O fim da literatura portuguesa no Brasil?
No Brasil, tem-se assistido a vivo
debate em torno do fim da obrigatoriedade do ensino da literatura portuguesa
proposta pelo Ministério da Educação. Este parece ser um processo de apagamento
da literatura portuguesa em nome de critérios políticos nacionalistas e de
preconceitos pós-coloniais.
Não pretendo discutir a legitimidade
desses critérios, apenas procuro tentar perceber enquanto professora de
Literatura Portuguesa como as coisas se passam num país cuja literatura se
escreve em língua portuguesa e cuja formação está umbilicalmente ligada à nossa
literatura. A matriz cultural brasileira, como país que nasceu de um processo
de colonização levado a cabo por europeus, é preponderantemente ocidental, como
em toda a América, de norte a sul. Essa matriz esmagou, antes e depois da
independência, as culturas indígenas e incorporou mais ou menos
subterraneamente as culturas africanas que os escravos transportaram. Este
facto, agradando ou não aos povos da América, não pode ser modificado, porque
pertence a passado histórico encerrado, nem pode ser ignorado sob pena de lhes
ser improvável autodefinirem-se do ponto de vista identitário em plena posse de
si e das circunstâncias que lhes couberam. O presente não pode ganhar
transparência senão em função da compreensão e da não ocultação do passado.
Quero com isto dizer que não entendo
como se poderá ignorar a literatura portuguesa quando se quer falar da criação
do Brasil, da sua história e da sua literatura. Quero com isto perguntar, que
será feito do texto fundador, Carta do Achamento do Brasil, de Pero Vaz de
Caminha? Quero com isto perguntar, que será feito de Padre António Vieira e dos
seus sermões? Quero com isto perguntar, como serão lidas Canção do Exílio, de
Gonçalves Dias, ou Marília de Dirceu, de Tomás António Gonzaga? Quero com isto
perguntar, como se lê o romantismo brasileiro sem o diálogo com o romantismo
europeu através da intermediação em língua portuguesa do romantismo português?
Quero com isto perguntar, como se lê Machado de Assis ignorando o diálogo de
surdos entre ele e Eça de Queirós? Enfim, quero com isto perguntar, se uma
literatura que se escreve em português pode permitir-se ignorar um dos génios
literários da modernidade chamado Fernando Pessoa, na obra do qual cabe o
mundo, para além desse mundinho português glorificado em Mensagem?
Não há culturas nem literaturas
indígenas e puras. A literatura portuguesa nasceu em galego-português,
escreveu-se durante muito tempo em latim e em castelhano, isto já depois de nos
termos tornado independentes, no século XII, e depois de termos sido
colonizados por romanos, por povos germânicos, por árabes e por fim
colonizados, durante um século, por castelhanos. Todas as culturas resultam de
miscigenações, fruto de contactos violentos ou cordiais, de invasões,
colonizações, ocupações em que os povos de todo o mundo se viram envolvidos. E
assim todas as línguas se vão "crioulizando".
Ao pretender privilegiar, por razões de
estratégia político-económica pós-colonial, o diálogo cultural sul-sul, em
detrimento e não em convergência com o diálogo norte-sul, o Brasil está a dar
uma espécie de grito do Ipiranga fora de tempo face à velha Europa. Prescindir
do contacto estreito com uma literatura que só prestigia a língua em que o
Brasil fala e com uma cultura europeia e atlântica à qual a identidade
brasileira estará para sempre indelevelmente ligada a montante, como a
portuguesa estará relativamente à brasileira, a jusante, em nada fortalece o Brasil,
a sua identidade e o seu poder de influência.
Um grupo de nações pós-coloniais
livremente constituíram uma plataforma linguístico-cultural e geopolítica
chamada CPLP, atravessada por um rio de nome língua portuguesa. Ignorar
qualquer um dos afluentes de diferentes origens que o engrossam é pactuar no
nosso comum e individual autodesconhecimento. Por isso defendo vivamente a
obrigatoriedade da integração do estudo de textos literários de todos os países
de língua portuguesa nos programas do ensino básico e secundário dos países da
CPLP. Tenho até alguma simpatia, apesar das dificuldades e perplexidades que
pode suscitar, por uma proposta recentemente defendida por Vítor Aguiar e
Silva, da criação de um cânone literário escolar que vise dar a conhecer aos
alunos de todo o mundo de língua portuguesa a especificidade das diferentes
literaturas nacionais e a diversidade da própria língua.
Uma última pergunta, pois
descentrarmo-nos um pouco de nós mesmos constitui bom exercício: que
pensaríamos dos EUA se não fizessem os seus estudantes do ensino médio ler
Shakespeare? Ou dos países ibero-americanos de língua espanhola se ignorassem a
grandeza literária de Cervantes?
*Isabel Pires de Lima
Professora universitária e ex-ministra
da Cultura
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