Os Estudos Sobre o Pronome, de José Augusto
Carvalho, lançados em 2016 pela Thesaurus Editora, apresentam inúmeras
colaborações para o complexo problema do pronome na língua portuguesa. De fato,
é obra
sem igual, de ineditismo que me parece absoluto na área. Desconheço similar que
ataque e esgote todos os ângulos do pronome, esclarecendo tudo que as
gramáticas comuns relegam a um segundo plano.
Em uma
seara onde a impressão é de que se trata de um tema esgotado, há surpreendentes
novidades a respeito das funções do pronome. Ele tenta,
utilizando uma teoria chamada "das
ondas", ou de "conflito de
regras", explicar o emprego de ele
e de eu como objetos diretos, o
emprego de si-consigo não reflexivo e
a confusão entre os demonstrativos este
e esse, a mistura de tratamento
como recurso de estilo e o emprego da 3ª pessoa do singular em português,
francês e alemão como pronome de tratamento.
O início do livro é uma
resenha das obras portuguesas e brasileiras que estudaram o pronome pessoal.
Também fala, citando exemplos de textos diversos, da sintaxe complicada
do dialeto caipira, que muita gente pensa que é simples demais, que é só
conjugar o verbo de maneira igual em todas as pessoas, exceto na
primeira.
Após a leitura dos Estudos sobre o Pronome, então enxergo a terrível verdade: por
séculos os gramáticos da língua copiaram os erros uns dos outros,
perpetuando-os.
Deve ser
por causa disso que Guimarães Rosa e Monteiro Lobato desenvolveram uma
ortografia própria — a oficial é logicamente incompreensível e insatisfatória,
como evidenciam os achados de Zé Augusto.
Já tive a
oportunidade de assistir, como ouvinte, a aulas de Zé no segundo grau do
Colégio Estadual de Vitória, na companhia do então aprendiz de poeta Miguel
Marvilla. Seus exemplos inusitados e cômicos, o improviso, a segurança, a
fluência gramaticalmente e teatralmente infalível de frases, transformavam
assuntos áridos e insossos em algo tão sensacional quanto um poema de Drummond.
Geravam a sensação de estranhamento,
que, aprendi também com o professor, consiste na sensação do homem diante do
novo, segundo os formalistas russos.
Torna-se,
assim, um psicanalista gramatical, na medida em que suas interpretações mudam o
sistema gramatical inconsciente que é o motor computacional da língua — tal
qual a interpretação psicanalítica estabiliza o sistema psíquico humano. A fala
é a expressão consciente dessa massa bruta inconsciente de que (o consciente) é
pura expressão em variantes dialetais.
Zé não
almeja a beleza da verdade. Pois a verdade da perrengue gramática portuguesa é
feia de doer. Ele pretende a verdade da beleza, entrevista pelo cristal
quintessencial que vibra com a força do sentido do sistema gramatical dentro de
nós. Softwares e programas incompreensíveis, cujo sentido desconhecemos, mas de
onde emana a língua.
Um dia, ele
me disse na lata: “em nossas origens, eu sou um gramático; e você, um poeta.
Você quer ser original no desvio da norma e eu o denuncio. Ambos –gramático e
poeta – se complementam no poema da vida
e não existe um sem o outro”. E citou Clarice Lispector: ela contava a história
de um crítico que sabia todas e regras e truques e, por isso, não conseguia
produzir literatura — o que não é o seu caso, genial e renomado ficcionista
também.
A língua (langue), segundo Saussure, é um “tesouro
depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencentes à mesma
comunidade, um sistema gramatical que existe virtualmente em cada cérebro”
(apud Jonathan Culler, As Ideias de
Saussure, São Paulo, Cultrix, 1979, p. 23).
Quando José
Augusto melhora o sistema gramatical,
está, na verdade, eliminando vírus no computador humano, estabilizando o
sistema por meio de um upgrade e
aumentando o alcance do pensamento em português, pois ninguém pensa além da
linguagem, que é o código decodificador do real.
É a
seguinte operação: o sistema gramatical
gera a língua (langue), que possibilita a melhoria da fala (parole) e o
alcance da linguagem, que, por sua
vez, amplia a abrangência e a penetração do pensamento
brasileiro: as sujeiras no sistema gramatical inconsciente impedem a
clareza que o raciocínio pleno demanda e requer para expressar o novo e o real.
Quem de vocês, leitores, conhece alguém
que, além de ler dicionários — o que já é raro —, encontra erros incontestáveis
neles por 40 anos seguidos? Isso tudo sob os meus olhos insipientes, abismados
ante o show maravilhoso empreendido por este virtuose durante os quarenta anos
de nossa amizade.
Sim, um amigo que é uma máquina de
escrever ambulante sustentada por um corpo-cavalo cuja missão é apenas carregar a mente privilegiada
do escritor José Augusto Carvalho: as suas melhorias no sistema gramatical o eternizam, por seu projeto ampliar o alcance do pensamento
em português.
Casamar, 26 de março de
2017
*Psicólogo e escritor
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