alguns livros dentre eles Amadis de Gaula, As Metamorfoses, de Ovídio que logo foram declaradas pelo visitador da Inquisição como “Mitologia, Paganismo”, havia também uma Bíblia em português. Todos os livros foram reprovados pelo Visitador. Branca perde a liberdade, seu pai foi preso e seu noivo foi morto pela Inquisição.
A peça termina com Branca condenada a morte e sendo entregue ao “braço secular” que se encarregou de queimá-la viva. A ultima fala é também de Padre Bernardo que diz: “Finalmente, Senhor, finalmente posso aspirar ao vosso perdão” (GOMES, 2003, p. 142).
A personagem Branca evoca outra personagem histórica que também foi condenada pela inquisição e queimada viva, Joana D’Arc. Elas personificam a luta pela liberdade e a pela sobrevivência de mulheres que são consideradas culpadas mesmo sem terem cometido crime algum, apenas pelo seu sexo, considerado pecaminoso e perigoso.
O lingüista Mikhail Bakhtin (2003, p. 91) declarou que “o homem na arte é o homem integral”. Transportando este pensamento para o teatro observamos que cada personagem é importante em uma peça teatral, pois o espectador não vivencia os sentimentos isolados. No teatro os personagens nos enredam e a interpretação se aproxima da arte, diz Bakhtin, quando na ação dramática, o espectador-ator e todos os outros elementos passam a integrar um novo todo. Este novo todo se transforma em interpretação quando faz com que, envolvido, um participante abra mão se sua posição estética e participe dela pessoalmente como “um segundo viajante ou bandido” (BAKHTIN, 2003, p. 69).
O teatro utiliza como matéria prima as misérias e glórias humanas e o artista trabalha a palavra, o gesto, o som, de forma que esta se torne expressão do mundo. Bakhtin (2003, p. 67) corrobora este pensamento ao afirmar que:
O espectador perde sua posição fora e adiante do acontecimento que representa a vida dos personagens do drama, em cada momento dado ele se situa no interior de uma delas, de onde lhe vivencia a vida, vendo a cena pelos olhos dela e pelos ouvidos dela ouvindo as demais personagens, co-vivenciando com elas todos os seus atos.
Foi possível observar que cada personagem feminino, ou seja, cada arquétipo representa uma faceta do feminino e engendra variadas possibilidades de constelação arquetípica. A analise das representações femininas deve ser feita como foi proposto por Jung, não de forma reducionista, mas, por meio da amplificação, ou seja, com desdobramentos do sentido.
REFERÊNCIAS:
• BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
• BENTLEY, Eric. A experiência viva do teatro. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. (Coleção Palco e tela)
• BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.
• CORDEIRO, Tiago. Caça às bruxas no Brasil. História: para viajar no tempo. São Paulo, 2010, Edição 88. p. 26 – 33.
• GUARNIERE, Gianfrancesco. Eles não usam black tie, 18. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
• GILL, Glauco. Toda donzela tem um pai que é uma fera. Brasília: Ed. Brasiliense, s.d. (coleção Brasiliense de bolso)
• IBSEN, Henrik. Casa de Bonecas. São Paulo: Veredas, 2007. (Coleção Veredas em Cartaz)
• INGARDEN, Roman. As Funções da linguagem no teatro. In: Semiologia do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008.
• KARPINSKAIA, O. G.; REVZIN, L. L.. Análise semiótica das primeiras peças de Ionesco (A cantora careca e a Lição). In: Semiologia do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008. p. 215- 219.
•MITO, IDEOLOGIA E UTOPIA. Disponível em < http://www.ugr.es/~pwlac/G08_05JoseAntonio_Perez_Tapias.html >. Acesso em 30 de nov. de 2010.
• NADER. Maria Beatriz. Mulher: do destino biológico ao destino social. 2.ed. Vitória, ES. Editora EDUFES, 2001.
• NETTO, Vanda Luiza de Souza. A busca do amuleto perdido em Macunaíma: Uma releitura antropofágica. 2008. 116 f. Dissertação (Mestrado)- Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, 2008.
• ORTEGA ; GASSET. Ideas sobre el teatro y la novela.
• STEIN, Murray. Jung: O mapa da Alma: uma introdução. Tradução de Álvaro Cabral; revisão técnica de Márcia Tabone. 5. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
autoria: Renata Bomfim
autoria: Renata Bomfim
Nenhum comentário:
Postar um comentário