De acordo com Gilles Lipovetsky, que analisa a sociedade contemporânea
sob a perspectiva do “consumo”, vivemos uma terceira fase da modernidade: a
primeira, correspondente à primeira metade do século XX, caracterizou-se pelo
aumento da produção industrial, à difusão de produtos possibilitada pelo
progresso dos transportes e da comunicação e pelo aparecimento dos métodos comerciais característicos do
capitalismo moderno (marketing, grandes lojas, marcas, publicidade); a segunda
fase inicia-se na segunda metade do século passado e caracterizou-se pela
produção e consumo de massa, antes reservados a uma classe de privilegiados,
pela promoção do fútil e do frívolo, pelo culto ao bem-estar e pela ideologia
do individualismo narcísico e hedonista. A essa segunda fase ele chama de “era
do vazio”, em que Narciso é a figura dominante. A partir do final do século XX
e, nestas primeiras décadas do XXI, Lipovetsky identifica um terceiro momento
da modernidade, a que chama “hipermodernidade”. Para ele, vários sinais nos
indicam estarmos vivendo a cultura do excesso, do “hiperconsumo”, do
“hipernarcisismo”, uma “hipermodernidade” que se seguiu à “pós-modernidade” da
segunda fase e à primeira “modernidade”, o mais conhecido modernismo do início
do século XX. Creio que o fenômeno das redes sociais, da febre mundial das
selfies, dos facebooks e do uso de ipads e iphones, com seus whatsapps e
comunicações instantâneas sobre o tudo e o nada de nossos cotidianos por si só
validam a lucidez da análise filosófica e sociológica de Gilles Lipovetsky (In:
Os tempos hipermodernos, 2004).
Acho pertinente a reflexão de Lipovetsky também para refletirmos sobre a
literatura produzida no Espírito Santo, nos últimos vinte anos (1994-2014). Na
primeira metade do século XX, escritores e leitores, restritos a uma elite
cultural e burguesa, conviviam com a ausência de qualquer aparelho cultural, em
nosso estado. Era o período da “falta”, a que Monteiro Lobato chamou de “ficção
literária”. O melhor caminho para os que queriam escrever e ser lidos, no
Espírito Santo, era embarcar num vapor no porto de Vitória ou no trem da
Leopoldina e desembarcar, vinte e quatro horas depois, ou mais, no Rio de
Janeiro, a capital da nova república. Foi o que fizeram Afonso Cláudio, Narciso
Araújo, Madeira de Freitas, Haydée Nicolussi, Rubem e Newton Braga, Carlinhos
Oliveira, Geir Campos, Marly de Oliveira, Jairo Leão, o pai de Danusa e Nara, Kátia
Bento e tantos outros escritores capixabas que se tornaram famosos porque
saíram daqui. Nesse período, o Espírito Santo saía da indigência em que vivia
no século dezenove e graças à boa gestão de Jerônimo Monteiro e de outros que
se destacaram na gestão da coisa pública, iniciou-se um processo de
industrialização e de investimentos sociais que irão refletir nas décadas
seguintes. Nesse período, o Espírito Santo formou uma elite cultural academicista
que criou o Instituto Histórico e Geográfico (1916), a Academia
Espírito-santense de Letras (1921), a revista Vida Capichaba (1923), o jornal A
Gazeta (1928), a Faculdade de Direito (1930), o jornal A Tribuna (1937), a
Academia Espírito-santense dos Novos (1943), a Arcádia Espírito-santense (1945),
a Academia Feminina Espírito-santense de Letras (1949) e a Universidade
Estadual do Espírito Santo (1954), federalizada em 1961.
Criado um aparelho cultural que dava embasamento e sustentação à
produção artística e literária capixaba, num segundo momento, foi em torno da
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da UFES, a FAFI, e não mais
exclusivamente a partir das academias, que girava a vida cultural de Vitória,
praticamente o único centro cultural capixaba, com o declínio econômico de
Cachoeiro e de Colatina, devido à decadência da monocultura cafeeira, até então
o alicerce da economia capixaba. Grande êxodo rural provocou a vinda de
milhares de pessoas para a capital, acabando com o bucolismo da cidade
presépio, de Areobaldo Lellis, da cidade “liliputiana e teteia” de Haydée
Nicolussi. Os jovens universitários revolucionaram os costumes burgueses com
uma nova postura mais comprometida com a realidade político-social e uma nova
maneira de escrever poesias e de representá-la nos palcos. Dentre esses jovens
rebeldes dos anos sessenta estavam Xerxes Gusmão, Claudio Lacchini, Carlos
Chenier, José Irmo, Miguel Deps, Renato Soares, a quem aderiram Renato Pacheco,
Marien Calixte, mais velhos, ou Carmélia Maria de Souza, Amylton de Almeida e
Milson Henriques, não universitários. Bons escritores surgiram dessa geração
como o já esquecido Olival Matos Pessanha, na poesia, e o sempre lembrado revolucionário
marginal Luiz Fernando Tatagiba, na prosa.
A partir da década de 1970 e em toda década de 1980, e sobretudo devido
à atuação da Ufes e sua editora, a da FCAA, surgiu intensa produção editorial
no cenário capixaba, marcado, até então, pela carência e pela falta. Se, na
década de 1960, a poesia-manifesto foi a marca principal e na de 1970, o teatro-protesto,
com encenação de peças escritas por Toninho Neves, Milson Henriques, Paulo de
Paula, Amylton de Almeida, Gilson Sarmento, a década de 1980 ficou marcada pela
melhor produção literária capixaba, tanto na prosa de ficção quanto na poesia.
Revelaram-se os nomes de Bernadette Lyra, Reinaldo e Luiz Guilherme Santos
Neves, Adilson Vilaça, Francisco Grijó, Luiz Busatto, Miguel Marvilla, Paulo
Roberto Sodré, Waldo Motta, Sérgio Blank e dezenas de outros sobejamente
conhecidos de todos os que leem a produção literária dos autores capixabas.
Chegamos, à década de 1990 e ao período que pretendo analisar, os
últimos vinte anos. Num primeiro momento, a década se iniciou com a débâcle econômica da era Collor. Uma
hiperinflação e a desestruturação dos aparelhos culturais então existentes
deixavam a todos os produtores culturais sem perspectiva futura. Editoras e
livrarias entraram em crise. Após a estabilização econômica conseguida com o
plano Real, em 1993, novo cenário começou a ser desenhado. As prefeituras
começaram a criar leis de incentivo à produção e à difusão cultural, sendo a
primeira delas a Lei Rubem Braga, da Prefeitura Municipal de Vitória. A
Secretaria de Produção e Difusão Cultural da Ufes criou a Revista Você, que passou a ocupar um papel
semelhante ao da Vida Capichaba, do
início do século como divulgador da cultura literária capixaba e publicou mais
de quarenta livros de literatura, no período de 1992 a 1996. A editora da FCAA,
praticamente extinta, nos primeiros anos da década de 1990, foi substituída
pela Edufes, criada em 1995, sob nossa gestão. Também são criadas leis
municipais de incentivo à cultura nas prefeituras de Serra, Cariacica, Vila
Velha e Cachoeiro de Itapemirim. Fora dos municípios, o Estado do Espírito
Santo criou a política cultural do incentivo à produção e à circulação de bens
culturais, através de editais, com recursos crescentes, a cada ano, e
investimento de mais de oito milhões de reais, em 2014.
Outro fenômeno cultural jamais visto na história da humanidade foi o
advento da informatização e da popularização da internet e das redes sociais,
nos últimos anos. O suporte “papel” perdeu o lugar que lhe destinou Gutemberg,
há quinhentos anos, para a impressão eletrônica. Hoje, a publicação literária
divulgada em blogs, homepages, tweeters e todas as suas possibilidades eletrônicas
é infinitamente superior à publicada em papel, por maior que ela seja. E esse
fenômeno ocorre também em nosso Estado. Nunca tivemos tantos textos publicados,
seja em sua forma tradicional, o papel, seja em forma eletrônica. Tentei fazer
um levantamento da produção editorial publicada no Espírito Santo, nos últimos
anos, mas é uma tarefa hercúlea, que demanda mais tempo. Seguem alguns dados, o
que demonstram a quantidade dessa produção. A lei Rubem Braga, da PMV, aprovou 349
projetos de Literatura, no período de 1993 a 2013, com mais de dois milhões e
meio de reais investidos; a Lei Chico Prego, da PMS, aprovou a publicação de 98
livros, de 2007 a 2013; o IHGES publicou 40 livros e 12 revistas, nos últimos
dez anos; a Academia Espírito-santense de Letras publicou 38 livros e 11
revistas, na última década; a EDUFES publicou uma centena de livros m sua
maioria científicos ou acadêmicos, mas, nos últimos anos, tem realizado
concurso e publicado textos literários; quanto à publicação estadual de livros
através de editais, só no último, de 2013, centenas de autores inscreveram seus
textos, concorrendo às benesses da lei.
Há uma produção editorial, hoje, no
Espírito Santo, espalhada em seus principais municípios de dezenas de livros
produzidos em pequenas gráficas e editoras, muitas vezes com circulação apenas
local. Há escritores que têm edições de milhares de livros vendidos entre os
leitores de sua cidade. Há os que têm um público específico, como os que
escrevem sobre gastronomia, por exemplo. Enfim, retomando o Lipovetsky, do
primeiro parágrafo, vivemos a cultura do excesso. Nunca se publicou tanto
quanto nos tempos atuais. Temos uma infinidade de poetas, de cronistas, de
escritores de literatura infantojuvenil, os mais cultivados, de romancistas, de
contistas, de ensaístas, de artistas produtores de história em quadrinhos e
poucos dramaturgos, ao contrário do final do século XIX e início do século XX, à
época do teatro Melpômene. Reclamamos da falta ou da inexistência de leitores,
mas eles existem, pois nos lançamentos de livros eles comparecem e, se os
livros estão sendo publicados, alguém os lê, nem que sejam os amigos ou
parentes. O que nos falta, ainda, no Espírito Santo, é uma política de
circulação e de divulgação dos nossos livros, lugares públicos e privados onde
possam ser vistos e conhecidos e uma política de aquisição de livros de autores
capixabas para nossas escolas, presídios e bibliotecas públicas. Certamente,
diante da centena de livros capixabas publicados, anualmente, há uma dezena de
obras de qualidade, que merece ser lida e apreciada por um público maior, além
dos amigos e dos colegas de profissão, leitores de sempre.
Por outro lado, se a política estadual dos editais e a política
municipal de leis de incentivo à cultura propiciaram a publicação de uma grande
quantidade de livros, com critérios de qualidade bem flexíveis, municípios e
estado pararam ou diminuíram a aquisição de livros para as bibliotecas públicas
e escolares, como se aqueles publicados por leis e editais suprissem essa
necessidade. No entanto, isso não é verdade, pois muitos escritores publicam
por editoras privadas ou por si mesmos e, com isso, não têm seus livros adquiridos
para as bibliotecas públicas, impedindo aos leitores capixabas de lerem, por
exemplo, os excelentes romances “A longa história” ou “A ceia dominicana”, de
Reinaldo Santos Neves, publicados pela Bertrand Brasil e “A Capitoa”, de Bernadette
Lyra, publicado pela “Casa da Palavra”. A Editora Nova Alexandria, de São
Paulo, fez uma coleção de dez títulos escritos por autores capixabas sobre
temas regionais como a fundação de Vitória, a insurreição do Queimado, Maria
Ortiz, Caboclo Bernardo, Anchieta, dentre outros, e, no entanto, não conseguiu,
até agora, comercializar esses livros para os órgãos públicos capixabas. Tudo
isso nos leva a concluir que é preciso repensar a política estadual e municipal
em relação ao livro, à leitura, à literatura e à biblioteca, em nosso estado,
que, até hoje, ainda não criou um Plano Estadual do Livro, da Leitura, da
Literatura e da Biblioteca, bem como os municípios.
Francisco Aurelio Ribeiro (AEL-IHGES)
Um comentário:
TENHO A ALEGRIA DE CONHECER O PROFESSOR FRANCISCO AURÉLIO ELE É UMA REFERÊNCIA DA LITERATURA CAPIXABA E UMA EXCELENTE PESSOA !!!
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