16/12/2020

Elogio da sombra em dez atos (Renata Bomfim)

 

I

É demais!

O que?

Essa dor parece rasgar as entranhas.

Toma um remédio e vai dormir.

Dormiria, sim, se pudesse.

Fecharia os olhos e voltaria a abri-los, apenas,

Quando fosse outro o mundo.

Você só fala bobagens! A gente é o que é, acabou!

 

Sombras. 

Passo pela cidade observando as sombras.

O sol desenhou no pinheiro uma bastante engraçada, parecia uma peruca de palhaço.

Caminhei pelo centro observando os casarios, vi memórias

Projetadas na rua, nos prédios vizinhos que se erguiam felizes e fumês.

 

As sombras.

Elas passam despercebidas aos demais, por que se impõem aos meus olhos?

Senti um calafrio. Pensei que poderia ser alguém que não está mais aqui.

Mas como isso pode ser possível?

Claro que é possível.

Mas...

Mas nada, mas tudo. Dissolvemo-nos, entretanto, permanecemos aqui, é uma desgraça, porém, uma condenação merecida. Precisamos aceitar a sombra antes que ela nos renegue.

Mexo nos cabelos. As madeixas e as sombras, nesse momento, se tornaram o centro da minha vida. As sombras não podem ser pintadas, mas os cabelos sim, por isso eu os coloro sempre, como se esse gesto simples e estúpido pudesse mudar a cor da mente (densa e cinzenta como as sombras).

 

II

É preciso coragem para enxergar a sombra. Ela sabe, aproxima-se sorrateira como um crocodilo grande. 

Para com essa história de sombra, cansei de escutar.

Tudo bem, mas que as sombras estão vivas, ah! Estão sim. 

Ok, já entendi, vou perguntar para a minha sombra se ela deseja ir a Camburi, certamente recusará. 

Olho para esse ente que enxerga apenas a densidade e sussurro: você é uma sombra!

 

III

O sol rasgou o céu essa manhã, lindo!

Já não acredito em prelúdios e vivo, agora, no ritmo do acaso: samba do caos. 

Penso em plantar feijões que brotem e se elevem para além das nuvens, onde existe um castelo cheio de riquezas, e um gigante bobo. Logo vem à mente a imagem da sombra projetada do gigante. Imagino que ela cobriria parte da terra (sinto uma excitação), talvez essa sombra toda cubra a Ilha. Direi ao gigante onde vivo e ele se inclinará da nuvem para ver Vitória: o povo capixaba não vai entender o fenômeno. 

O céu matutino já foi alinhavado, agora é tarde, hora de eu me desdobrar como um origami, de deixar as leituras fantásticas, me despedir de Goya: Saturno venceu! Viu, estimado pintor, não adiantou pintar sombras sobre o muro, a fantasia sempre vence, a tela aprisiona as imagens selvagens alimentando-as com branco e ocre. Vou cuidar do muro da minha casa, na verdade esse muro é feito com grades, a sombra pode passar, mas, nunca se projetará inteira. Vou cozinhar feijão.

 

 

IV

Preciso de ti,

De tua mão sobre a minha,

Preciso de ti.

As cantigas de criança rondam o meu coração,

Os ouvidos estão encharcados de melodias saudosas.

Um torrão de açúcar derrete na boca,

A garganta só conhece o amargor.

Preciso de ti sem precisar de ti.

Escolhi te desejar por medo do vazio.

 

Olho as mãos movidas pelo tempo,

Os dedos ensaiam atos concretos de vazio.

Tuas mãos projetam lindas sombras

Imagino o espetáculo de imagens que se formariam se elas soubesse bailar, se não fossem tão duras. Sim, não são apenas os pés que dançam, as mãos são dançarinas natas. As tuas estão endurecidas porque estás surdo para as cantigas de criança.

O quanto lamento. Perdeste as carnes e o sangue, te tornaste Carrara.

Lamento, mas, ainda assim, te admiro.

 

V

Abri a última gaveta do guarda-roupa e achei um lenço rock end roll  comprado numa feirinha no Chiado. Lisboa é considerada uma cidade de luz. As pedras são tão brancas que parecem templos. Parece que os lisboetas vivem num eterno exercício de adoração ao sol e exorcismo das sombras.

Sempre fui mulher das sombras, enamorada da luz. Os cantinhos dos cristais, velas, incensos, orações dobradinhas, cartas queimadas em oferenda aos senhores do Karma, o espelhinho na parede violeta. Tudo isso de um lado, do outro, o tercinho, a bíblia, os cânticos: um mimo!

O meu lenço de caveirinhas é lindo: imita seda, é de um rosa meio século XIX, tem algo de aristocrático e decaído. O lenço é lindo e é meu! Lembro que passeei com ele na Espanha e no Marrocos, ninguém viu, acredito, mas passeei com os cabelos pintados, o lencinho rock end roll meio século XIX e a mente cinzenta e fértil. Gaveta fechada. 

 

 

 

VI

A sombra dos poderosos é o desassossego do grande vazio. Não o vazio prenhe de possibilidades, mas o oco, o buraco, boca que nunca se sacia. Sim, o poder é a fome insaciável de tudo. Entre quatro paredes, para os poderosos, a mulher é um banquete, fruição dos sentidos, presa. Fora da intimidade eles rechaçam a mesma mulher: a fome é a mesma. Pulsão, pulsão, pulsão... tudo explicado, menos o buraco insondável que arrasta os poderosos que nos arrastam para o buraco.

 

VII

Vai buscar o raio de luz,

Vai buscar o pêssego maduro.

Anda e canta pelo caminho,

Os pássaros te acompanharão.


VIII

Sou uma mulher barroca, pictórica e trágica.

Por isso comprei uma matriosca. Sempre quis ter uma dessas bonecas russa. A minha matriosca é um tanto difícil de abrir,¾ rio enviesado¾, talvez por isso ela se pareça tanto comigo. Pego delicadamente a bonequinha (eternamente grávida de si mesma) e a torço com um jeitinho. Eis que ela reaparece, menor, mas igual (filhotinho de si mesma): oca, oca, oca... Novamente, torção delicada e, opa, que lindinha, outra, depois outra, depois outra, até que chego a uma versão miudinha e maciça, que não se abre mais (o sorriso agora é miúdo e maciço como a boneca). Sinto como se chegasse ao fundo de mim mesma. A razão está imobilizada, percebo algo profundamente estranho, indefinível (compaixão, talvez), não sei, é como se essa matriosca fosse eu, ou como se eu fosse essa matriosca, talvez ainda, uma camada oca gestando outras camadas num sem fim. 

 

IX

Tem um casario antigo no centro da cidade. Sempre que passo por ele aceno para a moça na janela. Nunca a conheci pessoalmente, ela deve ter cerca de dezesseis anos. Há mais de vinte anos passo na frente dessa casa, a moça continua com dezesseis anos. As vezes ela usa um colar de pérolas. Imagino que a vida deva ser tranquila para essa amiga misteriosa, mas temo que ela se vá quando o casario for demolido pelo tempo. A imagem dessa desconhecida me persegue, é como se ela quisesse me dizer algo, mas o que? Será que apenas eu a vejo? É uma sombra serena, transparece inocência e solidão.

Deve estar cansada de bordar e tocar piano. A sombra por traz da janela tem algo a dizer, agora estou certa. O casario é antigo como nós.  

 

X

Jorge Luis Borges deu uma matriosca para a namorada bem mais nova que ele, mas,

deu-a escondido de sua mãe: para evitar ciúmes desnecessários entre as mulheres.

A jovem (“inocentemente”) esqueceu a bonequinha em cima da cômoda: incômodo!

A senhora adorou o mimo, sempre admirou o filho.

O "tempo da felicidade" é um mistério!

A felicidade é o raio de luz que atravessa a sombra viva e pensante, é o momento delicado da torção, da abertura e da exposição. Sorrio atravessado porque apenas o coração é capaz de dar sorrisos largos. Quando resta apenas o homem e sua alma, o coração sorri e todas as coisas do mundo fazem sentido.

Borges nunca conheceu a escuridão. A matriosca, misteriosamente, milagrosamente, se duplicava sempre que o escritor a desenroscava com um sorriso enviesado no rosto e outro largo no coração. Foi assim que as mulheres de Borges ficaram felizes e criaram uma irmandade capaz de construir e desconstruir labirintos. Borges nunca desvendou o segredo da boneca russa, mas, sentiu deleite naquilo que deveria aterrorizá-lo.

 

É preciso coragem para enxergar a sombra. Ela sabe, se aproxima sorrateira como um crocodilo grande. Eu não temo os animais de sangue frio, embora corra lava pelas minhas veias. Não temo o dia e nem a noite. Estou no centro do mundo, oca e maciça como a matriosca, compartilhando amor e palavras. 


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