28/10/2016

Verde abacateiro (poemas Renata Bomfim)


 Dedicado ao poeta venezuelano Adhely Rivero 

I- O anjo

Sol do meio-dia,
Quente como o inferno.
Vejo anjos descansando,
Sob a copa do abacateiro.

Suados,
Faces pessegadas,
Saudosos do céu.

Mas, lindo,
Lindo mesmo é o anjo
Negro. Num átimo,
Os movimentos ligeiros.
Produzem frescor.

A visão extasia:
Invergadura, brilho,
Maciez das 
translucidas asas,
Fazem com que eu reze desejosa
Para que ele seja
O meu anjo da guarda.


II- Fome

Quero a tua carne
Tenra.
Sorver o teu dentro,
Conhecer o doce e o azedo.

Digerir certezas
Desfazendo-as uma a uma.
Até que não saibas  nada.

Ah! o choque de sentir
A matéria sutil e bruta
Pelo avesso.

Ouvir a canção decantada
Captar o esplendor
De tua humanidade,
Vê-la emanando das sombras.

Desejo, desejo, 
desejo não desejar nada 
Além do absoluto.



I-                  III - O eterno é contraditório

Uma mesa com objetos.

Há máquinas fotográficas (a)guardando
Imagens magnificas.
- Só interessam a mim.

Ninguém quer saber
     De mim
     Das imagens
Carregadas de afetos.

Há canetas celibatárias.
Anos sem sentir o prazer da folha.

Eu sou o demônio das canetas.

Prefiro rasgar o branco do papel
Com o grafite.
Risco temerário fadado
Ao desaparecimento.

Quando chega o verdugo
(O tempo)
O traçado cede, foge, desaparece.

Essa mesa esteve em outra casa.
Paredes eram amarelas,
Quartos cuidadosamente decorados.
Dos objetos não recordo.
Eu naquele tempo? 
Vácuo!

Fomos assassinados pela memória.


II-                IV- Beijaste a minha boca

Ontem lembrei que um dia
Beijaste a minha boca
Sob o sol
Escaldante
Eu brilhava, você brilhava.
O calor penetrava as nossas carnes
E a brisa do mar temperava as línguas
Com o sal da alegria.

Ontem lembrei
Beijaste a minha boca.
Eu era todas as mulheres,
Era como se empreendesse
Uma viagem por dentro 
Dos órgãos.
Senti conhecidos os tecidos
De minha casa interior.

Por fora eu era apenas
Casca dura de mim mesma.

Beijaste a minha boca
Sob o sol escarlate e lilás:
A tarde eu era tua.
Deitei sobre o leito de rosas
E fizemos amor.

A noite brilhava o difuso
a noite reluziam e latejavam, 
Espinhos de ouro
Cravados nas minhas costas.


III-             V- Somente a ti devo palavras

Aos desafetos
O silêncio do inferno.

Salivei palavras doces quando
O fígado amargava o ódio
Do abandono.
Salivei palavras doces quando
Perdeste o meu nome
Pelas vielas do imemorável.

A semente do abacateiro rachou,
Partiu-se em duas e, do centro,
Uma haste:
O broto desafiou a gravidade.

É grave amar,
É grave desamar,
É grave.

Nasceste dentro de mim
E cresceste para além de mim:
Abacate.

Salivei palavras,
O ódio desapareceu entre as folhas,
Os primeiros frutos trouxeram esperança.

A ti dedico todas as palavras
Macias, delicadas,
Polpudas, excitantes,
Verde-amareladas.

Aos desafetos,
O silêncio do inferno.


IV-             VI- Por que nascemos para amar?

Se essa caixa
Feita de blocos e cimento
Pudesse conter sonhos,
Decifrar desejos,
Se essa caixa pudesse dar
Ao que não tem forma
Um grão de materialidade,
Eu saberia ter uma casa.

Olho para cima,
O infinito indecente se abre
Sobre a minha cabeça,
Mistérios indecifráveis
Pesam e
Sou apenas esse isso:
Empurrada para baixo,
Prensada entre a terra
E o imensurável.



VII- A traça

Meu Deus, que fantasma era aquele
Que subia comigo as escadas da biblioteca,
Deslizando para as estantes de literatura
Devorando livros de poetas?



VIII- Redução

Meus gestos ensaiam
A expressão perfeita.
Olhos e ouvidos buscam
O poema perfeito
     Ritmo, forma...
Mas, os versos se rebelam
Querem o deformado, o feio.
Os versos estão revoltados
Impregnam a folha do papel
Sem o menor respeito,
Fazem com que eu me sinta
Puta barata.
Barata
Rata.



IX- Redução II

Tua carne
Veludosa,
Gracejo
Forma
Mutante
Moldada
Pelo meu desejo.

Corpo âmbar
Quente
Sôfrego
Exalando
Sabores
Aromas
No céu
Da boca.

Tua
Sem ser tua
Minha
Sem me pertencer
Deixo de ser.

Ah! Não peças
Que eu enfeite a mesa
Com flores.
Não queira que
Meus lábios cantem
Canções populares.
Não!

Alegre-se,
Desapareceremos, meu amor!



RB, Vitória, ES, out, 2016.





Um comentário:

Anônimo disse...

Belíssimos poemas, Renata. Como sempre, o Letra & Fel trazendo aos leitores somente coisa boa, sejam de sua lavra ou de seus amigos e autores que você admira. Abraços do Remisson.