Nascido na cidade mineira de Cataguases, Ronaldo Cagiano viveu quase três décadas e Brasília, onde teve intensa atuação nos meios literários, alcançando repercussão nacional com sua obra, por diversas vezes premiada. No início dos anos 2000, mudou-se para São Paulo. Poeta, ficcionista e crítico literário, é dotado de aguda visão crítica das mazelas sociais de nosso país, aliada ao raro destemor em apontar com firmeza os responsáveis pelo empobrecimento cultural que hoje vivemos. Seu livro mais recente é O Sol nas feridas e tem inédito o romance Diolindas, escrito em parceria com a escritora Eltânia André, sua esposa.
Ter nascido e vivido até o início da fase adulta em Cataguases, terra
de importantes figuras de nossas letras, contribuiu de algum modo para que se
tornasse escritor? Que figuras de Cataguases exerceram influência que considera
decisivas em sua formação como escritor?
A
tradição cultural e artística de Cataguases, principalmente no que diz respeito
à vanguarda literária representada pela revista Verde (1927-1929), vertente mineira do Modernismo que eclodiu na
Semana de 22, sempre foi um referencial importante para mim. Ressalto que desde
cedo os ciclos culturais que a cidade experimentou, que tiveram início com o
pioneirismo do cinema de Humberto Mauro, passando por outras vertentes
estéticas não só na literatura, mas também na arquitetura e nas artes
plásticas, sempre me intrigaram, no sentido de buscar compreender o por quê de
uma cidade encravada e entravada nos contrafortes da zona da Mata Mineira
conseguiu saltar à frente do tempo e da história com o surgimento de uma
atmosfera intelectual jamais vista em outra parte. Tal aspecto, com certeza,
despertou em mim o interesse pelas artes, particularmente pela literatura. O
contato, ainda jovem, com alguns escritores e intelectuais da cidade despertou
ainda mais esse interesse e detonou uma grande motivação, considerando que,
desde criança, ávido por leituras, também alimentei um projeto pessoal de
escrever. Chamou-me a atenção o fenômeno local, da mesma forma que impressionou
Ribeiro Couto, que naquela época proclamou, com admiração: “Todo o Brasil está
perplexo: existe Cataguases!” Quanto a influências propriamente ditas, creio
que não as assimilei tão prontamente em relação ao meu processo criativo. No
entanto, a leitura das obras dos autores que despontaram a partir desse surto
criativo, que foros de ruptura e reação à arte convencional e elitista que se
fazia até então, como verdadeiros gurus de minha geração, foram imprescindíveis
referenciais na minha vida, na consolidação do leitor assíduo em que eu me
tornaria mais tarde, muito antes de
nascer o escritor. Desses nomes, eu destacaria Rosário Fusco, Francisco Inácio
Peixoto, Guilhermino Cesar e Ascânio Lopes, seguido de uma geração
intermediária, representada por Francisco Marcelo Cabral e Lina Tamega del
Peloso. E outra, mais contemporânea, com a qual convivi mais pessoalmente,
constituída por Joaquim Branco, Ronaldo Werneck, Fernando Cesário, Luiz Ruffato
e Márcia Carrano.
Lembra-se de como despertou para o universo dos livros e das
primeiras leituras? Alguma influência familiar importante?
Desde os
primeiros anos, ainda no grupo escolar, a leitura cruzou meu caminho, entrou definitivamente
em minha vida. Primeiro, pela facilidade em escrever redações e pequenos textos
pedidos em sala, que evidenciaram minha propensão à escrita, o que foi de
pronto estimulado pelos professores. Foi o insight
primordial, o despertar para a leitura e sua importância na formação do
indivíduo. E, subsidiariamente, a leitura de jornais foi um ponto culminante
nesse processo, já que eu não tinha nenhum estímulo próximo, seja da família ou
de amigos de infância. Eu sempre detestei futebol, música “sertanojo” conversa
fiada e religião. Ela foi definitiva na
construção de meu arcabouço intelectual, já que pelas páginas do Jornal do
Brasil, O Dia, Última Hora e O Globo, que meu pai comprava
diariamente para a leitura dos fregueses de sua barbearia, eu tomei contato com
o mundo, principalmente o universo literário, pois em suas páginas, sobretudo
nos cadernos e suplementos culturais de fim de semana, descortinou-se para mim
esse ambiente sem fronteiras e instigante de livros e autores. Aos quinze anos,
comecei a colaborar com o jornal Cataguases,
um hebdomadário oficial da Prefeitura, quase centenário, escrevendo pequenas
crônicas e artigos de opinião.
Seu percurso nas letras foi da
poesia para a prosa. Qual dessas linguagens lhe permite expressar-se com mais
liberdade?
Quando
comecei a engatinhar na leitura – também percebi isso quando escrevi meus
primeiros trabalhos – o que mais me chamava a atenção era a inflexão poética na
própria prosa. Dos primeiros textos, o encanto veio com as crônicas de Rubem
Braga, que descobri num livro chamado Programa
de Admissão, que era utilizado para estudos para a prova de ingresso no
ginasial. Era um estágio intermediário que se fazia depois do quarto ano do
grupo escolar, antes de nos matricularmos no ginásio, na quinta série. Esse
período de preparação foi extinto pela famigerada reforma do ensino feita pelo Jarbas
Passarinho, aquele ministro tacanho, de infausta memória, que mandou jogar às
favas os escrúpulos de consciência, quando da decretação do AI-5. Pois bem,
voltando ao assunto, os textos do autor capixaba (e hoje não consigo ver um
cronista à sua altura, que escreva com a mesma envergadura poética) me
impressionavam pela doçura, pelo lirismo, pela sensibilidade e poesia na
captação dos instantes, do banal, nos flagrantes da vida. Mesmo ao falar de
situações trágicas, de dramas domésticos, pessoais e urbanos, ele o fazia com
cristalinidade, e essa escritura diáfana é que justamente suavizava os
conflitos. Percebi que a poesia seria meu caminho, então comecei a escrever os
primeiros poemas de forma fixa, entre os quais os sonetos, em cadernos que eu
comprava e guardava a sete chaves. Nessa época, caiu-me nas mãos um exemplar de
Eu e outras poesias, de Augusto dos Anjos. Foi uma leitura impactante e
reveladora aqueles versos de sombra e obscurantismo, aquela linguagem inusitada
e metacientífica, pois, ao mesmo tempo que nos impunha um desafio de interpretação,
nos remetia a um mergulho profundo nas questões existenciais. Quando descobri
que Augusto dos Anjos, que havia morrido em 1914, estava enterrado em
Leopoldina, cidade situada a cerca de vinte quilômetros da minha, foi outro
susto. Então eu vi que ele estava ali, bem perto, ainda que enfurnado em uma
lápide. Algumas vezes, em minha adolescência fui, à socapa, até a vizinha
cidade, em minha bicicleta, apenas para ter a emoção de visitar o seu túmulo e
compartilhar, ainda que metafisicamente, de seu universo Essa sensação também
pude experimentar quando, há poucos anos, visitei a sepultura de Proust, no
Père Lachaise, em Paris. Então ,
posso dizer que a poesia entrou primeiramente em minha vida, tanto como gênero,
quanto como linguagem. E ao migrar para a prosa eu o fiz com a perspectiva de poder
construir uma prosa poética, na linha do que já disse Baudelaire: “Seja poeta,
mesmo em prosa”. No íntimo, eu creio não haver limites muito distintos entre
uma coisa e outra, porque o que me importa é o ritmo, a harmonia, a linguagem
antes da história a ser contada. Talvez seja até artificial estabelecer
confronto entre um gênero e outro, porque estaríamos falando de condições
substantivas que dizem respeito à composição formal. Então, nada mais poético que
o romance Alegria breve,de Vergílio
Ferreira; ou a epopéia roseana de Grande
Sertão: veredas. E nada mais
prosaico que os versos de “Tabacaria”, de Pessoa; de “Terra Devastada”, de Ezra
Pound, ou “O Corvo”, de Edgar Allan Poe. E ainda “José”, do Drummond, para
afirmar que em qualquer forma ou gênero, em qualquer vertente ou opção de
escrita, o autor pode se sentir à vontade, desde que a sua escritura seja capaz
de exprimir suas inquietações existenciais e estéticas, para as quais a
expressão poética se presta a incorporar o espírito demiúrgico.
Apesar de ter saído do interior de Minas, sua obra revela um homem
bastante urbano, mergulhado nas angústias daqueles que vivem nos grandes
centros urbanos, tal qual podemos ver em seu livro mais recente, O Sol nas feridas. Concorda com esta
idéia?
Vim de
uma cidade do interior, mas com uma estreita conexão com os grandes centros.
Cataguases fica a duzentos quilômetros do Rio, a trezentos de Belo Horizonte, a
cem de Juiz de Fora, a quatrocentos de Vitória e a quinhentos de São Paulo.
Creio que essa proximidade também contribui para estabelecer a relação do povo
com uma vida mais urbana e vínculos com sociedades mais civilizadas e evoluídas
culturalmente, apesar dos contrastes que também encontramos nesses centros.
Recebíamos os refluxos culturais do Rio e o contato com a metrópole permitiu
uma assimilação das influências de uma cultura mais cosmopolita. Outro fato que
não podemos desconhecer é que Cataguases se industrializou desde os primeiros
anos do século passado, tornando-se uma potência têxtil em Minas, o que lhe
conferiu ares de renovação na vida e na mentalidade, de certa forma refletindo
na própria consciência das pessoas. Mas a característica de prosa urbana que se
evidencia na minha obra tem a ver também com a minha formação, pois saí de Minas
com dezoito anos para morar numa cidade grande, Brasília, onde vivi por vinte e
oito anos. E esse contato com uma vida mais dinâmica e efervescente, de
valores, sentimentos e costumes menos ortodoxos, fizeram com que eu assimilasse
muito rapidamente esse modus vivendi. A
experiência existencial nesses mais de trinta anos vividos fora da vida
provinciana, medíocre e alienante do interior, são mais fortes na minha
personalidade e isso está impregnado na minha ficção que, em última análise, é
espelho desse período, de onde recolho matéria e circunstância para minhas
histórias. Então, minha produção literária reflete esse tempo e essa geografia,
vividos e experimentados, do homem
urbano, com suas questões, conflitos e confrontos bem distintos do homem do
interior do Brasil, gente que sofre as angústias , demandas e exigências da
vida veloz das grandes cidades, que nos transforma num ser insularizado,
premido por circunstâncias desconfortantes, hostilizado pela competição, pela solidão,
pelo individualismo. Eu jamais saberia ambientar um conto no meio rural, porque
não tenho experiência histórica, social e humana que me permita retratar esse
universo ou qualquer outro ambiente que não seja o que conheço.
Como analisa o mercado editorial
brasileiro atual e o acesso do leitor ao livro. Acredita ter havido algum
avanço em relação à década passada?
Como todo
mercado, visa ao lucro. E o lucro, na maioria das vezes, está diretamente
ligado não necessariamente ao cultural, mas ao financeiro. E nessa sociedade
massificada pelos fetiches globalizantes da competitividade, o livro
transformou-se num produto. Ele precisa mostrar mais a cara que o coração.
Então, não é demais observar que o mercado editorial brasileiro, como em
qualquer lugar do mundo, só se interessa por títulos e autores que têm apelo
comercial: os Paulos Coelhos, os Gabrieis Chalitas, os Augustos Curys e os
padres Fábios Melos, enfim, o lixo literário nacional e estrangeiro, os best-sellers
de duvidoso gosto e questionável qualidade que aqui chegam com status de novidade. O esoterismo de
butique, a auto-ajuda, são o que vende,
porque é aquele tipo de literatura homologatória do bem-estar, que não faz mal
a ninguém, que não dá um soco no estômago, que não faz pensar, que, ao
contrário, engana o estômago e promete o falso paraíso, com seu carpe
diem e suas ladainhas a la
Zibia Gasparetto. Talvez, se fôssemos um país de leitores – e
melhor: de leitores bem (in)formados –
com espírito de discernimento e postura (auto)crítica, essa vassalagem ao
mercado estaria com os dias contados. Mas esse fenômeno parece não ser apenas
privilégio do Brasil, um dos países com o menor índice de leitura do mundo,
pois em todo o mundo a mediocrização, a banalização e a bestialização cultural,
fruto de uma mercantilização indiscriminada e indecente, caminham a passos
largos. O avanço, se houve, foi do mercado editorial, não de uma política do
livro e da leitura. Ainda estamos na pré-história nesse contexto, porque não há
uma visão estratégica de estado, que propugne pelo estimulo à leitura, que crie
e mantenha bibliotecas funcionando em todo o país, não depósitos de livros, mas
espaços de múltiplos usos, que criem a convivência intelectual capaz de
produzir pensamento e ação. E isso não interessa às elites políticas nem
econômicas, porque um povo bem informado tem uma arma na mão.
A cultura ainda é propagada de
forma bastante desigual no Brasil, quase sempre circunscrita aos grandes
centros urbanos, afastando aqueles que vivem em lugares mais distantes do
acesso a bons livros, filmes, peças teatrais, música e arte de boa qualidade.
Algo a fazer para corrigir tais distorções?
Sim,
porque é para onde está concentrado o poder econômico e a melhor distribuição
de renda que se destinam as políticas culturais. Nos últimos anos, vem-se
tentando preservar e difundir as culturas regionais, que são riquíssimas,
incomensuráveis, peculiares. No entanto, ao longo dos anos, principalmente com
o advento da televisão e dos monopólios das redes, elas foram negligenciadas,
de modo a se criar uma esquizofrenia nacional, com o adultério de usos,
costumes, falares, etc. Isto foi introjetado pelas novelas e programas
realizados e retransmitidos de norte a sul, de leste a oeste, a partir do Rio e
São Paulo, o que, em minha opinião, contribuiu, avassaladoramente, para
desaculturar o país, criando uma falsa e estúpida homogeneidade, impondo, goela
abaixo, modelos de expressão cultural e artística que nada têm a ver com suas
vidas e com suas identidades. Reputo essa política como um crime de
lesa-cultura, que vem se perpetrando há décadas, sem a menor oposição, e que
está contribuindo, infelizmente, para uma espécie de pulverização do pensamento
crítico do povo brasileiro, descaracterizando totalmente o potencial estético
que cada região tem e que não deveria ser violado dessa forma. Hoje um acreano
está falando, vestindo, comportando-se, reagindo, até mesmo emocionalmente, como
um carioca ou um paulista, assim como um matogrossense, um brasiliense ou um indígena de Roraima, que
são repetidores do que Faustões, Anas Marias Bragas, Xuxas, BBBs e o escambau
vomitam nas telas. Isso é destruição do nosso patrimônio mais valioso, pois a
indústria cultural do grande eixo hegemônico e monopolista passa com seu rolo
compressor sem nenhum constrangimento.
Deve ser lançado em breve o romance que escreveu com sua esposa, a
escritora Eltânia André. Como foi a experiência de escrever um livro a quatro
mãos?
Trata-se
da narrativa Diolindas, que escrevemos a quatro mãos e que foi um
desafio muito estimulante. A escrita colaborativa é instigante, porque nos
possibilita o compartilhamento de idéias, visões e estilos bem distintos no
desenrolar de uma história ou de uma trama. E é no entrechoque das experiências
narrativas, na fusão de linguagens e ritmos, que o texto vai nos roubando, nos
catapultando para outras direções, outro corpo, outra consistência. Ao final,
não se percebe onde está um autor e onde está o outro, porque na formulação
híbrida dos capítulos, que contou com mútuas interferências, opiniões e
enxertos, emerge um texto distinto, um terceiro que tomou rumo e identidade
próprios.
Conte um pouco sobre sua
ligação com a literatura latino-americana e da amizade com vários de seus
escritores.
Dentro do
meu amplo espectro de leituras, o acesso à literatura latino-americana aconteceu
à medida que eu senti a necessidade de
conhecer mais profundamente a produção literária do nosso continente. Tornou-se
mesmo uma imposição ética tanto quanto estética. Na formação cultural do leitor brasileiro sempre
percebi uma certa tendência a sacralizar
as culturas norte-americana e européia, em detrimento de um grande manancial
que é a cultura, e principalmente, a
literatura latino-americana. Do México ao Uruguai, temos entre nós nossos
Faulkners, nossos Prousts, nossos Cervantes, nossos Camões, nossos Dantes,
nossos Shakspeares, nossos Manns, nossos
Dostoievskis, etc... Mas durante cinco séculos negligenciamos solenemente e estivemos de
costas para os nossos vizinhos e de cerviz
abaixada para Atlântico. Então, sempre me perguntei por que não explorar
esse ambiente ficcional e poético, que nos legou um Rulfo, um Borges, um Onetti,
um García-Márquez, um Roa Bastos, um Ciro Alegria, um Vargas Llosa, um
Benedetti, um Mujica Lainez, um Astúrias, uma Gabriela Mistral, uma Silvina
Ocampo, um Arguedas, um Quiroga, um Monterrosso e tantos outros que falam mais
diretamente ao nosso mundo e aos nosso corações, porque mergulham na nossa
realidade geográfica e psicológica, com suas idiossincrasias, seus valores,
seus dramas e dilemas que nos são tão particulares e comuns? Talvez, o que nos
tenha afastado e distanciado dessa perspectiva de compreensão e estudo da
literatura dos nossos vizinhos, seja o isolacionismo a que nos condenamos por
sermos os únicos falantes do português na América. É o momento de redescobrir a
América Latina e Central, há um monumento cultural, não apenas na literatura,
mas nas diversas linguagens, a ser resgatado e valorizado. Isso me fez
interessar-me cada vez mais pelos escritores do continente, principalmente
instaurando contatos e intercâmbios com escritores da minha geração, em
diversos países, o que tem me proporcionado um prazer e um enriquecimento
estético no desvendamento de suas obras e suas vidas. Um dos projetos que idealizei, ainda quando
vivia em Brasília, e que foi interrompido após minha mudança para São Paulo,
foi o mapeamento da poesia argentina contemporânea, de modo a oferecer um amplo
painel de sua produção poética, que é valiosíssima, numérica e qualitativamente.
Nesse sentido, pretendo realizar uma coletânea, incluindo nomes de diversas
províncias e faixas etárias e publicá-la em breve. Penso, a respeito dessa
valorização da literatura da América Latina, que cabe ao Mercorsul alargar a
estratégia diplomática, não apenas voltando-se para a unidade econômica,
monetária e política do continente, mas para formar um consenso em que estejam
presentes a preservação de nossas raízes e as interrelações de nossos projetos,
produtos e agentes culturais. E isso começa por criar obrigatoriedade do estudo
do espanhol nas escolas brasileiras e do português ser ensinado aos alunos dos
países hispânicos.
Que impressões teve ao
integrar comitivas de escritores em congressos internacionais?
O contato
com outras culturas, outras visões de mundo, outros processos criativos, tem
sido fundamental para a minha formação não apenas intelectual, mas sobretudo
humana, espiritual, íntima. Entre os lugares que visitei, participando ou não
de encontros literários, a viagem ao Irã, em 2007, foi a experiência mais
fascinante. Nessas viagens, acabei por perceber nossa pequenez e miséria, mas
também passei a compreender dialeticamente o mundo, porque essas relações e
encontros nos fornecem pistas sobre o valor, o poder e a importância de cada
cultura, no seu tempo e na sua geografia.
E essa interface e sinergia, essa troca de experiências criativas, afetivas,
históricas, sociais e políticas, nos
ajuda a fortalecer o senso crítico e a capacidade de agregar novos valores,
tornando-nos mais flexíveis e permeáveis às novidades.
Após três décadas de vida
literária intensa, algum balanço a fazer?
Fica-me a
certeza de que não desejo outro caminho, porque a literatura me proporciona estar
à vontade e salvo, no único paraíso concebível e confiável: o mundo dos livros.
Borges imaginava o céu como uma grande biblioteca. Essa também é minha
concepção e também minha utopia. Nem o futebol, nem a política, nem as
religiões, nem a família, nem o Silas Malafaia, o Edir Macedo ou o padre
Marcelo Rossi. Não serão os pastores eletrônicos e padres midiáticos, nem as
duplas sertanejas, os festivais de rodeio ou as rodas bregas de pagode que me
proporcionarão tanto prazer, tanta
liberdade, independência e autonomia. Deixo aqui duas reflexões, uma do querido
amigo e escritor mineiro Duílio Gomes, falecido há poucos anos: “Escrever não é
a coisa mais importante do mundo, mas deixar de fazê-lo, quando se tem vocação
para tanto, pode ser a pior coisa do mundo.” Outra, é a lição de Saul Bellow:
“A literatura é o refúgio da sinceridade no mundo de poses.” É pelo farol dos livros que me guio, não
pela fé mecânica, frenética e hipócrita
dos religiosos. Nem pelos massificantes, mumificantes e bestializantes reality shows da vida. Não aceito verdades
únicas, não aceito ditaduras. E Deus é uma ditadura feroz e anacrônica, à
medida que decreta a onipresença, a
onisciência e a onipotência de um líder que não aceita questionamento nem
oposição. Tenho nojo das ditaduras e dos ditadores, não lhes curvo a cabeça,
nem lhes bato palmas. Por isso, a literatura
é que me guarda, é meu sustentáculo, lição, teto, pulmão e evangelho, pois como
diria Northrop Frye, “A literatura continua sendo o único lugar onde se pode
ser livre”. Dane-se a Wanessa Camargo e viva o Rafinha Bastos, pois o que me
interessa é a liberdade de expressão.
Angelo Mendes Corrêa
Mestre em
Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e
jornalista.
Itamar Santos
Mestrando em Literatura Comparada pela Universidade
de São Paulo(USP), professor, ator e jornalista.
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