"máquina de guerra" é uma proposta filosófica formulada por Gilles Deleuze e Félix Guattari, que não diz respeito ao poder bélico e estatal, mas a uma potência inventiva e nômade, capaz de escapar e causar fissuras no poder dominante, inventando para si "linhas de fuga" e novas formas de ver e habitar o mundo.

21/09/2011

Reféns da incompetência (José Augusto Carvalho)

O novo (des)acordo ortográfico, por sua estupidez, deixou-nos reféns dos dicionários e do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp), não apenas por causa do hífen, mas também por causa do humor dos dicionaristas, nem sempre preparados para a função que exercem. Acredito mesmo que, à exceção de Antônio Geraldo da Cunha, que colaborou com o Dicionário Houaiss, e que infelizmente faleceu, nenhum colaborador ou autor de dicionário de língua tenha ou ponha em prática noções básicas de lexicografia.
O emprego do hífen é um samba do crioulo doido, porque sem lógica e sem possibilidades de normalização. Senão vejamos os pares abaixo em que a primeira palavra é hifenizada; e a segunda, de formação idêntica, não. Consulto o Volp: planta-mãe/planta matriz; célula-tronco/sequestro relâmpago; pé-de-meia/pé de moleque; cachorro-quente/elefante branco (coisa importuna); ponto-final/ponto de exclamação ou ponto e vírgula; afro-brasileiro;/afrodescendente; norma-padrão/desvio padrão; bom-senso/bom gosto; pronto-socorro/pronto atendimento; histórico-cultural/infantojuvenil; passa-tudo/passatempo; perde-ganha/ vaivém; ano-novo/ano velho; carro-forte (forte aqui com sentido de fortaleza, como “forte S. João”/carro esporte; etc.etc.
Quanto ao humor dos dicionaristas, a coisa piora. O Aurélio ensina que o verbo explodir é defectivo, isto é, não se conjuga em todos os tempos e pessoas por lhe faltar a 1ª pessoa do singular do pres. do indicativo e, consequentemente, todo o presente do subjuntivo. No entanto, no próprio verbete explodir, onde consta essa informação, o verbo aparece conjugado em todos os tempos e pessoas. O Houaiss, contrariando todas as gramáticas, conjuga integralmente o verbo adequar: eu adéquo, tu adéquas… No entanto, gramáticos como Domingos Paschoal Cegalla, ensinam que, se o verbo adequar não fosse defectivo, sua conjugação seguiria a do verbo recuar, e acrescenta: “Não existem as formas adéqua, adéquam, com e tônico.” (CEGALLA. Dicionário de dificuldades da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, s.v.)
Na minha gramática, já em segunda edição, denuncio arbitrariedades do Volp. Todas as gramáticas ensinam que azul-celeste e azul-marinho, por exemplo, são adjetivos invariáveis. O Volp inova: azuis-celestes, azuis-marinhos. As gramáticas ensinam que o nome de cor composto, formado por adjetivo com nome de cor mais substantivo comum, é invariável: verde-mar, vermelho-brasa, amarelo-laranja. O Volp inova: verdes-garrafas, azuis-ferretes, verdes-mares. Que critérios seus autores adotam para ir de encontro às lições tradicionais?
O Caldas Aulete eletrônico às vezes é um desastre completo. Recusa o feminino presidenta (que o Houaiss, o Aurélio e o Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa aceitam), mas não recusa governanta e infanta, femininos que, como presidenta, também tiveram sua forma masculina oriunda do particípio presente latino.
Em julho de 2010, ao explicar Gálico, como a “Palavra do Dia”, o Caldas Aulete colocou como sinônimos os adjetivos pátrio e gentílico. Mandei um e-mail para a Lexikon Editora Digital, citando a Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra, editada pela Nova Fronteira em 1985, mesma editora do Calda Aulete: “Entre os adjetivos derivados de substantivos cumpre salientar os que se referem a continentes, países, regiões, províncias, estados, cidades, vilas e povoados, bem como aqueles que se aplicam a raças e povos. Os primeiros chamam-se PÁTRIOS; os segundos GENTÍLICOS, denominações estas que foram omitidas na Nomenclatura Gramatical Brasileira e na Nomenclatura Gramatical Portuguesa, mas que nos parecem necessárias” (Versais e grifos dos autores). E expliquei: Assim, semita é gentílico que compreende diversos pátrios (hebreus, assírios, aramaicos, fenícios e árabes); mesopotâmico é gentílico que compreende assírios, caldeus, sumérios e babilônicos; mas pátrio diz respeito à região: brasileiro, português e francês são pátrios.
A resposta, assinada por Luiz Roberto Jannarelli, é um atestado de submissão ao erro: Caldas Aulete reconhece a lição de Celso Cunha e Lindley Cintra, mas prefere seguir o que dizem os principais dicionários de língua: o Houaiss e o Aurélio. Mesmo reconhecendo o erro, prefere ser maria-vai-com-as-outras (expressão que hifenizo conscientemente apesar da lição espúria do Volp).
Só me resta rezar para que os portugueses, dando prova de inteligência e discernimento, continuem lutando para que esse acordo ortográfico idiota seja rejeitado por Portugal.

Profº José Augusto Carvalho
Mestre em linguistica pela Unicamp, Drº em Letras pela USP,
Profº do Mestrado de Linguistica da Ufes.

fonte: Contra o Vento

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