10/05/2017

Um Psicanalista Gramatical (Oscar Gama Filho*)


Os Estudos Sobre o Pronome, de José Augusto Carvalho, lançados em 2016 pela Thesaurus Editora, apresentam inúmeras colaborações para o complexo problema do pronome na língua portuguesa. De fato, é obra sem igual, de ineditismo que me parece absoluto na área. Desconheço similar que ataque e esgote todos os ângulos do pronome, esclarecendo tudo que as gramáticas comuns relegam a um segundo plano.
Em uma seara onde a impressão é de que se trata de um tema esgotado, há surpreendentes novidades a respeito das funções do pronome. Ele tenta, utilizando uma teoria  chamada "das ondas", ou de "conflito de regras", explicar o emprego de ele e de eu como objetos diretos, o emprego de si-consigo não reflexivo e a confusão entre os demonstrativos este e esse,  a mistura de tratamento como recurso de estilo e o emprego da 3ª pessoa do singular em português, francês e alemão como pronome de tratamento.
O início do livro é uma resenha das obras portuguesas e brasileiras que estudaram o pronome pessoal. Também fala, citando exemplos de textos diversos, da sintaxe complicada  do dialeto caipira, que muita gente pensa que é simples demais, que é só conjugar o verbo de maneira igual em todas as pessoas, exceto na primeira. 
 Após a leitura dos Estudos sobre o Pronome, então enxergo a terrível verdade: por séculos os gramáticos da língua copiaram os erros uns dos outros, perpetuando-os.
Deve ser por causa disso que Guimarães Rosa e Monteiro Lobato desenvolveram uma ortografia própria — a oficial é logicamente incompreensível e insatisfatória, como evidenciam os achados de Zé Augusto.
Já tive a oportunidade de assistir, como ouvinte, a aulas de Zé no segundo grau do Colégio Estadual de Vitória, na companhia do então aprendiz de poeta Miguel Marvilla. Seus exemplos inusitados e cômicos, o improviso, a segurança, a fluência gramaticalmente e teatralmente infalível de frases, transformavam assuntos áridos e insossos em algo tão sensacional quanto um poema de Drummond. Geravam a sensação de estranhamento, que, aprendi também com o professor, consiste na sensação do homem diante do novo, segundo os formalistas russos.
Torna-se, assim, um psicanalista gramatical, na medida em que suas interpretações mudam o sistema gramatical inconsciente que é o motor computacional da língua — tal qual a interpretação psicanalítica estabiliza o sistema psíquico humano. A fala é a expressão consciente dessa massa bruta inconsciente de que (o consciente) é pura expressão em variantes dialetais.
Zé não almeja a beleza da verdade. Pois a verdade da perrengue gramática portuguesa é feia de doer. Ele pretende a verdade da beleza, entrevista pelo cristal quintessencial que vibra com a força do sentido do sistema gramatical dentro de nós. Softwares e programas incompreensíveis, cujo sentido desconhecemos, mas de onde emana a língua.
Um dia, ele me disse na lata: “em nossas origens, eu sou um gramático; e você, um poeta. Você quer ser original no desvio da norma e eu o denuncio. Ambos –gramático e poeta – se  complementam no poema da vida e não existe um sem o outro”. E citou Clarice Lispector: ela contava a história de um crítico que sabia todas e regras e truques e, por isso, não conseguia produzir literatura — o que não é o seu caso, genial e renomado ficcionista também.
A língua (langue), segundo Saussure, é um “tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencentes à mesma comunidade, um sistema gramatical que existe virtualmente em cada cérebro” (apud Jonathan Culler, As Ideias de Saussure, São Paulo, Cultrix, 1979, p. 23).
Quando José Augusto melhora o sistema gramatical, está, na verdade, eliminando vírus no computador humano, estabilizando o sistema por meio de um upgrade e aumentando o alcance do pensamento em português, pois ninguém pensa além da linguagem, que é o código decodificador do real.
É a seguinte operação: o sistema gramatical gera a língua (langue), que possibilita a melhoria da fala (parole) e o alcance da linguagem, que, por sua vez, amplia a abrangência e a penetração do pensamento brasileiro: as sujeiras no sistema gramatical inconsciente impedem a clareza que o raciocínio pleno demanda e requer para expressar o novo e o real.
Quem de vocês, leitores, conhece alguém que, além de ler dicionários — o que já é raro —, encontra erros incontestáveis neles por 40 anos seguidos? Isso tudo sob os meus olhos insipientes, abismados ante o show maravilhoso empreendido por este virtuose durante os quarenta anos de nossa amizade.
Sim, um amigo que é uma máquina de escrever ambulante sustentada por um corpo-cavalo cuja  missão é apenas carregar a mente privilegiada do escritor José Augusto Carvalho: as suas melhorias  no sistema gramatical o eternizam, por  seu projeto ampliar o alcance do pensamento em português. 
Casamar, 26 de março de 2017
*Psicólogo e escritor


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