Profª Drª Ester
Abreu Vieira de Oliveira
Objetivamos
mostrar a presença do indigenismo na Literatura Latino-americana, repassando a
sua presença desde a época colonizadora até a Pós-Modernidade, destacando a
obra argentina de Ema, la cautiva, de César Aire, apresentando as rupturas de
cânones e continuidade que ela traz em si e fazendo uma paralelo entre esta
obra e Iracema, de José de Alencar.
Com
a chegada dos espanhóis e portugueses à América, os portugueses e os habitantes
da terra com sua cultura: costumes, língua e mitos começaram a ser um dos
principais motivos das crônicas e cartas. O exotismo, que o Novo Mundo
apresentava aos homens renascentistas europeus, aliado ao desejo desses homens
de encontrar o “ Paraíso Perdido”, naquele “Século de Ouro da humanidade”,
podem ser decodificados na leitura desses primeiros documentos que falam da
América para a Europa. A vida dos nativos representava para os europeus um
mundo de inocência idílica que se contrapunha a um mundo de crueldade trazido
por eles. Por essa razão, os habitantes da terra passam a ter defensores,
principalmente entre os missionários. Destacam-se Bartolomeu de las Casas, na
América Hispânica e José de Anchieta e Pe Manuel da Nóbrega, no Brasil.
A figura do índio passa a pertencer
à obra literária na crônica de Garcilaso de la Vega, el Inca (Peru: 1539-1616).
Citamos Los comentarios reales, onde
esse escritor narrou, poeticamente, o esplendor do Império Incaico e falou dos
costumes daquele povo reproduzindo as suas recordações e as narrações de seus
antepassados.
Contudo,
o motivo indígena surgiu com preocupação de arte em si no século XVI, quando
escreveram poemas épicos José de Anchieta, Mem
de Sá (1563 ), e Alonso de
Ercilia, La Araucana (Madrid: 1669,
1ª parte).
Anchieta,
objetivando salientar a aculturação religiosa, em Dei Gesti Mem de Sá (1986),
no Libro I, expõe o objetivo de seu canto de louvar a Deus, de cantar o seu
prodígio e de converter os índios do Brasil ao cristianismo. Destaca o papel do
herói, “o piedoso Mem de Sá” (v. 902) que em uma terra conquistada pelo
“trabalho esforçado dos lusos” (v. 2398), deseja “ver adorado o Senhor do Céu,
do mar e da terra/ e venerado nas plagas do sul o nome de Cristo” (v. 904-905).
Para isso impõe as “[...] leis aos índios que vivem quais feras/ e
(deseja) refrear seus bárbaros costumes.
[...] y não permitir que “movidos... de gula infrene bebam o sangue fraterno,/
nem mais se violem os santos direitos da
mãe natureza/ e as leis do Criador.[...]” (v. 909-911).
Anchieta
(1986), tomando como modelo os clássicos gregos e latinos, escreve em latim a
primeira epopéia em terras brasileiras, e com ela antecipa a “Prosopopéia” do
pernambucano Bento Teixeira Pinto.
A
obra está dividida em quatro partes, ou livros, nas quais o autor se limita a
cantar louvores ao Governador e aos soldados europeus. Anchieta, de acordo com
uma percepção do mundo jesuíta, ao mesmo tempo renascentista, tem uma intuição,
acentuadamente, maniqueísta do mundo. De um lado os cristãos europeus, Mem de
Sá, os portugueses, os civilizados, e do outro os idólatras e antropófagos
nativos, rendidos ao jugo do tirano infernal, levando uma vida vazia de luz
divina, enganados, como "nuestros primeiros padres", pelo rei dos
infernos. Para estes, Deus onipotente, misericordioso, destina um herói
vingador que, como o arcanjo Miguel, expulsaria as discórdias, acabando com as
horrendas guerras., pois traz “[...] Arraigado no seio [...] um amor de Deus,
santo, filial, verdadeiro/ e a fé de Cristo desmentida. No peito,/ incendiado
pelo sopro divino, ferve-lhe o zelo/ de arrancar as almas brasílicas às cadeias
do inferno" [v.173-147]. Se bem que Anchieta sobreleva os valores cristãos
europeus em detrimento dos costumes dos povos de, como diz o poeta, “las
regiones brasílicas", há passagens em
que assinala a força guerreira dos Tamoios. Mas para engrandecer a
vitória dos portugueses, mostra-a conquistada com sacrifício devido à valentia
do inimigo, "fera tribu", que "[...] Inúmeros danos/ causa por
toda parte, talando as culturas em fruto/ e arrebatando os
homens[...]."(207-209) Todavia reprova os costumes tamoios da
antropofagia: "[...] Afastam-se altivos com a presa/ e fartam de sangue
humano os ávidos ventres. /Eis que se ajuntam, vindos de várias paragens,/ em
mangotes cerrados, para arruinar para sempre/ as aldeias cristãs, ferve-lhes
nas veias a raiva/ a louca paixão da guerra e o apetite da carne/ humana, batem
os corações em fúrias amentes." (v.209-215)
Ercilia
(1945), em 37 cantos de oitava real, narrou a sua própria experiência na guerra contra os indígenas chilenos, os araucanos: “[...]
fiero pueblo no domado/ que tuvo a Chile en tal estrecho puesta,/ y aquel que
por valor y pura guerra/ hace en torno temblar toda la tierra”. Em sua obra cantou o heroísmo dos
soldados espanhóis e dos caciques araucanos, exaltando, principalmente, a
figura de Caupolicán. Apresentou costumes guerreiros daquele povo, sem deixar
de assinalar uma certa sensibilidade pelo ambiente americano.
No
Canto I, por exemplo, descrevendo a província do Chile e o estado do Arauco
“con las costumbres y modos de guerra que los naturales tienen” (p. 37), Ercilla
falou dos caciques, do governo, da
educação militar que davam, desde cedo, aos meninos e do tipo de armas que
usavam: “Las armas dellos más ejercitadas/ son
picas alabardas y lanzones,/ con otras punta largas enastadas/ de la fación y
forma de punzones/ hachas, martillos, mazas baarreadas,/ dardos, sargentas,
flchas y bastones,/ lazos de fuertes mimbres y besucos,/ tiros arrojadizos y
trabucos” (p. 42).
No
Brasil, em 1769, Basílio da Gama escreveu o poema épico Uruguai (1769) e Santa Rita Durão, Caramuru, ambos com o objetivo doutrinal.
Na
Argentina do século XIX, no romantismo, no gênero gauchesco, encontramos o
motivo dos índios no poema Martín Fierro
(ida: 1872; volta : 1879), obra de José
Hernández. Nessa obra os índios foram apresentados com uma grande força
selvagem. Igualmente violentos são os índios que nos mostrou Estévan Echeverría
em La Cautiva. Há nestas obras
“malones” (assaltos de índios), nos quais são aprisionadas mulheres brancas.
Enquanto no Equador, em Cumandá,
(1871), Juan León Mera retratou os seus personagens indígenas como figuras
abstratas. E os pintou ingênuos diante da brutalidade dos fazendeiros. Há um
caráter de protesto social contra a opressão indígena. Contudo, pode-se dizer
que é o romance indianista, deste período, que introduziu, em verdade, este
gênero e está vinculado ao Romantismo.
A
primeira obra indianista, brasileira, Los
Machakalis, foi publicada em Paris, em 1824. O êxito das novelas indianistas
brasileiras românticas reside na visão idealista dos índios. Em um ambiente
paradisíaco, há uma volta ao Paraíso Perdido.
Em
1857, surge O Guarani de José de
Alencar, em cuja obra se inspirou Carlos Gomes para a ópera Il Guarani, no personagem Peri. Nessa obra percebe-se o forte, o belo, o leal
e o puro de um homem da raça guarani.
O
índio dos romances indianistas dessa época surge como um mito do “Bom selvagem”
na filosofia de Rousseau e símbolo do brasileiro em oposição ao lusitano e, por
tanto, representante do anseio da liberdade política, social, espiritual e
artística, enfim da identidade brasileira. É um tema que se une à volta da
fonte da inocência. A narrativa desses romances tinha um aspecto de história
por sua centralização em uma época pretérita. Além de O Guarani (1857), José de Alencar escreveu mais duas obras
indianistas, Iracema (1865) e Ubirajara (1874).
Em
Iracema os personagens indígenas são
um recurso para o escritor denunciar a destruição de uma civilização e o
esquecimento sofrido durante a sua aculturação.
A função do lapso de memória é fornecida pela jandaia, que, enquanto
viva Iracema, repetia o seu nome, mas depois
de morta a índia, com o tempo decorrido, a ave deixou de pronunciá-lo. A
narrativa se concentra na história do amor de uma índia da tribo Tabajara,
Iracema, por um europeu, Martim. Esse laço amoroso tem a função de assinalar a
origem do povo cearense, no filho dessa união, e apresentar um povo bárbaro em
estado de pureza e autenticidade (Alencar, 1972).
Desse
povo o narrador destaca os rituais de guerra, a laboriosa e significativa
pintura no corpo, os banhos no rio e lagoas, a ruptura de tabus tribal e filial
pela entrega a um amor total de Iracema ao forasteiro branco, sendo ela a filha
de um Pagé, o feiticeiro da tribo, porque pretende mostrar a autenticidade de
um povo que se contrapõe em sua ética de lealdade e amor à dos homens
civilizados. Desde as suas primeiras linhas, o romance toma a direção de
ressaltar o elemento pátrio, destacando o mar, a fauna e flora cearense, num
discurso poético e ritmado:
Verdes
mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da
carnaúba.
Verdes mares, que brilhais
como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, prolongando as alvas praias
ensombradas de coqueiros;
Serenai, verdes mares e
alisai docemente a vaga impetuosa para que o barco aventureiro manso resvale à
flor das águas...(ALENCAR, 1971, p.8)
Os
recursos formais - o lírico unido ao ritmo e as metáforas - aparecem na
descrição da praia cearense e estão presentes em toda a narrativa. A símile
adorna os diálogos entre os índios e Martim. Como exemplo, reproduzimos um
fragmento de um diálogo entre Poti, o filho do chefe dos Pitiguaras,
referindo-se a Martim: “Assim como a seta traspassa o duro tronco, assim o
olhar do guerreiro penetra n’alma dos povos” (Alencar, 1972, p. 34). Com esse
recurso, Alencar objetiva nos dar a ilusão de pobreza vocabular por parte do
nativo e introduzir elementos da natureza e a vida social do índio.
O
relato do romance O Guarani (1857)
se desenrola no século XVII, às margens do Paraíba. O protagonista é Peri.
Nessa obra se concentra a simbologia da fundação da nacionalidade brasileira no
cruzamento das raças branca e indígena, claramente manifestada no final da
narrativa, quando, num encontro entre brancos e índios Aimorés, há a destruição
da Casa de D. Antonio de Mariz, uma espécie de fortaleza ,
e a morte de seus ocupantes, com exceção de Cecília, a filha deste, e de Peri que
se salvam, navegando na copa de uma palmeira. Esta situação dá oportunidade a
que apareça como elemento mítico indígena, a lenda de Tamandaré, o Noé indígena,
que traz a idéia do repovoamento da terra.
Ainda no século XIX, no Brasil, o índio
aparece como tema em algumas obras. Citamos: O ermitão de Muquém (1869) e O
índio Afonso (1873) de Bernardo Guimarães, Gauesa Errante (1866) de Sousandrade.
Em Aves
sin nido (1889), obra da peruana Clorinda Matto de Tuner, observa-se uma
visão revolucionária do problema indígena. Neste romance denuncia-se a má
condição em que viviam os índios quichuas. Podemos dizer que ele introduz o
tema indianista regional com o objetivo de melhorar a condição de vida dos
aldeãos peruanos, denunciando a exploração dos compradores de lã de alpaca,
cuja injusta atitude a igreja e as leis fecham os olhos. Contudo, no princípio
do século XX, o tema dos indígenas, nos romances, voltou em quase todos os
países da América de fala espanhola, com um realismo violento e com um caráter
de crítica social e política. Os escritores se propuseram a proteger os índios,
denunciando a exploração, a falta de justiça, o abandono por eles sofrido, a
hipocrisia dos governantes e a dominação estrangeira (MATTO DE TURNER, C.
1994).
No Equador, o representante de
romance com o tema do índio é Jorge Icaza com sua obra Huasipungo (1934). Ele retoma o problema social do camponês índio,
ocasionado pela ignorância, ingenuidade e primitivismo, num ambiente “feudal”
andino, criticando os poderes estabelecidos que exploram os índios: os
latifundiários, os comerciantes e a igreja.
No Peru, Ciro Alegria tomou
a mesma posição do escritor equatoriano, como podemos comprovar nas obras Los perros hambrientos (1939) e El mundo es ancho y ajeno (1941),
onde há uma denúncia moral e um
testemunho social da região andina, com
um certo ar de idealização. Em Los
perros hambrientos, que tem como fundo a vida do índio peruano da região
andina, “el cholo”, junto do seu cão pastor e o enfrentamento que terão durante
uma grande estiagem, o escritor destaca a natureza hostil que desestabiliza a
vida do homem e a injusta e anacrônica estrutura social que o massacra. Ciro
Alegria, em El mundo es ancho y ajeno,
pretende mostrar que o mundo exterior pouco significa para o índio, já que
começa e termina na sua comunidade, e que o problema índio, quando existe,
continua sendo econômico e social. Ele descreve a ingênua crendice da força
mágica das palavras, dominante no folclore regional e/ou universal. Citamos, em
Los perros hambrientos, a passagem
em que a pequena pastora índia Antuca pretende fazer o vento soprar, trazendo
as nuvens, falando-lhe bem alto do cume da montanha: “viento, vientooo” e, por
conseguinte, as chuvas das quais os camponeses tanto necessitavam para
sobreviverem, diante de uma causticante época. Em El mundo es ancho y ajeno, Nasha acredita que somente com a força
de sua oração e com maldições poderia atrair o mal a dom Álvaro Amenábar, o mal
fazendeiro. Alegria mostra que o mundo do índio continua sendo mágico e o
coloca como intérprete dos acontecimentos. Seguem as primeiras linhas desta última obra:
¡Desgracia!
Una culebra ágil y oscura cruzó el camino, dejando en el fino polvo
removido por los viandantes la canaleta leve de su huella. Pasó muy
rápidamente, sin dar tiempo para que el indio Rosendo Maqui empleara su
machete. Cuando la hoja de acero fulguró en el aire, ya el largo y bruñido
cuerpo de la serpiente ondulaba perdiéndose entre los arbustos de la vera (ALEGRIA,
1991, 5).
Na Bolívia, Alcides Argüedas,
em Raza de Bronce (1919), descreveu
diferentes paisagens da Bolívia onde havia pessoas que vegetavam, viviam em
casas miseráveis e eram subjugadas a superstições. Assinalou a cultura dos
índios da margem do Titicaca, em dois momentos vitais: o da cerimônia do
casamento e o da morte. Com esses rituais, além de destacar que tinham poucas
festas, pôs em relevância a vida que levavam e as opressões que sofriam e a
falta de leis que os protegessem, mas deixou uma mensagem de luta. Um exemplo está no discurso de Choquehuanka:
...he dicho ya lo que tenía que decir, y ahora a ustedes les
corresponde obrar. Unicamente repito: si quieren que mañana vivan libres sus
hijos, no cierren nunca los ojos a las injusticias y repriman con inexorables
castigos la maldad y los abusos; si anhelan la esclavitud, acuérdense entonces
en el momento de la prueba que tienen bienes y son padres de familia... Ahora,
elijan ustedes... (ARGÜEDAS, 1957, p. 244)
Argüedas
(1957) descreve a paisagem andina, nas imediações do lago Titicaca, adequada à
situação do relato. Assim, depois de um funeral, a paisagem se apresenta triste
como no fragmento que segue:
Masas de nubes se levantaban por detrás de la cordillera, o emergían
del fondo del lago, y cerraban el horizonte por el poniente, en tanto que en el
otro extremo lucía el cielo azul y el sol caía gloriosamente sobre las lejanías
azuladas de la llanura y los picos albos del Illimaní.
Pero, en la tarde de ese mismo día, todo cambió de aspecto.
Las nubes, bajas, informes, pesadas, se extendieron por todo el ancho
horizonte, y parecían aplastar la llanura silenciosa bajo el peso de su color
pardusco o negro, cual si estuviesen cargadas de hollín. El lago yacía inmóvil,
sin la menor ondulación, y parecía una placa pullida de estaño, hecha de una
sola pieza; y así el paisaje hízose doloroso con tanta sombra densa, del cielo
y de la tierra.
Amaneció nevando
Ahora el cielo tenía un color transparente, y el paisaje fulgía lleno
de una hermosa claridad blanca.
La nieve caía en copos menudos y silenciosos e iba cubriendo con
armiño todas las rugosidades del llano, nivelaba las superficies toscas y
orlaba de preciosos encajes los trechos de las viviendas y las dunas del río.
Todo parecía muerto y aterido. Ningún ruido rompía el enorme estupor
de la campiña, que se había recogido, en un silencio religioso. (ARGÜEDAS,
1957, p. 131)
No Brasil Mário de Andrade
lança Macunaína (1928) com base na
filosofia do Modernismo e dentro do realismo maravilhoso e mágico. Contando e
(re)contando “casos”, intextualiza fábulas, provérbios e estórias tradicionais
do folclore brasileiro. O personagem central da narrativa, Macunaíma “herói de
nossa gente”, é um índio que nasceu negro e passou para branco. Ele, como
verdadeiro americano, nasceu “no fundo do mato-virgem. Era preto retinto e
filho do medo da noite”. (ANDRADE, 1992, p.135)[1]
Suas aventuras, impregnadas do mito do índio, contradizem o mito da sociedade técnica
e da cultura colonizada. Com a metamorfose do herói, a obra nos transmite a
idéia de que os que nascem na América, não são nem índios, nem negros e nem
brancos, pois existe uma miscigenação racial e cultural. Por isso, em Macunaína, Mário de Andrade revive, de
uma maneira divertida, mitos indígenas americanos e cultura popular e
folclórica do Brasil. Satirizando nossos problemas, transforma o que poderia
ser uma situação dramática em diversão.
No século XX, bem poucas
obras sobre o tema do índio foram escritas no Brasil. Não podemos deixar de
citar Quarup (1966) de Antonio
Callado, Maíra (1976) de Darcy
Ribeiro que, como Meu tio Iaurete de
Guimarães Rosa, busca assinalar o término de uma cultura e pôr em destaque o
abandono dos índios pelas leis governamentais.
Em Quarup em tom leve e brincalhão, o narrador denuncia o desinteresse
do governo pelos índios. Os homens do SPI (Serviço de Proteção aos Índios) se
encontram no Parque Nacional do Xingu - Mato Grosso, para a festa do Quarup. O
Padre Nando faz o contato com os índios que morrem de fome dentro das reservas
(CALLADO, 1966).
Maíra, dividida em quatro partes, reproduz a estrutura de uma missa
e apresenta trechos em latim, grego e tupi, inclusive tupi “pornô”. A sua
estrutura permite várias leituras. Uma delas é ler os mitos indígenas em
contraposição com os mitos cristãos (católicos, protestantes, etc). Maíra, ser
ambíguo, é a grande figura de herói civilizador, deus, que preside a
sexualidade A intertextualidade cristã, que aparece nessa obra, provém dos Cânticos dos Cânticos, de Santa
Teresa de Jesus, de São Juan de la Cruz (Cap. Aaeté), do Diálogo sobre a
conversão dos gentios do padre Nóbrega. Os indígenas pertencem a trinta tribos.
O personagem central, Isaías, é o índio Avá que foi para Roma como seminarista
e voltou ao seu povo para ser índio outra vez, mas não consegue essa
readaptação (Ribeiro, 1976).
Todavia, enquanto de um lado
os escritores desse século se interessam pelo tema do índio e procuram
demonstrar o péssimo estado em que eles vivem, por outro lado, o Governo se
mostra menos sensível e até desinteressado por essa causa.
Nesse ambiente surge, na
Argentina, agora, em 1981, na Pós- Modernidade, um romance, com o tema
indianista, Ema, la cautiva de César
Aira[2].
O autor não apresenta a obra
na forma de uma clara denúncia[3],
impregnada de realismo, própria das obras hispano-americanas do princípio do
século XX. Porém, aproximando-se, analogamente, do escritor romântico
brasileiro José de Alencar, o autor põe os índios em contato com o branco e
mostra a sua forma primitiva, salientando os seus valores. Volta-se essa obra
para uma revisitação do mito do selvagem, no seu habitat natural, ao mesmo tempo em que foram surgindo as mudanças
de ambiente e foi aparecendo o cotidiano da personagem central, Ema, e a vida
no forte Pringles.
A ação deste
romance se desenvolve nas regiões do pampa argentino, ao sul de Buenos Aires,
no final do século XIX, nas cercanias de Carhué, Azul, Pringles y Bahía Blanca,
na época do povoamento da região – 1870-1880.[4]
Nessa obra há uma
convergência de diferentes tendências da literatura americana, tais como a
exaltação a uma natureza utópica, luxuriante, apresentando o exótico nativo, o
desenvolvimento de uma ideologia e a valorização da paisagem que emociona o
autor, por conhecê-la e ter nela vivido, por isso a adorna com imagens e é
minucioso ao descrever o pampa, apresentando a terra e os que nela habitam. O
relato histórico da colonização do Sul da Argentina e a vida no forte no
discurso de César Aires adquirem um tom poético. Cabe exemplificar com a seguinte descrição: ‘La mañana se anunciaba
perfecta, con el sol todavía velado de rojo aunque estaba alto y Venus como una
naranjita blanca. La brisa soplaba llena de perfumes, con salinidad que
exaltaba”.[5]
César Aira
(1081) narra, em Ema, la cautiva, a
história de uma frágil mulher branca, pequena, que, raptada pelos índios,
conseguirá sobreviver, mas que, ao sair desse convívio, se mostra uma mulher
determinada e apta para os negócios.
Ema surge no relato, quase uma
menina, de cabelos negros, com um tenro filho nos braços, viajando em um carro
de boi cheio de prisioneiros, destinados para o forte Pringles. É um personagem
silencioso, mas muito observador, e predestinado a uma vida de sofrimento.
Durante o trajeto, Ema foi estuprada pelos soldados e capitão da caravana e
tornou-se uma espécie de amante de um engenheiro francês. No forte, depois de
amante de um oficial, casou-se com Gombo, um soldado do forte e fez amizade com
os índios. Ema foi raptada, em um ataque dos selvagens, um “malón”, em uma
noite de tempestade. Estava grávida e se separou de seu filho. A sua vida
trágica lembra os romances góticos.
Em sua
convivência com os índios, conheceu muitos caciques, fez parte da comitiva do
príncipe Hual, durante a primavera, em Carhue, uma ilha paradisíaca; aprendeu a
criar faisões, a viver a vida do ócio e a exercitar o pensamento em uma atitude
relaxante. Anos depois, quando volta ao forte como uma criadora de faisão e
possuidora de uma boa renda, está indianilizada nos seus costumes, com mais
filhos, tendo reavido o mais velho, e com o prestígio de uma empresária.
O ambiente
primitivo, o movimento constante de alguns personagens, a presença de certas
cenas naturalistas aproximam a estrutura da narrativa simples de Ema, la cautiva aos romances de viagem
do século XVIII, de ambiente medieval e aterrorizador.
Os
romances: Ema, la cautiva e Iracema apresentam os índios nômades
apreciadores do álcool, do fumo, do ócio, da meditação e da pintura. As duas
obras nos mostram o elemento histórico da união dos povos europeus/índios e a
colonização, no princípio do século XVII, quando se processou o povoamento do
Ceará, Iracema, e no
princípio do século XIX, quando se realizou a “Campanha do Deserto” no pampa
argentino do sul de Buenos Aires até a Bahia Blanca, Ema, la cautiva. Nas duas obras há referências a índios que se
destacaram por feitos heróicos: em Iracema,
Poti e em Ema, la cautiva, Catriel[6].
As duas narrativas, revalidando a mítica e a ideologia de um espaço em um época
precisa, apresentam uma civilização extinta e um novo tipo humano: o
brasileiro, no filho de Iracema e o gaúcho, no filho de Ema.
Como Martín Fierro y La cautiva há em Ema, la
cautiva “malones”, mas se diferencia dessa obra na apresentação do
relacionamento branco/ índio tumultuado
e opressivo, pois retrata um convívio harmonioso e passivo. O índio na obra de
Aira não odeia o cristão, ou a sociedade, nem é egoísta como é pintado nas duas
obras argentinas, do século XIX, acima citadas. A imagem degradante do índio
“dormilón” de Martín Fierro é
elevada à categoria de arte. O seu viver é
uma arte. Segundo Ema, “ellos era el arte mismo
(...) habían caído sobre ella como el más hermoso de los espectáculos del
cielo, habían sido ideas” (AIRA,1981, p 168).
César Aira,
também não segue as diretrizes dos escritores indigenistas do século XX,
buscando combater injustiças sociais, fazendo um protesto social, mas busca
valorizar a maneira de viver dos índios, de certa forma semelhante ao
renascentista Ercilla que não só exaltou os índios araucanos como os apresentou
aguerridos na defesa de sua terra. Ele os descreve como um bom selvagem, amigo
dos brancos e do viver natural do ócio e do prazer, como nos mostra a romântica
obra brasileira, Iracema.
Ema, la cautiva se aproxima de Iracema ao apresentar os elementos da
natureza (fogo, ar, água e terra) em harmonia com a paisagem e ao reforçar os
protagonistas na simbologia da fertilidade. O fogo se une à idéia da
aproximação e alimentação. No ar em movimento surge o perfume emanado da
natureza. O vôo dos pássaros une os elementos terra e ar. A água, elemento
passivo, símbolo do feminino, se identifica com os protagonistas Iracema e Ema.
Os lexemas de água: banho, mergulho, rio, lago, mar dão às duas obras um tom de
renovação, de erotismo e aparecem em momentos de interiorização, de meditação,
de melancolia. Nas duas obras os índios, por serem nômades, não deixaram
monumentos como memória. Em Iracema,
os Pitiguaras e Tabajaras, e em Ema, la
cautiva, os Pehuenches. Em ambas obras as protagonista são muito
jovens e há um mundo de ócio, de evasão do cotidiano, de sonho ocasionado pelo
álcool ou pelo fumo e pensamento.
O resgate
que César Aira faz do passado, relembrando uma sociedade extinta
proporciona-lhe a oportunidade de construir uma dialética entre o mundo do
trabalho e o do ócio e filosofar. Gombo, o soldado marido de Ema, é um dos
porta-vozes do pensamento de vida do autor, pois como um Heráclito dirá: “(...) La vida
pasa siempre como una nube, sin tocar nada ni dejar huella. Igual que la
tormenta: no deja huella porque se repite”.(AIRA, 1981, p. 119) Também
Hual, o príncipe índio, filosofa. Sobre a vida e a morte expõe
o seu pensamento: “La vida (...) es un fenómeno
primitivo destinado a la más completa desaparición, (...) el destino es la
fuerza estética de lo incompleto y abierto.” (Idem, 114)
Na nossa
excursão pelo tema indigenista, concluímos que o escritor ao abordar esse tema
toma a posição de relatar um mundo imediato, levado pela clara denúncia a uma
situação regional ou a ele recorre para voltar ao passado, recontando a
história palimpsestamente, fazendo uma leitura poética, recreativa do que seria
o fato histórico, estendendo com sensibilidade os horizontes intelectuais,
misturando os fatos real, sobrenatural e histórico, pois o texto é já dito por
Umberto Ecco, um universo aberto onde o intérprete pode descobrir infinitas
interconexões.
Observamos,
também, que o romance histórico brasileiro, que trouxe à baila o tema
indigenista, segue a linha de uma literatura de fundação de nacionalidade. Esse
mesmo processo ficcional veio repetir na obra argentina Pós Moderna Ema, la cautiva.
Lembramos
que na narrativa pós-moderna, sobretudo a Hispânica, onde há um crescente
interesse pela temática histórica por parte dos autores de ficção, há a
diminuição do elemento utópico e se diluem as fronteiras entre a ficção e a
história. Na visão da história, ou do “novo romance histórico”, a vontade de
reinterpretar o passado acontece numa reconstrução crítica, elaborada como
Mário de Andrade faz em Macunaína,
ou /e na narrativa Pós-moderna de Roa Bastos, Abel Posse, Carlos Fuentes,
García Márquez, Vargas Llosa, entre outros. Todavia César Aira nada tem de
visão descolonizadora como as que manifestam esses escritores hispânicos.
No discurso
narrativo de Ema, la cautiva, a
História não interfere no relato ficcional sobrepondo a ele. A narrativa se
constrói no nível da interpretação e não na dos acontecimentos a serem
interpretados. Estes são singulares, pouco coerentes com a verdade histórica,
como no caso da confecção e distribuição do dinheiro pelo coronel Espina e
pelos índios, porém verossímeis na narrativa, que se prende à linha tradicional
da literatura americana na visão utópica da paisagem, na apresentação de uma
ideologia de valorização do índio e crítica à política das autoridades citadinas.
César Aira
não reconstrói uma História da Argentina, pois a estrutura e objetivos de sua
obra não coadunam com essa ciência, não contém os shifters característicos do discurso histórico.
Também a
narrativa de Ema, la cautiva não
relaciona com a narrativa Histórica do
Século XIX, pois nos fatos relatados, funcionando como núcleo ou índice,
não há uma série de estrutura de anotações e shifter de escuta tais como “ouvi dizer” ”tanto quanto sabemos”,
etc.
Diríamos,
enfim, que em sua obra César Aira procura tão-somente sensibilizar o leitor
para uma região peculiar de sua pátria e para uma raça nativa de estrutura
social pouco compreendida no passado e não doutrinar e/ou denunciar como os
escritores históricos do passado ou os regionalistas hispano-americanos ao
abordarem o tema do indianismo. Ele só pretende mostrar as peripécias de uma
frágil mulher com um filho recém nascido sendo levada para um meio hostil e sua
evolução física mental e social, nessa aculturação, por essa razão não há
divisão cronológica, mas medidas de duração variáveis nas épocas. A necessidade
empírica, povoamento do pampa e fundação de Pringles, e a ficção se unem,
proporcionando uma locução impessoal, objetiva da narração combinando-a com a
locução interpessoal e subjetiva do discurso do narrador e dos personagens,
REFERÊNCIAS
AIRA, C.
Ema, la cautiva. Buenos Aires; Belgrano, 1981.
ALEGRÍA, C. Los
perros hambrientos. Perú: Alianza
Editorial, 1987.
------. El
mundo es ancho y ajeno. Perú: Rocarme, 1981.
ALENCAR, J. Iracema. São Paulo : Ática,
1972.
ARGUEDA, A. Raza de Bronce. 2.ed. Buenos Aires: Losada, 1957.
Guarani
CAllado
Ribeiro
ANCHIETA,
José de. De Gestis Mendi de Saa.
Poema épico. In: Obras completas. Introd., versão y notas do Pe. Armando
Cardoso, São
Paulo : Loyola, 1986. v. 1.
[1] ANDRADE, Mário. Macunaíma: o herói sem nenhum
caráter.28. ed. Belo Horizonte / Rio de Janeiro : Reunidas, 1992. .
ERCILLA, Alonso de. La Araucana. Buenos Aires: Emecé, 1945. v 1 e. 2.
[1] ANDRADE, Mário. Macunaíma: o
herói sem nenhum caráter.28ª ed. Belo Horizonte/ Rio de Janeiro: Reunidas,
1992. 135 p.
[2] AIRA, César. Ema, la cautiva. Buenos Aires, Belgrano, 1981.
[3] Contudo, pela situação da
população indígena, diante do menosprezo da sociedade, é uma forma de valorizar
os dela excluídos. A situação da população indígena na América é calamitosa. No
final do século XVII, enquanto no Peru, a população indígena contava com oito
milhões de habitantes, na Argentina, não chegava a 35 mil. No Brasil quando
aqui chegaram os colonizadores, foi estimada em cinco milhões e em 1957, só
havia perto de 1900 índios e foi constatado
o desaparecimento de 87 etnias.
[4] Época em que se realizou a
“Campanha do Deserto” ocasião em que o representante do governo era Avellaneda
e a região era habitada pelos índios “pehuenches” (“querandis”, “riaqueles”,
“pampas” e “tehuelches”, hoje considerados extintos) que tinham o seu Habitat
às margens dos rios, pricipalmente os da bacia do Negro, dos úlitmos rios de
Córdoba e os perto das montnahas de São Luis. Eles se relacionavam com os
araucanos nos caminhos do sul da cordilheira e a mestiçagem com o branco
europeu era feita, em geral, com a união da mulher branca prisioneira, raptada
durante o “malón”.
[5] AIRES p. 134.
[6] A história do índio Catriel
se encontra registrada nos arquivos argentinos como um prestador de relevantes
serviços nas fronteiras do sul tais como o de escoltar guardas nacionais, fazer
descobertas e guarnecer os fortes para evitar deserções.
Um comentário:
Como de costume, a escritora e pofessora Ester Abreu nos brinda com um texto maravilhoso, denso e firme nas convicções.
"Parlimpseste" outras vezes ilustre Ester!
Pedro Paulo de Souza Nunes
escritor
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