Resumo: Durante muito tempo a crítica biográfica esboçou um retrato acabado de Florbela
Espanca (1894-1930), tornando-a conhecida como a poetisa da dor, da saudade e da melancolia.
Entretanto, novos olhares estão sendo lançados sobre a obra da escritora portuguesa,
revelando que ao invés da malograda poetisa, estamos diante de uma personalidade poética
atuante, extemporânea, e desafiadora do ideário feminino de sua época, uma persona dramatis
que nesse artigo chamei de “Outra”, aludindo à mulher como alteridade. Apresentamos nesse
estudo, aspectos da vida e da obra da poetisa alentejana, destacando o contexto social e
cultural no qual ela viveu e produziu, bem como, salientamos a importância do movimento
feminista para as escritoras do final do século XIX e início do século XX. Esses apontamentos
são resultado das pesquisas que culminaram na tese de doutorado “A flor e o Cisne: diálogos
poéticos entre Florbela Espanca e Rubén Darío”, de nossa autoria.
Palavras-chave: Florbela Espanca; Poesia; Feminismo.
Abstract: For a long time, the biographical critics outlined a finished portrait of FlorbelaEspanca
as a poetess od grief, yearning and melancholy, However, new the works of the Portuguese
writer is being observed from new points of view, revealing trhat instead of a fruistratedpoetes
we stand before an active, extemporary poetic personality, who challenges the feminine
system of ideas of her epoch, a persona dramatis whom , in this aricle, I called The Other,
alluding to a woman as the otherness. In this study we present, aspects of life and work of
the poetess from the Alentejo, pointing out the social and cultural context in which she lived
and produced, as well as we highlight the importance of the feminist movement of the end
of 19th and the beginning of the 20th century for women writers. These writings result from
the research that culminated in our PhD thesis ”The Flower and the Swan: poetic dialogues
between FlorbelaEspanca and Rubén Darío” of our own.
Keywords: Florbela Espanca; Poetry; Feminism.
Pesquisas que culminaram na tese de doutorado “A flor e o cisne: diálogos poéticos
entre Florbela Espanca e Rubén Darío”, permitiram que pudéssemos visualizar
uma imagem mais nítida da poetisa portuguesa Florbela Espanca (1894-1930),
para além da conhecida poetisa da dor, da saudade e da melancolia; da “malograda
poetisa” descrita por José Agostinho em 1931.
Deparamo-nos com uma mulher estrategista e diplomática, grávida, destemida,
desafiadora, irônica e brincalhona, peregrina e em trânsito, uma Florbela “espantosa
e quase inverossímil” (DAL FARRA apud VILELA, 2012, p. 132). Em 1979, a escritora e
biógrafa de Florbela, Agustina Bessa-Luís (1979, p. 38), declarou que, para ela, o melhor
“retrato” da poetisa foi feito por uma mulher que em uma tarde a viu numa ocasião:
“Era alta, estava vestida de branco, e um lenço vermelho caia-lhe do bolso sobre o
peito. Havia um enxame de homens em volta dela, e eu pensei que ela correspondia
à ideia que se faz de uma poetisa”. Florbela foi uma mulher extemporânea e se a sua
imagem ia ao encontro do que se pensava acerca de uma poetisa, certamente, essa era
diametralmente oposta ao ideário feminino de sua época.
Para a pesquisadora Ana Luisa Vilela (2012, p. 9), Florbela Espanca é uma
“personalidade que, fundamentalmente, nos deslumbra e desconforta, nos intriga
e nos comove”, e que é, também, um desafio para a crítica, na medida em que,
“controvertidamente, seu contributo tornou-a um marco referencial da poesia
portuguesa do século XX”.
Ao ingressamos na aventura de conhecer um pouco mais sobre a mulher por
trás do mito, observando como, equivocadamente, durante muito tempo, o amálgama
vida e obra marcou a leitura de sua obra e a história da sua recepção, nos acercamos
da teoria da Estética da Recepção. Foi na década de 1970 que Hans Robert Jauss (1994)
criticou a objetividade e pouca abertura em relação a fatores externos dos métodos
praticados nas análises dos textos literários, que não reconhecia a importância do leitor no processo da leitura e entendimento da obra, além de negligenciar a historicidade do
texto. Citamos Jauss para destacar que a obra poética de Florbela foi recebida de maneira
diferente em diversos momentos da história, como mostra o horizonte de expectativas
do público, desde seus primeiros escritos, até os dias de hoje. Primeiramente, ela
conheceu o silêncio e, posteriormente, o furor da crítica patriarcal e falocêntrica de sua
época e, após a sua morte por suicídio, a poetisa foi desclassificada pela igreja católica,
que desaconselhou a leitura dos seus poemas, como sendo um péssimo exemplo,
de uma pessoa moralmente perniciosa. Ana de Castro Osório afirmou que Florbela
Espanca não abriu para si “nenhum horizonte profissional” a não ser o de “literata”, e
esse atributo era “o mais desagradável que podia ser dito de uma senhora, que era
vista com um livro na mão” (ESPANCA, 1995, p. 16).
Na contramão do status quo, Florbela trouxe incômodos à sociedade moralista
de sua época. Foi por meio do soneto, modelo clássico de expressão lírica preferida
pelas poetas da época, chamadas pela crítica masculina intolerante e misógina de
“poetisas-de-salão”, que Florbela ousou enunciar um discurso prenhe de erotismo.
Antônio Ferro (1931), no artigo que deu visibilidade nacional a Florbela, escreveu que
a poeta figurava em seu ficheiro como sendo “uma das poetisas da colmeia”, mais
uma das “cigarras do [...] lirismo inofensivo” de “palcos” e de “salas”; mas, depois de
ler seus sonetos mais atentamente, percebeu que era “uma poetisa autêntica”. José
Agostinho (1931) escreveu: “Se D. Florbela nos tivesse mandado seus livros, teríamos
agora pungentíssimos remorsos”, pois, “a injustiça do nosso silêncio teria sido flagrante
e abominável”; mas não lhos mandou.
A escritora Agustina Bessa-Luís escreveu a biografia romanceada de Florbela
em 1979. Nela, observamos que José da Rocha Espanca, padre de Vila Viçosa, em
1892, escreveu o Compêndio de notícias de Vila Viçosa. O religioso detalhou aspectos
do território alentejano, defendendo que “os celtas foram os primeiros habitantes do
Alentejo” e que os “Belos” foram “os tais Celtibeiros com cheiro fenício” (BESSA-LUÍS,
1979, p. 10). Daí que o padre Antônio Joaquim da Rocha Espanca tenha batizado a filha
adulterina de João Maria Espanca como Flor-Bela. Bessa-Luíz (1979, p. 7) associando o
universo da poeta alentejana ao do bardo-celta, situado entre dois mundos, oscilando
entre a morte e o renascimento, “ligado à função sacerdotal” e a manifestação da poesia
lírica ou histórica. A avó paterna de Florbela, Joana Fortunata Pires Garção, serviu no
convento de Santa Cruz de Vila Viçosa até se casar com José Maria Espanca. O casal teve
dois filhos, José de Jesus da Rocha Espanca e João Maria Espanca, futuro pai de Florbela.
Os Espanca tinham pendências para as artes. João Maria Espanca, além de grande
boêmio, era artista e tinha um espírito aventureiro. Ele aprendeu o ofício de sapateiro
com seu pai, mas acabou se tornando dono de um antiquário e viajava de localidade em localidade comprando utensílios para serem revendidos. João Maria conheceu
a Espanha, andou pelo Marrocos, pela França e, numa dessas viagens, adquiriu um
Vitascópio de Édson, máquina que projetava imagens em movimento. Passou então
a trabalhar exibindo filmes nas casas das famílias que o contratavam tanto em Lisboa,
quanto em outras regiões. Além de ter trabalhado com cinematografia, sendo um dos
pioneiros dessa arte em Portugal, o pai de Florbela teve um estúdio fotográfico em Vila
Viçosa (Photographia Moderna). A existência do estúdio facilitou um acompanhamento
do crescimento de Florbela, e temos imagens de sua infância, adolescência e algumas
que mostram a poeta na idade adulta.
Florbela Espanca nasceu no dia 8 de dezembro de 1894, um dos dias mais
importantes do calendário português: dia de Nossa Senhora da Imaculada Conceição,
padroeira de Portugal.
Florbela Menina |
Foi na igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição que foi
batizada pelo padre primo de seu pai. Embora Florbela tenha nascido sob a égide da
santa da “imaculada conceição”, levando em consideração o modelo moral aceitável
estabelecido pela igreja católica na época, a sua história familiar e pessoal se apresenta
como um desvio desse modelo: Florbela é fruto de uma relação extraconjugal. A esposa
de João Maria Espanca, Mariana do Carmo Inglesa, mais velha que João Maria e com
um dote significativo, não podia ter filhos; assim, consentiu que o marido se unisse a
Antônia da Conceição Lobo. A mãe biológica de Florbela era de origem muito humilde
e foi criada em situação de quase miséria por uma senhora que atendia pelo sobrenome
Lobo. Como destacou Concepción Delgado Corral (2005), “foi com dotes de Don Juan”
que João Maria Espanca raptou Antônia Lobo, levou-a para o seu estabelecimento e
depois a instalou em uma casa fora do centro da cidade. Mariana Toscano do Carmo,
chamada de “Inglesa” porque vinha de uma família que tinha olhos azuis, consentiu
na vida dupla do marido e, após o nascimento de Florbela, tornou-se sua madrinha
de batismo. A menina foi batizada como Florbela D’alma da Conceição Espanca, filha
de Antônia da Conceição Lobo e de “pai incógnito” (ESPANCA, 1999, p. XLV). Antônia
da Conceição Lobo gerou também o irmão único de Florbela, Apeles, três anos mais
novo, que foi criado junto à irmã por João Maria Espanca e Mariana Inglesa. Em 1908,
Antônia faleceu, tinha então vinte e nove anos.
Florbela Espanca relatou ter vivido uma infância feliz e cercada de cuidados e
registrou numa carta: “Tive os melhores professores de tudo na capital do Alentejo (que
se são melhores não são bons), de bordados, de pintura, de música, de canto” (ESPANCA,
1995, p. 31). Na época, a família tinha uma situação financeira estável e a educação
de Florbela ficou a cargo da madrinha e madrasta Mariana Inglesa. Desde muito cedo
Florbela mostrou aptidão para a literatura, tanto que, em 1903, aos nove anos, escreveu
o seu primeiro poema, intitulado “a vida e a morte”, que ela dedicou ao seu pai:
O que é a vida e a morte
Aquela infernal inimiga
A vida é o sorriso
E a morte da vida a guarida
A morte tem os desgostos
A vida tem os felizes
A cova tem a tristeza
E a vida tem as raízes
A vida e a morte são
O sorriso lisonjeiro
E o amor tem o navio
E o navio o marinheiro
(CORRAL, 2005, p. 231).
Quando completou onze anos, Florbela já escrevia em francês, embora os
textos apresentassem erros ortográficos. Foi entre julho e setembro de 1907 que fez
experiências com a prosa e escreveu o conto “Mamã” (CORRAL, 2005, p. 33).
A casa de Florbela Espanca ficava bem próxima à residência de verão da Família
real. De acordo com Bessa-Luís, (1979, p. 10), “a euforia castiça” tomava conta do povo
quando os reis chegavam, e os acontecimentos relacionados com os membros da
monarquia eram acompanhados de perto pelos Espanca, em função do interesse de
João Maria pela política.
A corte dos Bragança era “pobre, sentimental, velhaca, dorida
de intrigas domésticas”, e “suas banalidades fecundavam as demagogias das praças
públicas”, e, como destacou Bessa-Luís (1979, p. 11), Florbela ouvia os passos dos
oficiais na “galanteria das caçadas reais”, mas “Vila Viçosa decepcionava-a”.
Em 1908, a família de Florbela mudou-se para Évora, para que esta pudesse
continuar os estudos no Liceu de André Gouveia. Apenas Florbela e outra menina
frequentavam o Liceu. Florbela estudou até 1913, quando largou os estudos para se
casar, deixando inconclusa a 7ª série. Apenas em 1917, a poeta concluiria o ano de
estudo que faltou para que pudesse entrar na sonhada Faculdade de Letras.
Importantes acontecimentos políticos ocorreram nesse período, entre eles
destaca-se a morte do Monarca D. Carlos e do príncipe herdeiro, Luis Felipe, ambos
assassinados na Praça do Comércio, em Lisboa. Após o regicídio ocupou o trono o
segundo filho de D. Carlos e D. Amélia, D. Manuel, que reinou como D. Manuel II, mas a
monarquia foi perdendo força. Posteriormente, houve sucessivos governos provisórios
em Portugal, até que em 1910 foi instaurada a República (BOURDON, 2010). Dal Farra
(ESPANCA, 1994, p. 58) destacou que, se Florbela não teve ocasião de comungar
diretamente dos ideais republicanos, ela os incorporou “à influência de João Maria
Espanca”, seu pai, que era um defensor e militante ferrenho da causa. Dessa forma,
a poeta tanto apreciava quanto exaltava tais doutrinas. Convém destacar que, desde 1914, a Liga Republicana de Mulheres Portuguesas e a Associação de Propaganda
Feminina haviam sido dissolvidas pela ditadura.
Florbela batizou o seu primo, Túlio Espanca, em 1913, e nesse mesmo ano se
casou com Alberto de Jesus Silva Moutinho, amigo de muitos anos do Liceu. Começam
as mudanças: Florbela mudou-se para Redondo e o casal passou por graves dificuldades
econômicas, pois o único rendimento provinha das aulas particulares que ambos
ministravam para alunos do colégio. A situação tornou-se insustentável ao ponto de
Florbela se ver obrigada a retornar para Évora. O casal então passou a morar com João
Maria Espanca e a dar aulas no colégio de Nossa Senhora da Imaculada Conceição.
Florbela voltou novamente para Redondo e foi então que passou a escrever poemas.
Observamos que a poeta passou por muitas dificuldades financeiras. Não é de
se estranhar o fato de que a publicação de seus livros tenha ficado ao encargo de seu
pai, João Maria Espanca.
Durante muito tempo, a crítica míope acusou Florbela Espanca de ter sido uma
poetisa apolítica, bem como de ser superficial e refugiar-se no mundo dos sonhos. Mas
Florbela não foi alheia aos acontecimentos de sua época.
Em 1915 a situação de Portugal
era convulsa, foi quando Florbela se declarou anarquista e começou a escrever os
poemas que reuniria, em 1917, no caderno Trocando Olhares. O manuscrito Trocando
Olhares foi descrito pela crítica Dal Farra como um “objeto arqueológico” de caráter
“híbrido” da poética florbeliana, que faz trânsito entre “a limpidez absoluta” e “um
emaranhado quase indecifrável”, ao mesclar a caligrafia esmerada com esboço de
poemas rascunhados e cheio de retificações (ESPANCA, 1999, p. 17).
O ingresso de Portugal na Primeira Guerra Mundial, em 1916, moveu partidários
republicanos e poetas engajados como Raul Proença, interlocutor importante para
a poética florbeliana e editor do Livro de Mágoas, de Florbela.
O Livro de Mágoas foi
publicado em 1919, com poemas retirados do manuscrito Trocando Olhares, em 1923
a poetisa publicou o Livro de Sóror Saudade e, em 1931 veio a lume, postumamente, a
obra Charneca em flor.
Florbela Espanca reflete sobre o fazer poético e sobre as condições às quais esse
fazer está sujeito, como, por exemplo, a historicidade da condição da mulher, e este é
um posicionamento político que corrobora o nosso posicionamento quanto a poeta
ter vivenciado o engajamento via poesia. Foi no influxo de variadas interlocuções e
diálogos, a saber, com Madame Carvalho, Júlia Alves, Raul Proença e, mais, com o
mercado literário e com o seu tempo, que Florbela atravessou “o limiar entre o privado
e público” (ESPANCA, 1999, p. 143).
Deparamo-nos aqui com o aporte bakhtiniano. Mikhail Bakhtin (1895-1975)
fez parte da escola formalista, mas divergiu dela ao reivindicar uma abertura sobre o mundo e sobre o “texto social”, além de propor o dialogismo como condição
sinequa non do discurso (COMPAGNON, 2001, p. 111). Bakhtin (2003) postulou que
a linguagem é um fenômeno que só acontece na relação do sujeito com o outro,
também é ela que, no processo de interação social, constitui a consciência do sujeito.
Os pensamentos de Bakhtin e de Jauss, referentes à historicidade no âmbito literário,
possuem consonâncias. Para Jauss (1994, p. 47-48), a coerência da história geral é
homogeneizadora, pois “a historicidade da literatura revela-se, justamente, nos pontos
de interseção entre diacronia e sincronia”. O pensador alemão chama a atenção para
o fato de a obra de arte não surgir no vazio, e nem por si só. Esse pensamento vai
ao encontro de Bakhtin, para quem “a obra de arte é viva e significante do ponto de
vista cognitivo, social, político, econômico e religioso, num mundo também vivo e
significante” (BAKHTIN, 1993, p. 30):
O meio social deu ao homem as palavras e as uniu a determinados significados e apreciações; o mesmo meio social não cessa de determinar e controlar as reações verbalizadas do homem ao longo de toda a sua vida. Por isso todo o verbal no comportamento do homem (assim como os discursos interior e exterior) de maneira nenhuma pode ser creditado a um sujeito singular, tomado isoladamente, pois não pertence a ele, mas sim ao seu grupo social. [...] Nunca chegaremos às raízes verdadeiras e essenciais de uma enunciação singular se a procuramos apenas nos limites de um organismo individual singular, mesmo quando tal anunciação concernir aos aspectos, pelo visto, pessoais e íntimos da vida de um homem (BAKHTIN, 2004, p. 86).
A partir do aporte bakhtiniano, observaremos que não foi apenas Florbela que
teve dificuldades na enunciação do discurso poético. Constatamos que de todos os
lugares destinados pelo sistema patriarcal à mulher, seja de mãe, esposa, amante
ou de musa, existe um que só foi possível por apropriação, o de escritora. Quando
pesquisávamos na Torre do Tombo, acerca do movimento feminista português do
primeiro quartel do século XX, nos deparamos com uma matéria publicada no dia
27-3-1912, no Jornal lisboeta O Século, que trazia como título: “Uma mulher de Letras:
A CONDESSA DE PARDO BAZÁN”. Essa publicação mostra o empenho das escritoras
feministas, e de alguns intelectuais, para que Emilia Pardo Bazán fosse admitida na
Academia Espanhola:
Emilia Pardo Bazán é hoje não apenas a primeira figura de escritora de que a
Espanha e a península se podem orgulhar, mas também umas das primeiras
da Europa, quer no romance, quer na crítica literária. A sua vasta bibliografia
encerra verdadeiras obras primas, que lhe grangearam a maior e mais justa
reputação. Artista perfeita, prosadora admirável, espírito brilhante e sagaz,
d’uma cultura de que o seu sexo nos não dá muitos exemplos, ela conseguiu,
mercê dos seus méritos singulares e d’um trabalho que ainda não buscou
descanso, impor-se de maneira que, apesar de todos os preconceitos e das
relutâncias dos anti-feministas, faz parte do Conselho de Instrução Pública hespanhol e é presidente da secção de letras no Ateneu de Madrid. Vagando,
há pouco, uma cadeira na academia, por morte do grande matemático e
sábio poliglota Eduardo Saavedra, produziu-se em Hespanha um entusiástico
movimento como o fim de lembrar e até impor o nome ilustre de Pardo
Bazán para o preenchimento da referida vaga. A insigne autora de La madre
naturaleza e de tantas outras maravilhas literárias é galega, motivo porque
esse movimento é na Galiza apoiado com um ardor excepcional. Resta ver
se a Academia tem a coragem de se honrar com a admissão entre os seus
membros de uma senhora que é incontestada na glória [o restante da página
estava cortado]” (O Século, 27-3-1912).
Assim como a escritora Emilia Pardo Bazán (1851-1921) encontrou dificuldades
para alcançar o reconhecimento do seu talento literário, outra escritora galega, Rosalía de
Castro (1837-1885), também teve que enfrentar muitos preconceitos até ter reconhecido
o seu valor. As vicissitudes da biografia de Rosalía de Castro, assim como as de Florbela
Espanca, contribuíram para que em torno da mesma se erijisse uma aura que acabou por
mitificá-la. Rosalía e Florbela vivenciaram situações semelhantes, como, por exemplo,
foram ambas frutos de relações extraconjugais, o que na época em que viveram era algo
que a sociedade tolerava, mas não aceitava. Florbela Espanca cantando a dor, a saudade,
a sensualidade, o erotismo, a terra alentejana, o sonho, as vaidades. Rosália também
desenvolveu na sua poesia temas variados, ela cantou a dor, a saudade, a religiosidade,
questões existenciais como o questionamento do sentido da vida, a Galiza e trouxe para
o primeiro plano os marginalizados (órfãos, mendigos, mães solteiras, os imigrantes
galegos). Fiéis às suas verdades interiores, tanto Florbela Espanca, quanto Rosalía de
Castro têm destacada, por inúmeros críticos, a coragem, por cantarem temáticas
relevantes para a emancipação das mulheres, numa época em que o peso opressivo da
cultura patriarcal inviabilizava o discurso feminino. Esses são exemplos da importância
do movimento feminista no processo de emancipação feminina.
Vale destacar que as mulheres do século XIX foram potências produtivas
domésticas, e as mais pobres, entre outras atividades, produziam artefatos que vendiam
nos mercados, eram costureiras e operárias. Já as mulheres burguesas trabalhavam
para os seus maridos. Muitas vezes elas exerciam as mesmas funções que os homens,
mas não eram remuneradas equitativamente. Michelle Perrot (1988) destaca que o
feminismo surgiu como movimento social, e não político, e isso fortaleceu a ideia
de que política não era coisa de mulher. Foi a partir de 1848 que o feminismo se
desdobrou em variadas direções e despertou uma forte resposta social contrária, tanto
que os sindicatos passaram a lutar para que as feministas não tivessem espaço nem
remuneração no mercado de trabalho. Nessa época, muitos sindicatos exigiam que
fosse extinto o trabalho feminino fora do lar. Não conseguindo impedir a inserção da
mulher no mercado de trabalho, o sistema regulamentou a sua atuação. O principal veículo de difusão dos ideais feministas foi a imprensa. As mulheres liam os jornais
diários, se apropriavam dos folhetins e foram, pouco a pouco, conquistando espaço.
Florbela publicou em variados jornais e revistas. A poeta publicou, entre os anos de
1916 e 1930, no Notícias de Évora, A Voz Pública, O Século da Noite, no Diário de Lisboa,
na Revista Seara Nova, Europa, Dom Nuno, O Primeiro de Janeiro, Revista Civilização,
Diário de Coimbra, Portugal Feminino e no suplemento feminino do jornal O Século,
Modas & Bordados. O jornal O Século era esquerdista, e podemos observar a notícia
de seu lançamento no dia 28-1-1912, nasceu com o objetivo de instruir donas de casa,
mas acabou por tornar-se espaço para as poetisas feministas publicarem seus textos:
De há muito tempo que vínhamos recebendo indicações sobre a falta, em Portugal, de uma publicação que, reunindo a modicidade do preço à perfeição da fatura, permitisse a toda mulher portuguesa, qualquer que fossem os seus meios, seguir a evolução das modas e bem assim a de todos os trabalhos femininos que constituem as melhores prendas de uma boa dona de casa. Sentíamos, nós também, essa falta. É certo que se vendem no nosso país alguns milhares de publicações francesas, inglesas e espanholas, contudo o que se faz lá fora n’essa especialidade [...] Sairá todas as quartas-feiras um suplemento de Modas e Bordados, com oito grandes páginas, cheias de figurinos que acompanham, dia a dia, a moda estrangeira, mas, adaptados ao nosso meio; publicará também numerosos desenhos de bordados, letras, rendas, etc. , etc. , que forneçam a todas as senhoras modelos de trabalhos em todos os gêneros; dará explicações detalhadas de todas essas gravuras e desenhos; fornecerá bons conselhos práticos sobre tudo quanto diz respeito à mulher, e, n’uma secção especial, encarregar-se-á de respondera todas as perguntas que lhe sejam enviadas (O Século, 1912).
Entretanto, no dia 4-2-1912, o jornal O Século destacou um detalhe interessante:
que o suplemento cuidaria a sério “de todos os assuntos que dizem respeito à educação
de uma boa e sensata dona de casa”, isto é: “será um jornal, um dos poucos jornais que
se pode deixar nas mãos de uma menina, sem que a sua leitura lhe infiltre no espírito
más tentações, antes lhe aperfeiçoe o seu natural bom gosto e lhe inspire ideias sãs”.
A escrita feminina em Portugal, na época em que Florbela produziu a sua obra,
não era tabula rasa, ou seja, Florbela Espanca não surgiu no vácuo, como destacou
Bakhtin. No início do século XX muitas mulheres passaram a escrever poesia. Esse
fenômeno foi descrito como “um surto de poetisas” pela crítica, o que remete o termo
“poetisa” para o campo da patologia, relacionando-o com a ideia de doença, epidemia.
As poetas alcançaram grande popularidade, especialmente na década de 1920. Um
breve olhar para o cenário da escrita feminina do século XIX mostra que entre os
anos de 1849 e 1851, foi publicada a revista Assembléia Literária, dirigida por Antônia
Gertrudes Pusich, uma das primeiras escritoras que ousou assinar o próprio nome
numa publicação, numa época em que as identidades eram resguardadas por meio de
pseudônimos. Em 1868, surgiu a revista A Voz Feminia, que abriu espaço para as mulheres que desejassem publicar. Em 1867, Maria Amália Vaz de Carvalho lançou a obra Uma
primavera de mulher, que suscitou do crítico Ramalho Ortigão este comentário: “o pai
e o marido, e não mais Deus, eram os novos tutores e médicos da mulher”, declarou
ainda que essas mulheres deveriam se submeter “dócil e amorosamente” a estes nos
períodos de sua existência (ALONZO, 1994, p. 22). A tendência à patologização pode
ser observada na propaganda das pílulas Pink, uma entre muitas que prometiam força
e saúde ao sexo considerado frágil.
Belas Senhoras, cuidado, muito cuidado: Cuidado com a primavera encantadora, sim, mas perigosa! Sois fracas, todos os vossos órgãos são fracos. O vosso sangue está carregado de impurezas, e os vossos rins demasiado fracos não podem eliminar essas impurezas. É mister, porém, que elas saiam. Sairão pela pelle, e o vosso belo rosto não tardará a ser deteriorado, afeiado, por uma quantidade de cousas detestáveis: erupções, fogagens, borbulhas, grandes furunculos até. O vosso intestino é fraco. [...] Purificam o sangue, e o pouco sangue que tendes está impuro. Tonificam o sistema nervoso, que tanto tendes fatigado nas festas e prazeres da sociedade, ou nas fainas do trabalho, têem grande necessidade de um tônico. As Pílulas Pink estimularão todos os vossos órgãos. Se não vos tardardes agora já, pagareis bem cara a vossa negligência: tome pois as PILULAS PINK” (O SÉCULO, 1912).
A escritora portuguesa Ana Plácido (1831-1895), amante do escritor Camilo
Castelo Branco e, posteriormente sua esposa, escandalizou a sociedade portuguesa
chegando a ser presa por adultério. Ana Plácido também utilizava pseudônimos.
No século XX surgiram em Portugal O Grupo Português de Estudos Feministas (1907),
A Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, em 1911, a Associação de Propaganda
Feminista, em 1914, e o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas. Todos esses
movimentos foram dissolvidos em 1926 pelo Estado Novo. As mulheres que participaram
do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas se reuniram em torno da revista Portugal
Feminino, da qual Florbela foi assídua colaboradora durante o último ano de sua vida. O
reconhecimento do público não era algo inalcançável. Escritoras como Branca de Gonta
Gonçalo (1880-1944), Alice Moderno (1867-1946), Domitila de Carvalho (1871-1966),
conciliaram a escrita com atitudes femininas esperadas e aceitáveis, sendo aplaudidas
por homens e mulheres. Maria de Carvalho (1889-1973), por exemplo, prefaciou a obra
de Gonta Colaço destacando qualidades tradicionalmente femininas como a beleza, a
modéstia e o altruísmo, e Virgínia Victorino (1898-1967), autora de Namorados, fez tanto
sucesso que sua obra foi editada doze vezes. Essa obra de Virgínia Victorino se afasta da
produção de Florbela por não abordar temáticas como a sensualidade.
Isabel Freire (2010, p. 53) destaca o fetichismo dos discursos opressores na época
do Estado Novo: “as Raparigas que aspirassem a outro destino menos doméstico e
menos ‘puro’ colocaria em forte risco a sua virtude”. Publicações católicas como a
revista Stella traziam o apelo dramático das mães e das educadoras advertindo para que se tomasse cuidado com as meninas, pois estas corriam perigo no alucinado
século (FREIRE, 2010, p. 53). Segundo essa revista: “Não é com matemática e história
na cabeça, o nome da fita recente ou do romance em voga que as pobres raparigas vão
saber viver”, antes é por meio da educação cristã (FREIRE, 2010, p. 53).
A feminilidade de Florbela Espanca não foi domada, a sua obra se aproxima da
de Judite Teixeira (1880-1959), poeta que, na mesma época em que Florbela lançou
o Livro de Sóror Saudade (1923), publicou a obra Decadência, cujos exemplares foram
apreendidos sob a acusação de serem imorais, por terem um forte teor sensual e fazerem
alusão ao lesbianismo, atração considerada perversa (ALONZO, 1994). Suilei Monteiro
Giavara (apud VILELA, 2012, p. 190) nos faz saber que Judite Teixeira provavelmente
conhecia Florbela, pois dirigia o jornal Europa na época em que Florbela publicou o
soneto “Charneca em flor”, em junho de 1925.
Florbela Espanca resistiu transgredindo, cantando o corpo, a liberdade, e a carga
de sensualidade presente na sua obra poética vinculou-a a uma inextricável associação
entre o prazer sexual e o proibido, ou seja, ao pecado. É preciso atentar para o fato de que
Florbela viveu em um tempo no qual as mulheres não tinham liberdade sexual, ou seja,
não tinham direitos plenos sobre o seu corpo e sobre a sua sexualidade. A liberdade que
hoje se materializa no direito ao prazer, que já não é apenas reservado aos homens, era
vetada às mulheres consideradas honestas, e o corpo, com suas sensações e demandas,
era considerado um tabu. Observemos que, mesmo no século XXI, a sexualidade e o
sexo, para a maioria das pessoas, ainda fazia parte da intimidade e continua pertencendo
ao campo do privado. O poema “III”, que está reunido na seleção intitulada “He hum não
querer mais que bem querer”, mostra de forma explícita os caminhos do desejo e da
sedução por onde passa o eu poético florbeliano.
Frêmito do meu corpo a procurar-te,
Febre das minhas mãos na tua pele
Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel,
Doido anseio dos meus braços a abraçar-te,
Olhos buscando os teus por toda a parte,
Sede de beijos, amargor de fel,
Estonteante fome, áspera e cruel,
Que nada existe que a mitigue e a farte!
(ESPANCA, 1999, p. 258).
Florbela integrou esse grupo de poetas que cantou o amor, a dor, a desilusão e que
foi alvo de muitas críticas no primeiro quartel do século XX. Um dos muitos críticos, que era
contra a inserção da mulher no campo da poesia, e, diga-se de passagem, do discurso, foi
Ramalho Ortigão. Desde 1877, na obra As Farpas, Ortigão apregoava o quanto a educação
das mulheres as desviava de sua missão própria: “preparar o caldo”. Chamamos a atenção para a forma como, nos poemas recolhidos no jornal esquerdista O Século, a atitude era
de abnegação das mulheres, de submissão frente ao masculino. Temáticas como o elogio
da saudade e de outros temas portugueses, a culinária e a religião eram corriqueiros na
imprensa da época. Se a escrita feminina não era vista com bons olhos, como veremos
detalhadamente mais adiante, ela era tolerada, desde que não se desviasse do ideário
feminino da época. A escrita feminina era considerada a expressão de “mulheres de alma
delicada, e com espíritos igualmente delicados” (O Século, 1919).
Florbela não escapou a muitas das temáticas comuns à sua época, nem foi poupada
de críticas, mas o amor que descreve na sua poesia não é submisso, antes, é um amor
ansioso, que deseja um para “além...”, tanto do objeto amoroso, pois seu amor espalhase para “Este e Aquele, o Outro e a toda gente...”, até alcançar a despersonalização e
“Amar! Amar! E não amar ninguém!”, como observamos no poema “Amar”:
Eu quero amar, amar, perdidamente!
Amar só por amar; Aqui...além...
Mais Este e Aquele, o Outro e a toda gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!
(ESPANCA, 1999, p. 232).
Como observamos, Florbela Espanca levou uma vida extemporânea. Foi literata,
lugar social que na sua época não era bem visto quando ocupado por uma mulher. Dona
de uma personalidade autêntica, corajosa, a poeta tinha consciência das dificuldades
do campo de trabalho que escolhera. Diferente da maioria das mulheres de sua época,
Florbela teve acesso à educação. A poeta cresceu em um ambiente politizado, pois
seu pai, João Maria Espanca, era militante republicano atuante. Como vimos, Florbela
publicou dois livros em vida, o Livro de Mágoas (1919) e o Livro de Sóror Saudade (1923).
A sua terceira obra, o livro Charneca em flor (1931), foi publicado postumamente por
Guido Battelli, professor italiano que dava aulas na Universidade de Coimbra. Battelli é
um personagem controverso da história editorial florbeliana. Após a morte de Florbela,
ele manipulou documentos e inaugurou um movimento de associação entre a vida e a
obra de Florbela. Se por um lado essa associação mecanicista fez com que o nome de
Florbela ficasse conhecido em todo Portugal, por outro desviou a atenção do público e da
crítica da imanência de sua obra. Destacamos que, a partir do pressuposto bakhtiniano,
a obra poética de Florbela dialoga com a tradição literária popular e culta e com o seu
tempo, com a crítica, com o mercado literário. Rico é, também, o diálogo interno que
estabelece em cada um de seus livros, seja com o amado, com a natureza, ou consigo
mesma. Tanto Bakhtin quanto Jauss apontaram para a importância da historicidade para
o entendimento da obra de um determinado escritor; e foi em consonância com esse
pensamento que lançamos o olhar para a escrita realizada por mulheres no final do
século XIX e início do século XX, e as suas implicações. Constatamos que Florbela, mesmo utilizando uma forma poética rígida, o soneto latino, cantou a liberdade e o erotismo,
temáticas tabus na sua época. Essa ousadia e insurreição feminina, revelados por essa
“Outra” Florbela, a poeta insurreta, vincularam os seus escritos ao campo da alteridade.
Originalmente publicado na Revista Ágora (Acesse)
Vitória • n. 22 • 2015 • p. 111-123 • ISSN: 1980-0096
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