"máquina de guerra" é uma proposta filosófica formulada por Gilles Deleuze e Félix Guattari, que não diz respeito ao poder bélico e estatal, mas a uma potência inventiva e nômade, capaz de escapar e causar fissuras no poder dominante, inventando para si "linhas de fuga" e novas formas de ver e habitar o mundo.

12/11/2011

As multiplas faces de Joana D'Arc: ensaio publicado no Caderno de Cultura "Pensar", do Jornal A Gazeta/ES


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 As múltiplas faces de Joana D’arc
Joana, que se faz chamar de donzela, mentirosa, perniciosa, sedutora do povo, falsa fiel da fé de Jesus Cristo, vaidosa, idólatra, cruel, dissoluta, invocadora do demônio, apóstata, cismática e herege”. Eis o texto dependurado em um poste ao lado da fogueira de Joana D’Arc, revelador da inquietação que esta jovem do século XV trouxe aos seus compatriotas. Seja considerada charlatã, patriota enganada, camponesa sexualmente confusa, herege, heroína, louca, feiticeira, santa, o fato é que, Joana D’Arc continua exercendo grande fascínio sobre leitores e críticos literários em pleno século XXI. Joana D’Arc é um personagem que se atualiza e dialoga com a contemporaneidade, especialmente em um momento de crise das identidades e ameaça do desaparecimento de variados saberes culturais pelas potências que orientam o processo de globalização. Do ponto de vista arquetípico Joana D’Arc materializa o desejo humano de liberdade, ela é justa e guerreira, pronta para defender aqueles que ameaçam a soberania de sua cidade e o seu povo. Mas não se enganem, pois esta representação também constela o seu oposto, e dá forma a uma imagem feminina insuportável e incômoda para o patriarcado, que tanto atrai e fascina quanto assusta e ameaça, demandando, portanto, ser combatida e eliminada, a da bruxa.
A história de Joana D’Arc possibilita uma reflexão sobre a condição da mulher na história. Joana, assim como muitas mulheres, pagou um preço por reivindicar para si prerrogativas masculinas, foi vítima do ódio, foi traída por aqueles a quem defendia e acreditava, morrendo de forma cruel após ser condenada em um julgamento fraudulento. Dessa forma, se torna impossível ignorar na sua história o seu sexo, bem como o preconceito, a patologização, a perseguição e o aniquilamento, temas comuns no universo das mulheres que ousaram desafiar o poder. Joana D’Arc foi silenciadas a partir do conluio formado pelas instituições pilares do patriarcado: a igreja, o governo e a ciência.
Luiz Guilherme Santos Neves no romance de 1986 intitulado As chamas na missa, explora as múltiplas faces de Joana D’Arc e nos assombra e enternece com personagens como a poderosa meretriz Maria capa-homem e a viúva Joana Norberto (a Joaninha). Maria capa-homem foi traída e condenada a ser queimada viva pela inquisição sob variadas acusações, dentre elas a de ser “rogadeira de pragas, de má condição, com gênio terrível e por chamar os varões com os quais se relacionava de São Cosmezinho e São Damião”. Joana Norberto, ou Joaninha, viúva jovem que, sob feitiço (do velho Candinho), se entregou ao mascate Bernardo Queixada, foi humilhada e avexada, transformada em chacota na vila onde morava. A pena de Joaninha foi vestir o Sambenito (traje verde-louro com as chamas do fogo pintadas ás avessas), pelo resto da vida, como sinal do perdão da fogueira.
Na dramaturgia encontramos, entre centenas de peças produzidas sobre Joana D’Arc, a de Bertolt Brecht, escrita entre 1931-1932 e intitulada A santa Joana dos matadouros. Esta peça ambienta-se nos matadouros de Chicago na época da grande depressão americana. Brecht nos apresenta uma Joana D’arc militante, idealista e aplicada na propagação do evangelho de Cristo. Joana, integrante do grupo dos boinas pretas, acabou se tornando joguete nas mãos dos poderosos e, ironicamente, as ações que realizou buscando promover a paz resultaram na sua ruína. Joana acabou se tornando bandeira do grupo contra o qual lutava (querem algo mais contemporâneo que isso?). Ela diz: “Causei desgraça aos desgraçados e trouxe alívio aos exploradores”. No final da peça a heroína é encontrada agonizando no pátio de um matadouro e, levada para o quartel do Boinas pretas, tenta narrar a sua agonia, mas logo é advertida: “Seja santa! Cale a boca!.
É consenso entre os pesquisadores que novos olhares precisam ser lançados sobre o personagem Joana D’Arc, tanto em função das múltiplas possibilidades de leitura, quanto das novas fontes em latim e francês que foram recentemente descobertas.

Texto publicado no dia 12 de novembro de 2011
Autora: Renata Bomfim

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