14/07/2015

A alquimia do ser em Luna Mojada, de Francisco de Asís Fernández (por Renata Bomfim)



A obra poética Luna Mojada (2015), edição bilíngue do escritor nicaraguense Francisco de Asís Fernández desafia o leitor para que se aventure. O livro com trinta e oito poemas da forma a uma espécie de Cosmogonia poética onde valores femininos, masculinos e instintos básicos se misturam formando novos mundos. Inicio o olhar para essa obra pela pintura em acrílica sobre tela do artista plástico colombiano Mario Lodoño (1954), escolhida como capa. Nessa obra pictórica observamos uma mulher deitada sobre um cavalo. O corpo nu da fêmea se une ao do imponente animal, de forma que não podemos diferenciar os fios dos seus cabelos dos da cauda do equino. Não há movimento entre os elementos da obra, apenas o silêncio ruidoso de ecos de vozes que necessitam ser escutadas. A lua, suspensa, assiste ao espetáculo de união entre os seres distintos e afins. Considere-se o leitor avisado, entraremos em um mundo de sonhos inédito, onde nada é o que parece ser, mas que, ao mesmo tempo é à priori. Mundo arquetípico, noturno, erótico, dual, prenhe de ansiedades, abismos e alvoradas. A lua, guardadora dos mistérios femininos da criação, símbolo da Grande Mãe primordial, está úmida, pronta para o gozo e para a procriação. Essa obra nos arremessa para um lugar intersticial onde o bem e o mal coexistem. No poema de Rubén Darío “Colóquio de los Centauros”, o centauro Ástilo revela a profundidade do mistério poético, ele diz: “El enigma es el soplo que hace cantar la lira”. Assim, como informou Ástilo, a enunciação do eu poético em Luna Mojada indica que esse não é um livro de revelações, antes, de mistérios. Indica que há um caminho que apenas o leitor pode perfazer na intimidade da leitura, senda iniciática que lhe possibilitará vislumbrar novos sentidos e realidades, pois, sondar o verso é ser sondado por ele, é romper com tudo, não ter a verdade como horizonte e nem o futuro por morada. É assim que o crítico Maurice Blanchot define o poema: “a realização total da irrealidade[1]”. Deparamo-nos com o eu lírico expressando a chegada de um tempo de alegria e regozijo possível, apenas, por meio do amor. O poema “¿Cómo eran las auroras al pricipio del mondo?” desperta lembranças de um passado comum e cheio de novidades: “cuando descubrimos el fuego/ y pintamos las cuevas de Altamira”. “Retrato del poeta”, poema que o sucede, indica o surgimento do princípio da desarmonia, explicitando a existência  de uma fissura: “una gotera infame en el techo de mi cabeza”. Pensamentos inundados, já não há como se resguardar as “memorias, imagines,/ manías, amores e rencores antiguos,/ que sostenían muchas paredes de papel e de sombras”.  Há também o despertamento de uma nova força, destrutiva e abissal no cerne da obra: “En mi cuerpo parece que se solto um animal”. Destaco aqui a solidão essencial que emana da obra literária. Como afirmou Blanchot (2010), o livro não é a obra, antes, é um objeto feito de palavras estéreis. A obra compreende um evento no qual as palavras se concretizam na intimidade de quem escrever e de quem lê. Assim, a jornada tem início com a inquietação do eu poético. Os sonhos foram derrotados e o cenário é alucinante: “exquisita gota de locura”, os olhos da mulher fazem lembrar a aurora inaugural, “ojos más intensos que las noches del Lower East Side/ y las cataratas del Niágara”. Na dúvida entre o sonho e a realidade existe apenas uma certeza: os olhos dessa mulher “Com tantos soños derrotados”.  
É durante o sonho que eu poético pode recobrar a antiga unidade. Transportado pelo “Angel de la noche” para lugares espetaculares, vislumbra um “nuevo mundo” onde os seres das águas e do ar se juntavam. Esse lugar sem lágrimas e sem dores não comporta o coração humano, entretanto, no poema subsequente, intitulado “Hay um lugar em el mundo”, vemos a emergência de novo equilíbrio entre humanos e não humanos:  a intimidade entre eu poético e os animais revela, “la más intima amistad”, um vínculo de confiança. O eu, solitário, conversa com os pássaros, assim ele sente que seus sentidos são apurados e se tornam “más peligrosos que um tigre de Bengala” e, portanto, prontos para “arrancar la virtude de la vida”.
A busca pela reconciliação entre os opostos e pelo apaziguamento do que há de feroz no humano, põe em cena a morte que, assim como a vida, habita o campo do sagrado. É a morte que “arranca los pedazos de memoria” e pressupõe uma quebra da relação com o mundo ordinário, cotidiano, introduzindo na obra um jogo textual sobre o qual não se tem controle. O eu poético enxerga os esquecimentos e as muitas vidas presentes na morte.
Há fome e sede, necessidades primárias humanas que arremessam o eu na senda do autoconhecimento, busca que leva à epifania.  O eu poético se depara com a beleza da vida marinha e se agita com “el temblor de las estrelas”. É no sonho que o desejo de unidade com o todo se realiza. O poema “Luna Mojada” ratifica o campo onírico como lugar de viabilidade do impossível, vivencia arquetípica, primordial, berço que acolhe e transmuta o morto, assim como a semente que dormita, preserva-lhe a alma que, em dado momento, “aflora e parte”. Cumprida essa etapa, o neófito está pronto para seguir em frente. As palavras se extinguiram, a morte e a vida se extinguiram, resta o despertar e o descobrimento, “este milagro”.
O ermitão solitário encontrou o equilíbrio dinâmico na vida: “alimentaba su alma con el Don del silencio”, entretanto, por mais que o eu se realize no paraíso da palavra, existe a tentação do encontro com o outro: com ela, a mulher que preexiste, resiste, e se performa em inéditos. As filhas de Lót com sua beleza e sedução, e a mulher que “era ya um cadáver antes de morir” revelam faces do feminino cuja potência é capaz de corromper o homem, estilhaçar as regras, desagradar a Deus e dar a luz a novos homens, filhos de um pai/avô sem máscaras. É tempo de perguntas, a quem endereça-las? Às estrelas.
O poema “Tamara lírio” expõe os instintos, desvela o poder da fêmea devoradora, beleza que pisa o solo sagrado sem cerimônias. O ritual erótico prossegue em “Arcana Fata”. No centro do paraíso, entre os rios “Tigris y el Éufrates”, o eu poético prepara como oferenda um “corazón em carbones ardendo”, ele anseia tornar-se novamente um com a amada ao ser devorado e por ela assimilado. Entretanto, a consumação antropofágica não foi possível, pois, o eu lírico não soube fugir de si mesmo, ele foi (inocentemente?) enganado pelos sentidos.
O elemento fogo surge no poema “Cloto, Láquesis y Àtropos”. Nele, as fiandeiras da vida e da morte, senhoras do Destino, viajam em um barco em chamas. Elas sugam “la sustância essencial” de um corpo, preferem ter como vítimas os vagabundos e os errantes solitários. As irmãs se miram em um caco de espelho feito de mar: jogo de imagens, ilusões e multiplicidade.  O duplo especular presente nesse poema reaparecerá no “Yo también quise la dicha”, no qual o eu lírico se vê atrelado a uma sombra e busca libertar-se: “Pero la bala de plata estallo en la cara”. Desfigurado, o eu vê gorado o seu ideal de felicidade. O que fará o homem com a beleza que sobeja? Que fará Deus no seu dia de descanso? Onde estará a imagem real, frente aos escombros da face estilhaçada, dos reflexos e dos fragmentos? Observamos que o poeta empreende uma crítica sobre o sentido da vida, da criação, da objetividade da beleza como metáfora da arte e da poesia. Não seria a dúvida a quintessência da criação? A Serpente é a guardiã desse paraíso de duvidas. O perder-se na solidão é apanágio do poeta, mas, há um farol, uma luz: os olhos da amada. O poema “En el íris de tus ojos”, dedicado à esposa e companheira do poeta, Sra. Gloria Gabuardi, vemos a temeridade do instante, esse poema ensina que o paraíso não desaparece, ele muda continuamente, inclusive, podendo concentra-se inteiro nos olhos e na palma da mão da mulher. Em “Celebración de la Primavera”, as palavras de amor são direcionadas à amada: “Con ella conoscí la agonia de los ríos del desierto”. Em “Los hijos de Caín” instaura-se o embate entre a prática do bem e a louvação dos pecados abundantes dos “hijos de Caín”. Cain teme ser morto por Abel e planeja assassiná-lo. O eu lírico passa a cultivar obsessões, sente-se uma serpentes inútil, sem principio e sem fim. O ouroboros, símbolo representado pela serpente que devora a si mesma a partir da própria cauda, indica que o eu penetrou o tempo da eternidade, do sonho, nesse lugar ele encontra uma princesa encantada que lhe alerta sobre a (in)finitude da vida: “Me fue quedando em todo lo que amé”. No instante, o eu lírico quer devorar “estrelas fugaces”, ele tem fome de infinito e compreende que “somos un grano de arena en medio de un desierto azul”, espaços vazios contemplados pelo universo. O eu lírico, “arrancado del silencio de la noche/ del oscuro cielo nocturno lleno de estrelas/ del caos celestial”, contemplou a beleza a deseja-lo, necessitando de sua mirada.
 Observamos que após a jornada épica de descobrir a si mesmo a partir do outro da alteridade (mulher, animal e elementos celestes e terreais), e também sendo visto, o eu poético entoa um canto laudatório à mulher, não é por acaso que o poeta dedica os versos à sua genitora, a Sra. Rosita Arellano. “Letanias para nustra señora la Virgen de la Rosa” encerra o livro de poemas, ele é um rogo, uma oração pela vida: “Rosa azul que representas milagros y nuevas possibilidades de la vida/ Rosa roja que representas el amor y la pasión”. Assim como as Parcas, senhoras do Destino e o ouroboros presentes na obra indicam que, o poema é uma antonímia, ele instaura o paradoxo, pois, da mesma maneira que a vida possui um começo e encontra o seu fim (pela morte), simbolicamente a serpente é pisada pela mulher que faz com que, esse mesmo ser renasça como Outro, trazendo dentro de si todos os que o antecederam: a humanidade inteira.
Renata Bomfim






[1] BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. (p. 40).

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