23/02/2022

RUBÉN DARÍO E O MODERNISMO HISPANO-AMERICANO.

 

Na medida em que investigamos a obra de Rubén Darío, nos deparamos com “retratos” do poeta nicaraguense fundamentados em materiais vários. Ao status latino-americano e transatlântico do poeta se juntam variados epítetos que destacam o seu valor como intelectual: pai do Modernismo, cisne de América, príncipe das letras castelhanas. Essas imagens figuram ao lado de outras como a do poeta boêmio, acomodado político, homem de muitas pátrias e sem nenhuma. Ernesto Mejía Sánchez (apud BLANDON, 2011, p. 10) esclarece que  “hoy que tanto se sobrevalora el ‘mensaje’ de cada poeta, Darío lo mismo nos puede parecer indigenista o españolista, hispanoamericanista, o panamericanista, poeta social o poeta esteticista. Para todos hay”. Durante muito tempo a critica biográfica se empenhou em fazer um “retrato” definitivo e acabado do poeta. E, erroneamente, buscando definir Darío, não percebeu que existia na sua obra um algo a mais que não se deixava apreender, que não podia ser capturada na sua totalidade, ou seja, que resistia à representação. Como destacou Harold Bloom (1995, p. 14), “um dos sinais de originalidade que pode conquistar status canônico para uma obra literária é aquela estranheza que jamais assimilamos inteiramente, ou que se torna um fato que nos deixa cegos para as suas idiossincrasias”. Essa “estranheza canônica” descrita pelo pensador se deve ao fato de a obra sempre manter o seu “aspecto inaugural” (BLOOM, 1995, p. 13).

A obra dariana é vasta e formada por um corpus complexo e fugidio às leituras reducionistas. Dessa forma, esse artigo aborda especificidades da escrita poética do bardo nicaraguense, destacando os movimentos que levaram ao movimento modernista hispano-americano e colocaram Darío como mentor intelectual desse movimento.

Octávio Paz (1969, p. 25) destacou que os modernistas “foram exagerados, mas não redundantes”, e que o movimento “jamais foi vulgar”. Eles recorreram à liberdade rítmica da estética romântica, submetendo-a ao rigor aprendido na França. Foram períodos de muitas experimentações e inovações. As riquezas dos ritmos modernistas nunca antes haviam sido vistas na história da língua espanhola. Esse movimento preparou terreno para que a poesia pudesse adentrar o campo do verso livre. Para Paz (1969, p. 27), foi o cosmopolitismo modernista que possibilitou aos poetas hispano-americanos inserções e diálogos com outras poéticas, experiências que possibilitaram a revelação da verdadeira tradição da poesia espanhola, a versificação rítmica: “A busca de uma linguagem moderna, cosmopolita, levou os poetas hispano-americanos a redescobrir a tradição hispânica”. Variadas temáticas e sentimentos deram forma ao discurso literário e poético modernista. A nostalgia da unidade cósmica é um sentimento permanente entre poetas modernistas, bem como a fascinação perante a pluralidade de formas nas quais essa unidade cósmica se manifesta. Essa forma de ver e de sentir o mundo, chamada sinestesia, consiste numa exasperação dos nervos, que é bem mais que um distúrbio psíquico, antes, é uma experiência na qual o ser participa por inteiro.

Na obra Los hijos Del limo (1993), Octávio Paz descreve a modernidade como sendo “uma suerte de autodestrucción creadora”, devido à ruptura que faz com a crítica do passado imediato e da interrupção da continuidade. O que Paz (1993) denominou “la tradicíon de lo moderno” encerra um paradoxo, o enfraquecimento da barreira que separa o antigo e o novo, o moderno e o tradicional, fazendo desvanecer os antagonismos, operações possíveis por meio da aceleração do tempo histórico. Dessa forma, a época moderna, que teve início no século XVIII, engendra aspectos como: “diferencia, separación, heterogeneidade, pluralidad, novedad, evolución, dasarrollo, revolución, historia”, nomes que podem ser condensados em apenas um: “futuro”. Paz (1990, p. 275) destaca que, embora Marx tenha sido acusado de “ceguera estética”, ele conseguiu antever que o mundo moderno, onde a poesía é marcada pela desmesura e que compreende “una sociedad que se desarrolla excluyendo toda relación mitológica con la naturaleza, relación que se expresa mediante mitos e que supone pues en el artista una imaginación independiente de la mitología”.

A modernidade tem como ponto de partida a obra do poeta francês Charles Baudelaire, materializada no livro As flores do mal. Walter Benjamin (2000, p. 7) considerou Baudelaire um ótimo modelo para explicar a modernidade, pois o poeta “se apresentou perante o público com códigos próprios, com regras e tabus próprios”. Os personagens descritos por Baudelaire trouxeram para o primeiro plano, na escrita, a condição dos sujeitos subalternos, os moradores anônimos da cidade, pessoas em trânsito, da terceira margem. O flâneur e o boêmio são alguns exemplos desses personagens baudelaireanos, eles não são autorretratos do poeta, mas “eus” que se permitem devanear e que se entregam ao prazer do olhar. Na modernidade, as camadas sociais são a matéria bruta das representações e o poeta, herói moderno, carrega a marca de Caim:

 

A maioria dos poetas que trataram de temas realmente modernos se contentou com temas estereotipados, oficiais ― estes poetas se preocuparam com nossas vitórias e heroísmos políticos. Mas fizeram-no, também, de mau-grado, e apenas porque o governo o ordena e lhes paga. Existem temas da vida privada muito mais heroicos. O espetáculo da vida mundana e de milhares de existências desordenadas, vivendo nos submundos de uma grande cidade ― dos criminosos e das prostitutas [...] prova que apenas precisamos abrir os olhos para reconhecer o heroísmo que possuímos (BAUDELAIRE apud BENJAMIN, 2000, p. 15)

A modernidade caracteriza, ao mesmo tempo, tanto uma época, quanto a força que faz com que ela se pareça com a Antiguidade. Esse é outro aspecto apontado por Benjamin, na obra de Baudelaire, para ilustrar este tempo onde as heroínas gregas Delfina ou Hipólita são modelos e a Antiguidade romana, inspiração (BENJAMIM, 2000, p. 18). Se Banjamin aponta caracteres da modernidade a partir do francês Baudelaire, Raymond Williams destaca na obra Cultura e sociedade, de 1969, que muitos escritores ingleses também se debruçaram sobre a questão do seu tempo, entre eles, os românticos Wordsworth, que escreveu panfletos políticos, Blake, que foi processado por sedição, Coleridge, que se dedicou ao jornalismo político e à filosofia social, Shelley, que fazia manifestos públicos, Byron, que participava ativamente de comícios e morreu como voluntário em uma guerra. Williams (1969, p. 54) destaca ainda que as atividades desses poetas não tinham caráter marginal, antes estavam em conformidade com a experiência que brotava da própria poesia, pois “essas gerações de poetas viveram o momento do surgimento da democracia e da indústria que estava promovendo transformações qualitativas na sociedade” e eram sentidas como coletivas e, ao mesmo tempo, pessoais. Eles não puderam ficar indiferentes à violência, aos movimentos políticos e aos impactos da Revolução Francesa. Dessa forma

As transformações de que tomamos conhecimento pela história foram, naqueles anos, experimentados na própria carne: fome, sofrimento, conflito, desajustamento, esperança, energia, visão, dedicação. O padrão de mudança não era algo que operasse à distância, tal como somos inclinados a estudá-la hoje; era, antes, o cadinho em que se fundia a experiência geral. É possível extrair um comentário político dos escritos desses poetas, mas isso não tem particular importância, [importa] acompanhar dos diferentes graus de ardor revolucionário que manifestaram [fruto do envolvimento desses poetas na tragédia de sua época] (WILLIAMS, 1969, p. 54).

Benjamin e Williams denunciaram em suas análises, a partir da obra de poetas emblemáticos, a sujeição da arte às leis do mercado, que se concretizaria no decorrer da modernidade e da vinculação entre aspectos da escrita e da política. Ora, percebemos que Baudelaire já imprime na sua obra caracteres que denunciam o universo dos colonizados. Ele descreve esse mundo dividido, e sua obra acabou se tornando uma base importante para o que depois seria reconhecido como o movimento Simbolista europeu e movimento Modernista Latino-americano.

Segundo Octavio Paz (1990), a modernidade se apropriou do saber, desde muito cantado pelos poetas ― o amor, a religião e a poesia ―, e os recodificou segundo seus interesses, especialmente por meio por meio do “imperialismo de lo particular” (PAZ, 1990, p. 135).

Baudelaire conspirou com a própria língua. Sua escrita foi um ato de violência. Ele introduziu a figura do conspirador na cena moderna como um herói trágico grego, retirou do poeta lírico a auréola[1]. Baudelaire registrou “a metafísica do provocador” e exclamou: “basta de tragédia” (BENJAMIN, 2000, p. 30).

Se a modernidade se apresentou como produtora de verdades, amparada pelo conhecimento científico, a Europa foi o lugar onde esse conhecimento e essas verdades foram legitimados. Escrita e política estão imbricadas, assim como Europa e América Latina, colonizador e colonizado. Algumas vezes, os latino-americanos são considerados aprendizes, segundo Bolívar, eles são “uma emanação da Europa”, pois, para se comunicarem, apenas possuem a sua disposição poucas línguas: as dos colonizadores:

 

Nós, os latino-americanos, apegamo-nos ao idioma dos colonizadores: São as línguas francas, capazes de ir além das fronteiras que nem as línguas aborígenes, nem as créoules conseguem atravessar. [...] De que outro modo posso [discutir com esses colonizadores] senão em uma de suas línguas, que é também nossa língua, e com tantos de seus instrumentos conceituais, que já são também nossos instrumentos conceituais? (RETAMAR, 1998, p. 16)

          Rubén Darío, em 1888, designou como “modernismo” as manifestações literárias que estavam surgindo na América hispânica. O vocábulo nomeou o primeiro movimento de língua espanhola nascido na América. O termo escolhido tem como referência o contexto de modernidade a que aspiravam os escritores hispano-americanos. Roberto Fernández Retamar (1989, p. 121) localizou “o mais importante período da literatura latino-americana” entre os anos de 1880 e 1920, a chamada “etapa magna”, a “idade de ouro”, a “modernidade ou universalidade”. O modernismo hispano-americano foi fundamental para a formação de uma lavra de escritores espanhóis como Antônio Machado, Ramón Del Valle-Inclán, Juan Ramón Jiménez, e ofereceu à literatura mundial “o primeiro grupo de escritores representativos” da América-Latina, entre eles Rúben Darío, José Henrique Rodó, Horácio Quiroga.

Rubén Darío é um caso patente de conspiração linguística, e sua poesia demonstra valores e ideias capazes de revelar o ideário do homem hispano-americano, como veremos mais à frente em poemas como “Caupolicán”, no qual o índio Toqui tem a sua coragem destacada. 

Rememoramos aqui a educação baseada na ideologia religiosa que Darío recebeu na infância, o fato de o poeta ter sido adotado e criado por parentes afeitos à leitura, e ligados ao militarismo, bem como a influência que recebeu do professor intelectual liberal Dr. Jose Leonard, que foi demitido por apregoar a liberdade de pensamento. Essas experiências produziram em Darío uma profunda transformação ideológica e espiritual: “¡pobre maestro Leonard! Incapaz de daño, alma de perla, corazón de excepción, flor humana” (BERNHEM, 1997, p. 17). O núcleo familiar e o entorno social, intelectual e político da cidade de León da época foram elementos que influíram de forma decisiva na construção da identidade de Darío, que abraçou a ideologia liberal:

... Yo contemplo

Que hoy es¡ nada más! tu templo

Un gran taller de indulgencias.

Y en un arrebato de entusiásmo grita:

¡Abajo la beatitud!

¡Abajo la aristocracia!

¡Abajo la teocracia!

Por toda parte resuena

De dulce cadencia llena

La voz de la democracia.

(DARÍO apud BERHEIM, 1997, p. 19).

            Vale ainda recordar que, ainda adolescente, Darío escreveu versos exaltados sobre o Governo. O poeta conquistou o espaço que ocupou, visto que a única educação formal que recebeu foi durante a infância e a adolescência, a sua formação secundária ficou incompleta e, depois disso, todo o seu percurso de aquisição do conhecimento foi adquirido informalmente, como autodidata. Foi por meio da educação que o poeta pôde, como jovem pobre, ocupar um lugar social. Os versos foram o seu passaporte. De acordo com Bernheim (1997, p. 58), Darío foi um dos primeiros intelectuais do continente que, além de proclamar que o índio é “fuente de originalidad e autenticidad”, aceitou todos os prejuízos possíveis na sua época ao assumir-se como “mestizo”.

As inquietações do poeta, especialmente, na juventude, encontram inspiração em Victor Hugo, de quem assimilou ideias e sentimentos de ordem social. O liberalismo de Rubén Darío levou-o a militar em prol da união Centroamericana e contra “soldados brutales e sanguinarios conculcadores de derechos ciudadanos, atropelladores de honras cívicas y forajidos legales de todo linaje” (ARELLANO; MEDINA, 2010, p. 8). Julio Valle Castillo é um crítico nicaraguense que defende um avivado interesse de Darío para com a política.

Darío escreveu sobre o jornal da União Centroamerica, do qual foi diretor. Observemos o fragmento de um artigo:

Venimos a ser trabajadores por el bien de la pátria, venimos de buena fe a poner nuestras ideas al servicio de la gran causa nuestra, de la unidad de la América Central. […] Seremos los que dirán al pueblo la palabra del entusiasmo. […] Al sentir que estamos bajo un viento de liberdad, nos vemos fortalecidos para nuestro trabajo por la patria. […] Pensadores: que en vez de las sombrías nubes que ha amontonado el separatismo, vuelem vuestras ideas vencedoras a los altos ideales, como águilas bajo relámpagos. ¡A la obra! (SEQUEIRA, 1964, p. 182).

A crítica demorou cerca de sessenta anos para se dar conta desse viés progressista da vida de Darío, abafado pela imagem do gênio inspirado, boêmio e alcoólico, resultante do processo de mitificação pelo qual ele passou.

            Observamos que Rubén Darío, ao lançar Azul..., em 1888, já criticava a moral da burguesia e explicitava as angústias modernas. De acordo com Jrad (2005), a literatura começou, a partir do modernismo, a se autorizar de modo alternativo e privilegiado a falar sobre política. José Enrique Rodó, escritor Uruguaio, escreveu a célebre frase em relação aos Estados Unidos: “Eu os admiro, mas não os amo”. A falta de afeição por parte desse crítico que fez com que na obra Ariel os ianques se tornassem Caliban, enquanto identifica a “nossa civilização”, a América Latina, com o espírito de Ariel. Obviamente, esse novo Caliban oferecia maior perigo (1998, p. 24). Em Azul..., Darío expressa por meio da sua poesia uma profunda reavaliação do papel do artista e da arte na sociedade.

            Prosas profanas y otros poemas, publicado em 1896, recuperou o conceito de poesia como busca da beleza, dedicando especial atenção para a questão da forma, características para as quais já haviam atentado os parnasianos e os simbolistas, cuja poesia era refinada e artificiosa e oferecia uma visão panteísta do mundo. Exemplifica essa postura estética o poema de abertura da obra, intitulado “Era un aire suave...”, que diz: “Era un aire suave, de pausados giros;/ El hada Harmonía ritmaba sus vuelos;/ e iban frases vagas y tenues suspiros/ entre los sollozos de los violoncelos” (DARÍO, 2011, p. 292). Assim como os mestres franceses admirados por Darío, ele juntava à poesia o hábito boêmio do álcool. A técnica encontra-se valorizada e é representativa da época, na qual emerge o novo século com suas máquinas maravilhosas. O esteticismo acrático era uma forma de afirmar o caráter da arte na poesia, e como definiu Darío no prólogo da obra em questão: “¿Y la cuestión métrica? ¿Y el ritmo? Como cada palabra tiene una alma, hay en cada verso, además de la armonía verbal, una melodía ideal. La música es sólo de la idea, muchas veces” (DARÍO, 2008b, p. 29). Essas declarações de Darío explicitam a evocação de uma liberdade radical para o fazer poético, rechaçando a rigidez das escolas literárias.

O tempo de experimentação inaugurado em Azul... é afirmado em Prosas profanas y otros poemas, onde Darío busca a musicalidade do poema, emprega variadas formas métricas, também altera as normas tradicionais do uso corrente da adjetivação, os efeitos cromáticos e a técnica do contraste, como numa pintura de Watteau com cisnes interrogativos deslizando sobre os lagos, ilustrando cenários onde são exaltados o amor e o erotismo. Na busca por desbravar o “Reino interior”, como descreve no poema “Uma selva suntuosa”, o eu lírico se pergunta: “― ¡Oh! Qué hay en ti, alma mía?”. Em Prosas profanas, o poeta afirma o seu status, “Hombre soy” (DARÍO, 2011, p. 290), humanidade que se explicita na raiz de seu lirismo, onde se alternam antagonismos: “rie, rie, rie, la divina Eulália” (2011, p. 293) e “La princesa esta triste” (2011, p. 300).

Consideramos a evasão nos tempos remotos, no Oriente misterioso, um rechaço à sociedade burguesa, forma de resistência que, aliada à busca pela originalidade, “mi literatura es mía en mí” (DARÍO, 2011, p. 289), torna a poesia rubeniana singular. A busca por autonomia poética foi reconhecida pelo crítico Juan Valera em Azul..., quando destacou que Darío não imitava a ninguém. Corrobora esta tese Arturo Massaro (1954, p. 3):

 

Si hubiese imitado y seguido dócilmente a algún escritor francés, no hubiera llegado a ser innovador. […] Es necesario ver que ha tomado Darío, de Gautier,  de los Goncourt, de Ovidio, y como la ha tomado; ver cuáles son los elementos que prefirió y como hizo su obra (MASSARO, 1954, p. 5).

 

Em Prosas profanas y outros poemas, Darío proclamou que os poetas americanos, de idioma castelhano, conquistaram sua independência mental da Espanha, a corrente modernista unia destacados grupos que cultuavam a arte cosmopolita e universal. Para Darío “cosmopolita” e “universal” eram termos sinônimos e a nova arte era universal porque era cosmopolita. Paz (1969, p. 24) destacou que os movimentos literários do século XX confirmaram a ideia de Darío sobre o caráter cosmopolita da arte moderna. O poeta se opôs ao nacionalismo que na época se chamava casticismo. O termo castizo origina-se na palavra casta, que significa casto, puro, sem mistura com elementos estranhos, e o discurso imbuído desta ideologia, ou seja, castizo, era a base da hispanidade, tanto que Miguel de Unamuno, quando criticou o casticismo ao afirmar: “Elévanse a diário em España amargas quejas porque la cultura extraña nos invade y arrasta o ahoga lo castizo, y va zapando poco a poco, según dicen los quejosos, nuestra personalidad nacional” (FIORUSSI, 2010, p. 40). O casticismo propunha substituir o purismo na tarefa de manter hábitos gramaticais e vocabulares castelhanos. Nesse sentido, a renovação tanto da métrica, quanto da racionalidade, proposta pela poética dariana, podem ser observadas no fragmento do poema “Salutacíon del optimista”: “Un continente y otro renovando las viejas prosapias, / En espíritu unidus, em espirito y ansias y lengua, / Va llegar el momento en que habrán de cantar nuevos himnos” (DARÍO, 2011, p. 383) e constituem um ato de resistência à ordem estabelecida.

            O amor de Darío pela modernidade acabou tornando a crítica que fez da tradição numa crítica à Espanha. Essa atitude “antiespanhola”, para Paz (1969, p. 24), expressa tanto uma vontade de separação da antiga metrópole, quanto de identificar o “espanholismo” com o “tradicionalismo”. Foi por meio do modernismo que os poetas hispano-americanos promoveram uma reforma verbal no castelhano, enriqueceram-no com termos transportados do inglês e do francês, abusaram de arcaísmos e neologismos, bem como foram os primeiros a utilizar a linguagem coloquial. Um grande número de indigenismos e americanismos foram utilizados na poesia modernista. Assim como os móveis do art nouveau se tornaram velhos, alguns termos do léxico modernista caíram em desuso, porém, um bom número deles adentrou na corrente da fala. O castelhano recuperou, por meio dos modernistas, a espontaneidade. 

Consumado o triunfo da nova estética, a América é a pátria do Modernismo. Darío passa a se identificar como um poeta hispano-americano, espanhol da América, americano de Espanha, ethos poético e político que alcançará seu ápice em Cantos de vida y esperanza, cujo poema de abertura diz: “Yo soy aquel que ayer no más decía / el verso azul y la canción profana, / en cuya noche un roiseñor había/ que era alondra de luz por la mañana” (DARÍO, 2011, p. 379).

Vale destacar que o poeta professou, além da nova estética, a sua posição frente aos movimentos políticos, como destacou Blandón Guevara:

Rubén Darío fue um promotor Del liberalismo em Centro-América. Primero se enrolo em la fracasada Unión Centro-Americana, más tarde, ejerciendo el periodismo em distintos países del istmo, defendió las causas liberales contra la resistencia de las fuerzas conservadoras que se oponían a la modernización de esas sociedades. […] En 1898 apostó por las fuerzas del progreso (BLANDÓN GUEVARA, 2010, p. 105).

Sintonizado com os movimentos de sua época, o eu poético dariano experiencia a sonoridade, o movimento, após ter vibrado com os rumores da virada do novo século com Verlaine e Wagner. Emerge o poeta cósmico de “Nocturno”, inspirado por Samain: “Quero expressar mi angustia em versos que abolida / dirán mi juventud de rosas y ensuños, / y la defloração amarga de mi vida por un vasto dolor y cuidados pequeños” (DARÍO, 2011, p. 406). Segundo Massaro (1954, p. 24), ao contrário de Samain, que vê apenas Paris, “Darío ve la humanidad entera. […] Descubre lo autor francés el valor de ciertas sensaciones casi imperceptibles, Rubén las passa a sus versos y amplia la extensión de sus imagines”.

Em Cantos de vida y esperanza o poeta registra que a obra se tornaria bandeira de resistência e afirmação da América hispânica, a partir do resgate histórico e literário da América pré-colombiana. Observemos o prólogo no qual Darío diz:

 

Si en estos cantos hay política, es porque aparece universal. Y si encontráis versos a un presidente, es porque son un clamor continental. Mañana podremos ser yanquis (y es lo más probable); de todas maneras mi protesta queda escrita sobre las alas de los inmaculados cisnes, tan ilustres como Júpiter (DARÍO, 2001g, p. 378).

 

José Henrique Rodó havia dito que Darío não era o poeta da América, e o poeta, de forma responsiva, atualiza a sua poesia ressignificando elementos de obras anteriores, por exemplo, o Cisne que aparece em Prosas profanas y otros poemas. Em “Blasón” (DARÍO, 2011, p. 302), “el olímpico cisne de nieve / com el ágata rosa del pico”, animal de “estirpe sagrada”, surge como elemento artístico, vinculado às pinturas de Leonardo da Vinci. Logo a seguir, o poema “El Cisne” (2011, p. 339) mostra que “el Cisne que antes cantaba solo para morir”, agora abriga sob as suas brancas asas “la nueva poesia”, e no poema que encerra o livro, intitulado “Yo persigo uma forma” (2011, p. 374), “EL CUELLO DEL GRAN CISNE BLANCO QUE ME INTERROGA”.

O cisne de Cantos de vida y esperanza atende responsivamente a essa interrogação, emergindo transformado, como esclarece o próprio poeta: “Por el símbolo císnico, torno a ver lucir la esperanza, para la raza solar nuestra: elogio al pensador augurando el triunfo de la cruz; me estremezco ante el eterno amor” (DARÍO, 2008b, p. 28).

O poema “A Roosevelt”, como destacou Rubén Darío, preconiza a “solidaridad del alma Hispano-americana ante las posibles tentativas imperialistas de los hombres del norte” (DARÍO, 2008b, p. 26). Esse poema proclama a identidade espanhola desde a sua origem, a América “nuestra”, “católica” e “española”:

ES CON VOZ de la Biblia, o verso de Walt Whitman,

que habría de llegar hasta ti, Cazador,

primitivo y moderno, sencillo y complicado

con un algo de Wáshington y cuatro de Nemrod.

 

         Eres los Estados Unidos,

eres el futuro invasor

de la América ingenua que tiene sangre indígena,

que aún reza a Jesucristo y aún habla en español.


Eres soberbio y fuerte ejemplar de tu raza;

eres culto, eres hábil; te opones a Tolstoy.

Y domando caballos, o asesinados tigres,

eres un Alejandro-Nabucodonosor.

(Eres un profesor de Energía

como dicen los locos de hoy.)

 

Crees que la vida es incendio,

que el progreso es erupción,

que en donde pones la bala

el porvenir pones.

                     No.

 

Los Estados Unidos son potentes y grandes.

Cuando ellos se estremecen hay un hondo temblor

que pasa por las vértebras enormes de los Andes.

Si clamáis, se oye como el rugir del león.

(DARÍO, 2011, p. 390, grifo nosso).

 

 

No poema “Salutación del optimista”, observamos a autoridade religiosa com que o eu poético se enuncia: “Es con voz de la Biblia, o verso de Walt Whitman, / que habría de llegar hasta ti, Cazador”. Nesse poema Darío fala como poeta da América, um neto da Espanha, e adverte: “Tened cuidado. ¡Vive la América español! / Hay mil cachorros sueltos del León Español”. E se as forças terrenas não forem suficientes para barrar o invasor, a América hispânica conta com a proteção divina: “¡Dios!”. A autoridade do poema é corroborada, como propôs Cristóvão Tezza (2012), a partir do pressuposto bakhtiniano de dialogia, pois, mesmo se apropriando de um discurso autoritário como o religioso, o poeta se vale das múltiplas vozes (polifonia) para que seu canto seja alteritário.

O poema “Caupolicán[2]”, soneto que integra a obra Azul..., foi publicado no jornal La época, em Santiago do Chile, em 1888, com o título “El toqui”, que em araucano significa “El chefe” (EZQUERRA, 2008, p. 253). Nesse soneto Darío dialoga com a obra La Araucana, poema épico escrito por Alonso de Ercilla (1533-1594), que foi testemunha do conflito entre espanhóis e índios da região do Chile. O soneto conta a história de Caupolicán, índio guerreiro que matou o conquistador Pedro de Valvídia e lutou bravamente contra os colonizadores. Caupolicán foi morto em 1558. O poema, dedicado a Henrique Hernández Miyares, poeta cubano, diretor da revista La Habana Elegante, diz:

Es algo formidable que vio la vieja raza:

robusto tronco de árbol al hombro de un campeón

salvaje y aguerrido, cuya fornida maza

blandiera el brazo de Hércules, o el brazo de Sansón.

 

     Por casco sus cabellos, su pecho por coraza,

pudiera tal guerrero, de Arauco en la región,

lancero de los bosques, Nemrod que todo caza,

desjarretar un toro, o estrangular un león.

 

      Anduvo, anduvo, anduvo. Le vio la luz del día,

le vio la tarde pálida, le vio la noche fría,

y siempre el tronco de árbol a cuestas del titán.

 

“¡El Toqui, el Toqui!” clama la conmovida casta.

Anduvo, anduvo, anduvo. La Aurora dijo: “Basta”,

E irguióse la alta frente del gran Caupolicán

(DARÍO, 2011, p. 278, grifo nosso).

Este soneto dariano corrobora a vertente americanista que emerge em Azul... e alcança uma expressão significativa em Cantos de vida y esperanza. O poema revela, ainda, a preocupação de Darío com o tema, ainda no início do Modernismo. Vale destacar que o Chile foi assim nomeado pelo colonizador espanhol; antes, era uma grande província por causa de um grande vale que tinha esse nome. Já o Estado de Arauco era uma pequena província povoada por índios muito ferozes, indomáveis, e por isso essa região habitada pelos índios Araucanos era considerada “indômita”.

Ao escrever poeticamente a história de coragem e força do índio Caupolicán, Darío realiza uma reescritura descolonizadora e traz à reflexão acontecimentos cujo fio encontra a sua ponta nos primórdios da instauração do sistema colonial no Novo Mundo. Darío escreve a história de resistência do povo mapuche, revelando, como pressupõe a teoria pós-colonial, que todo ato perpetrado pelo colonizador suscitou uma resposta do colonizado, porém essa resposta muitas vezes foi encoberta. A voz do colonizado não reverberava, tornava-se silêncio.

Os registros acerca da colonização, assim como outros comuns aos livros de história ocultam a história da resistência do índio. O crítico literário peruano Antônio Cornejo Polar (2000, p. 78) destacou que a literatura hispano-americana nasceu de textos escritos pelo colonizador: crônicas, romances da conquista. Polar ressalta que é importante atentarmos para o fato de o campo ibérico também ter feito parte desse processo por meio do petrarquismo indiano, o latinismo, que filia a ocidentalidade no germe dessa literatura, excluindo o arcabouço pré-colombiano.

O Caupolicán dariano é forte, corajoso e vencedor. O poema põe em cena um ritual indígena que indicava quem seria o próximo líder. A primeira parte do soneto apresenta o personagem com adjetivos como “campeón salvaje y aguerrido”, o que o situa fora da civilização europeia, cujas estratégias de luta nem sempre eram honradas. Caupolicán não precisa de armamentos para ser forte, pois ele tem “por casco sus cabellos, su pecho por coraza”. Darío compara a sua força à de legendários heróis, como o grego Hércules, o bíblico Sansão e Nemrod, o rei babilônico afeito à caça e com habilidades para manusear a lança. Os tercetos do soneto contam a façanha do herói e mostram a natureza do ritual, que consistia em caminhar carregando um pesado tronco de árvore sobre os ombros por muitos dias: “Anduvo, anduvo, anduvo. Le vio la luz del día, / le vio la tarde pálida, le vio la noche fría, / y siempre el tronco de árbol á cuestas del titán” (DARÍO, 2011, p. 278). Ao final do poema, o índio Toqui é aclamado: “¡El Toqui, el Toqui!” clama la conmovida casta, e o seu sofrimento chega ao fim: “La Aurora dijo: “Basta” / E irguióse la alta frente del gran Caupolicán” (2011, p. 278). O poeta utiliza a repetição “anduvo, anduvo, anduvo” para acentuar a temporalidade da ação e a persistência do personagem, assim como a sequência “Le vio la luz del día, / le vio la tarde pálida, le vio la noche fria”; esse recurso anafórico confere musicalidade e ritmo ao poema.

Essa valorização do índio americano, como já observamos, será amplamente trabalhada em Cantos de vida y esperanza, onde “el Cisne que antes cantaba solo para morir”, cantará “la nueva poesia”, como observamos em “Salutación del optimista”:

se anuncia un reino nuevo, feliz sibila sueña

y en la caja pandórica de que tantas desgracias surgieron

encontramos de súbito, talismática, pura, riente,

cual pudiera decirla en su verso Virgilio divino,

la divina reina de luz, ¡la celeste Esperanza!

(DARÍO, 2011, p. 382, grifo nosso).

A poesia de Rubén Darío traz à luz a memória histórica do povo americano e, dessa forma, participa do processo de descolonização. No ensaio intitulado “A construção de uma literatura”, publicado em 1960, Rama corrobora essa ideia, salientando que “o espírito sopra onde quer, e quando o faz na Nicarágua, desponta um Rubén Darío. Esse é o milagre da alta criação artística” (RAMA, 2008, p. 49). Para esse pensador, o desafio e a premência de se “construir uma grande tradição” a partir de nós mesmos, latino-americanos, é uma tarefa que será possível apenas, a partir da reordenação do passado (RAMA, 2008, p. 35).

Ainda em Cantos de vida y esperanza, nos deparamos com o poema “Los cisnes”, no qual o eu poético reafirma a sua identidade: “Soy un hijo de América, soy un nieto de España...”.  O poeta recorre ao enigmático cisne e pergunta:¿qué haremos los poetas sino buscar tus lagos? // La América española como la España entera / fija está en el Oriente de su fatal destino; / yo interrogo a la Esfinge que el porvenir espera / con la interrogación de tu cuello divino”; o eu poético, então, lança o seu grito:

 

¿Seremos entregados a los bárbaros fieros?

¿Tantos millones de hombres hablaremos inglés?

¿Ya no hay nobles hidalgos ni bravos caballeros?

¿Callaremos ahora para llorar después?

(DARÍO, 2011, p. 398).

O cisne dariano questiona desde a forma de seu pescoço, que lembra o sinal de interrogação, sobre o futuro. Ele marca, em Cantos de vida y esperanza, a resistência à colonização material e intelectual representadas pelos Estados Unidos. Na história da América Latina, é possível observar que, desde a Doutrina Munro, documento construído e instituído pelos Estados Unidos em 1823, consideravam-se as repúblicas hispânicas recém-libertas do jugo colonial imaturas para se autogovernarem e, portanto, dependentes da sua intervenção e proteção. A América Hispânica foi enredada em uma nova forma de colonização, o neocolonialismo norte-americano. A luta revolucionária pela libertação dos países da América Hispânica do domínio da metrópole espanhola foi alimentada pela desigualdade social, exploração econômica e opressão política, como nos faz saber Mirza L. González (1994, p. 17). Desde os tempos da colonização, a sociedade se dividiu em classes muito desiguais: “peninsulares, criolos, índios, mestiços e negros”. A crítica pós-colonial auxilia o leitor na compreensão desses processos em função dos questionamentos que tece à lógica eurocêntrica. Rama (2008, p. 78) salientou que, a partir da obra Prosas profanasy otros poemas, Rubén Darío afirmou “não haver poesia na América, a não ser no índio, e que a sua estética se afastava, propositalmente, de sua própria terra”. Mas Rama defende que esse afastamento de Darío foi necessário, pois:

Hoje reconhecemos que [Rubén Darío] foi a maior encarnação poética do espírito lírico americano, que suas Prosas profanas renovaram a tradicional vocação estética das letras do continente, que com seus imaginários cenários próprios do século XVIII ― marquesas, clérigos da corte e viscondes ―, expressou de forma maior e melhor a identidade dos homens da América do que ele suspeitara: esse arabesco de sensual paixão da beleza traçado por sua obra leva incrustado o perfil do homem de terra firme (RAMA, 2008, p. 78, grifo nosso).

Rubén Darío deixou para o mundo da literatura um legado poético construído com mestria e amor. Ele dedicou a vida às letras em um mundo onde cada vez mais elas viravam mercadoria, persistindo, contudo, com a poesia, afinal, como afirmou Del Valle (2002), apenas na poesia o literário alcança plenitude. Darío tinha consciência da primazia de seus status de poetas sobre outras identidades possíveis. Entretanto, foi considerado pela crítica, durante muito tempo, um escritor apolítico. Esse fato, como observamos, se deve à celebração do exercício da perfeição formal dos parnasianos e à musicalidade e imagens sugestivas do Simbolismo. A “arte pela arte” foi uma postura social, ou antissocial, que custou aos modernistas hispano-americanos a acusação de estarem alienados da realidade latino-americana.  Defendemos que essa ideia não se sustenta, e que Darío abriu variados campos de discursividade com a sua poesia, abarcando vozes audíveis e inaudíveis, sendo um poeta decisivo para o modernismo hispano-americano e colaborando para com o processo de descolonização da linguagem. Todo poeta, como defendeu Bakhin, é uma voz, entre outras vozes, no auditório polifônico da alteridade.

(Profa. Dra. Renata Bomfim)

       


[1] Benjamim chama de “aura” as imagens que, sediadas na memória involuntária, tendem a se agrupar em torno de um objeto de percepção; essa “aura” que envolve o objeto corresponderia, então, à própria experiência que se cristaliza em um objeto correspondente à própria experiência, que se cristaliza em um objeto de uso, sob a forma de exercício (BENJAMIN, 2000, p. 137).

[2] Segundo Ezquerra (2009, p. 253), o soneto Caupolicán foi o primeiro soneto alexandrino escrito em língua castelhana.

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