No
Brasil sinto-me em casa. Essa sensação de intimidade aconteceu desde a primeira
vez que aterrei no país (no Rio de Janeiro, em 1999). Foi uma atracção de
cheiro, de pele, de vida. Conhecia o país pelos livros (de Drummond de Andrade,
de Machado de Assis, de Vinicius, de Erico Veríssimo, de Jorge Amado – na
época, ainda apenas estes) e pela música popular (Caetano Veloso, Chico
Buarque, Maria Bethânia – sem esquecer o Roberto Carlos da minha infância, que
me levou até eles). Temia que o encontro fosse decepcionante; uma das regras da
estúpida cartilha do amor impossível em que se educa a contemporaneidade reza
que não devemos aproximar-nos daquilo que amamos ao longe. Por causa dessa
estupidez passei uma década a evitar conhecer Agustina Bessa-Luís, que, apesar
de ser um génio, é uma das pessoas a quem mais alegrias devo. Esta memória não
vem desenquadrada do tema da crónica, ao contrário do que pode parecer ao
leitor incauto, porque o Brasil é um dos vários lugares do mundo onde fui feliz
com ela, e também porque, tal como eu, Agustina sentia-se feliz pelo simples facto
de respirar o ar do Brasil. E entendeu-lhe a fundo a História, o drama, a graça
e o talento específico, como perceberá quem ler o seu Breviário do Brasil.
Regresso
incessantemente a essa imensa nação que Stefan Zweig baptizou como o País do
Futuro, sabendo que esse reencontro me tornará mais forte e mais livre. Não são
só os livros, as livrarias, as canções, os espectáculos, os filmes, as
exposições. Nem é só a variedade da paisagem, a informalidade no trato e no
traje, o samba, os sucos, o doce de leite e a qualidade da caipirinha. São as
pessoas, sobretudo, sim: o modo como se atrevem a sonhar. O riso feito da
mesmíssima cintilante matéria das lágrimas. A velocidade com que o entregam, a
eternidade em que o conservam. Na balança do meu coração, o Brasil pesa muito –
um peso que dança, levita, ilumina e aquece. Conheço o Brasil de norte a sul,
do litoral urbano e sofisticado ao paupérrimo e bravo interior do Sergipe,
conheço-lhe as manhas e os mantras, o luxo e o lixo, e, acima de tudo, a sublime
arte de dar a volta aos abismos.
No
passado domingo, descobri, pela televisão, um Brasil desconhecido, assustador.
Um Brasil de deputados urrantes, clamando pelas mãezinhas, votando “pela
família”, por “Deus”, ou para que o filhinho “não seja obrigado a mudar de
sexo”. Um Brasil que se insulta a si mesmo, louvando os verdugos que torturaram
compatriotas, no tempo da ditadura. Não estou sequer ainda a falar de política,
mas da ausência dela. Não falo da visível carência de alfabetização da
esmagadora maioria dos deputados, mas de uma visão bárbara, vingativa e
vingadora da existência, que denuncia a continuidade do Brasil dos coronéis que
Jorge Amado cirurgicamente descreveu. Como convive esse Brasil com o da cultura
que se impôs ao mundo pela sua fulgurante originalidade? Como pode o Brasil
político ser tão distante do seu povo, de Guimarães Rosa a Cartola, de António
Cicero à Mãe Menininha da Bahia?
E,
no entanto, eu vi o Brasil mudar, mês a mês, ano a ano, do fim do milénio
passado até hoje. Vi o fosso social diminuir, os pobres alcançarem direitos laborais
e humanos mínimos, a classe média começar a respirar. A mudança não está
garantida, porque em vez de leis o governo criou programas (como o
Bolsa-Família) que a qualquer momento podem ser revertidos. A perspectiva do PT
é assistencialista, a da direita brasileira é neo-liberal; o conceito europeu
de socialismo democrático ou social-democracia não criou raízes na maior
democracia da América do Sul. O Novo Mundo fez-se do espírito empreendedor e
individualista de emigrantes e ex-colonizados, gente que não tinha nada a
perder e que aprendeu a desconfiar do Estado. O Estado, no Brasil como em toda a
América do Sul, raramente se mostrou de confiança. Para lá de todas as
considerações sobre a falta de capacidade demonstrada por Dilma Rousseff, é
irónico que o seu processo de destituição, sob pretextos de ética política,
seja liderado por um homem indiciado por corrupção. Mas estou certa de que, ao
contrário do que vaticinam as cínicas pitonisas europeias, essa força
surpreendente que é o Brasil civil se organizará contra qualquer hipótese de
ditadura. E acabará por transformar aquela Câmara de Deputados vinda do
Paleolítico Inferior em qualquer coisa capaz de respeitar a beleza e a potência
futurante do Brasil.
Inês pedrosa
Tradutora e escritora portuguesa
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