Seja bem-vindo(a). Este é um espaço pessoal onde, desde 2007, reúno poemas, ensaios e artigos de minha autoria, compartilhando também um pouco da minha trajetória como terapeuta junguiana e ativista ambiental. É um espaço aberto, para escritores(as) de várias partes do mundo.

17/02/2022

O espólio de Túlio Espanca: Cartas para Battelli (4)

 

Túlio Espanca 

Túlio Alberto da Rocha Espanca era primo e afilhado de Florbela Espanca. Túlio Espanca nasceu em Vila Viçosa, em 1913, e faleceu em 1993 na cidade de Évora. Seguindo a tradição dos Espanca, Túlio mostrava gosto pelo mundo da arte, tanto que ao quatorze anos produzia sozinho vários números da revista ilustrada Zé pipocas, também idealizada por ele. Túlio Espanca nasceu na mesma casa que a poeta Florbela Espanca, em Vila Viçosa, e se mudou com a família para Évora aos sete anos. A profissão de barbeiro, na qual trabalhou entre os anos de 1934 e 1940, ele aprendeu com seu pai, José de Jesus da Rocha Espanca, irmão de José Maria Espanca, pai de Florbela. Túlio[1] alcançou o reconhecimento público como trabalhador da cultura portugusa e dedicou a vida à pesquisa e à produção no campo das artes e da história, deixando uma vasta obra. Ele atuou como crítico de arte, historiador, ministrava conferências e, entre os seus muitos trabalhos, destacam-se os volumes do Inventário Artístico de Portugal, dedicados aos distritos de Évora e Beja, editados pela Academia Nacional de Belas Letras. Atuou ainda na realização do Boletim “A cidade de Évora”, do qual foi fundador e colaborador, e do “Caderno de História e Arte Eborense”, que teve 36 números. 

Dentre os títulos que recebeu, destacam-se o de Professor Honóris Causa na Universidade de Évora, o de membro efetivo da Academia Nacional de Belas-Artes portuguesa e da Academia Portuguesa de História, além do Prêmio Europeu da Conservação dos Monumentos Históricos, pela Fundação F.V.S. de Hamburgo; ele recebeu da presidência da República Portuguesa a condecoração de Oficial da Ordem de Sant’Iago de Espanha. Túlio Espanca e Guido Battelli se aproximaram tanto em função do interesse por Florbela Espanca, quanto pela rica troca de informações entre ambos nos campos da história e da arte. 

A correspondência em questão dá a entender que se tornaram amigos no decorrer de quatro anos em que trocaram ideias, planejaram publicações, inclusive quando Túlio Espanca esteve em Florença, na Itália, foi visitar Guido Battelli, mas este estava fora da cidade. Para dar um melhor entendimento do material pesquisado fizemos uma tabela que mostra como estão divididas as pastas de documentos do espólio de Túlio Espanca com as correspondências de Guido Battelli:

Nº doc

Data

Nº doc

Data

FTE[2] 064.1

Carta de 5-4- 1951

FTE 064.21

Postal 27-03-1953

FTE 064.2

Cópia da carta da pasta FTE 064.1 datilografada

FTE 064.22

Postal 11-9-1953

FTE 064.3

Tradução do poema de Florbela “Soavitá”

FTE 064.23

Carta 29-9-1953

FTE 064.4

Carta com análise de poesia de Florbela Espanca realizada por Guido Battelli.

FTE 064.24

Carta 13-11-1953

FTE 064.5

Foto de Guido Battelli

e cartão

FTE 064.25

Carta de 8-12-1953

FTE 064.6

Carta de 25- 4- 1951

FTE 064.26

Postal 3-1-1954

FTE 064.7

Postal de 25- 5- 1951

FTE 064.27

Postal 9-4-1954

FTE 064.8

Carta de 1-6-1951

FTE 064.28

Postal 25-4-1954

FTE 064.9

Carta de 9-6-1951

FTE 064.29

Carta 8-6-1954 3 três documentos

FTE 064.10

Postal de 10-7- 1951

FTE 064.30

Postal 27-7- de julho de 1954

FTE 064.11

Carta de 7-8-1951

FTE 064.31

Postal

FTE 064.12

Carta de 18-8-1951 e postal

FTE 064.32

Postal

FTE 064.13

Postal de 12-9-1951

FTE 064.33

Carta

FTE 064.14

Carta de 21-11-1951 e duas fotos do Alentejo

FTE 064.34

Cartas (oito documentos)

FTE 064.15

Postal de 19-03-1952

FTE 064.35

Folheto falando da palestra sobre Florbela em Florença

FTE 064.16

Postal 20-5-1952

FTE 064.36

Carta de Álvaro Pires, de Évora

FTE 064.17

Postal 6-10-1952

FTE 064.37

Postal

FTE 064.18

Postal de 20- 10-1952

FTE 064.38

Cartão enviado pela filha de Guido avisando sobre o seu falecimento

FTE 064.19

Carta de Natal 1952

FTE 064.39

Foto do rosto de Michelangelo

FTE 064.20

Carta 26-01-1953

mais recorte de jornal

FTE 064.40

Foto da cidade de Florença

Algumas dessas correspondências dizem respeito a artigos de Battelli que Túlio Espanca publicou e tratam de informações sobre monumentos históricos, como, por exemplo, o documento FTE 0064.12, carta na qual Guido fala sobre o Museu de Belém, em Portugal, que possui esculturas romanas “lindíssimas”, uma representando “Apolo” e outra, “Baco infanti”, ou seja, Baco ainda menino. Concentrei a atenção nas passagens nas quais Guido se referia a Florbela e à sua obra, como, por exemplo, a carta 1 do arquivo histórico, FTE 064.1, enviada de Florença, Itália, para Túlio Espanca, no dia 5-4-1951. Essa carta de quatro páginas manuscritas em francês  mostra o interesse do professor italiano pelo Alentejo e como manteve o interesse na divulgação da obra de Florbela:

 Não me proponho a escrever um estudo sobre o Alentejo, para tal fazer, seria necessário, antes de tudo, conhecer esta região de Portugal, e depois ser mestre na língua portuguesa. Infelizmente faltam-me estes dois conhecimentos. O meu desígnio é bem mais modesto. Proponho recolher num pequeno livrinho os sonetos de Bela, que tem relação com o Alentejo, imprimindo lado a lado no original as minhas traduções italianas em verso e ilustrando tudo isso com originais feitos por um pintor de Coimbra, meu amigo, José Contente, que tem passado vários meses no Alentejo, desenhando e pintando os lugares mais característicos dessa província. Estes desenhos poderiam servir de ilustração aos sonetos de Bela e revelar a paisagem característica do Alentejo aquele que não a conhece. Tudo isso entra, como se vê, no programa da vossa associação de turismo. Naturalmente poderia escrever algumas linhas de prefácio para explicar a razão desta publicação e pôr em evidência o amor que Bela sempre consagrou a sua terra natal. Este livrinho seria, pois, um testemunho de gratidão pelo qual todos os alentejanos Lhe deviam estar bastante reconhecidos (FTE 064.1).

 Gabriel Rui Silva (2014) destacou que Battelli é um dos autores italianos que mais batalhou pela divulgação da cultura portuguesa no seu país de origem. Ele figurou como um embaixador da cultura portuguesa em Itália e da italiana em Portugal. Observamos que Battelli estava convicto de que existia uma genuína proximidade entre a Itália e Portugal, laços que se mostram fortes desde D. Dinis, o rei poeta, que colocou a serviço do reino dos navegadores genoveses, cujo espírito franciscano o levou a pretender ser enterrado com o hábito da Ordem nascida na Úmbria. Essa ordem encontrou cedo em Portugal um acolhimento particular, por meio do mais popular dos seus santos tornado português, Santo António de Lisboa, reivindicado por Itália. Na carta que citamos, Guido diz a Túlio Espanca que o Sr. Prof. Joaquim Carvalho lhe comunicou acerca da deliberação da Comissão de Turismo de Évora acolher para publicação o seu artigo “O Alentejo na poesia de Florbela Espanca[3]”. Battelli esclareceu que o “livrinho” que pretende escrever sobre Florbela conterá dez sonetos:

1-      Évora

2-      A janela de Garcia Resende

3-      Charneca em flor

4-      Passeio no campo

5-      Alentejo (de Sóror Saudade)

6-      Árvores do Alentejo

7-      (?[4]) (Tarde no Alentejo, do Livro de Mágoas)

8-      Alma perdida

9-      Primavera (de Reliquiae)

10-  Silêncio.

(FTE 064.1/)

 No documento FTE 064.9, Guido teceu considerações sobre o soneto “Alvorecer”, de Florbela que, segundo ele, era “tipicamente Alentejano”, mostrando “a cidade ainda envolvida na sombra da noite, [quando] o horizonte vai empalidecendo”. O professor italiano disse a Túlio que tinha se empenhado em traduzir outros poemas de Florbela, que poderiam ser juntados aos treze poemas já enviados, ou publicados antes nas Notícias de Évora. Noutra carta desse documento Guido disse a Túlio que, se “não houver outros sonetos de assunto alentejano para serem traduzidos, vamos passar a publicação”. Guido já havia traduzido os sonetos “Suavidade”, “Gosto de ti”, “Dize-me amor como te sou querida” e “A minha culpa”. Battelli afirmou: que “tem pressa em publicar”, pois, afirmou, todos os dias se deitava sem a esperança de despertar. Túlio atendeu aos apelos de Guido e acolheu seus textos.

 Guido pretendia escrever um artigo intitulado “A verdadeira grandeza de Bela”, que poderia ir a lume quando fosse comemorado o segundo aniversário da instauração do busto da poeta que fica no Jardim Público de Évora. Para o professor, essa seria uma homenagem merecida a Florbela. No documento FTE 0064.7, observamos o interesse de Battelli em estudar a poesia de Florbela e o professor comunica a Túlio que os poemas de Florbela foram publicados na coleção “Il Mélagrano”. Observamos os esforços de Battelli para publicar e divulgar os textos florbelianos. Foi pensando nesse empenho do professor em levar a palavra de Florbela ao leitor que chamei Guido de apóstolo florbeliano.

 As escrituras sagradas mostram que o Cristo foi entregue para crucificação por um de seus discípulos, Judas. Este, a despeito do lugar que ocupa, ainda hoje, no imaginário cristão, o de traidor, possui um lugar de destaque no cumprimento dos desígnios divinos. Apenas o martírio, o sacrifício e a morte de Jesus tornaria possível a sua ressurreição e imortalidade. Diz o ditado popular que “de boas intenções o inferno está cheio”, dessa maneira, não eximimos Battelli de motivações vinculadas a interesses pessoais, mas o designei “apóstolo florbeliano”, amparada na analogia com o discípulo que acabou morrendo na forca. A crítica atual descreve Battelli como um Judas, um traidor da confiança e da amizade de Florbela, alguém interesseiro e sem escrúpulos, buscando apenas promoção através da poeta. Acreditamos que Guido é em grande parte responsável pela popularidade de Florbela após a sua morte e, também, pelo rumo que tomou a recepção de sua obra póstuma. Os planos de Battelli para a obra de Florbela se tornaram um objetivo de vida. No dia 21-11-1951, Guido discutiu com Túlio uma forma de “prestar a minha última homenagem à gloriosa memória de nossa grande inolvidável Bela”. A intenção do professor era “arquivar e reunir em volume todos os artigos que escrevi sobre esse assunto”, e o título do artigo seria: “Como eu descobri Florbela Espanca: a sua verdadeira grandeza[5]”. Segundo Guido, as pessoas seriam atraídas “pela curiosidade” e ele afirma que:

Parece-me de ser o único crítico que descobriu a lebre, e a universalidade da obra de Bela, quanto a sua verdadeira grandeza e a causa do seu enorme sucesso, o que não tem comparação na literatura portuguesa moderna. [...] Vamos ver se encontramos juntos a maneira de realizar este último sonho da minha vida. Há um provérbio que diz: Não custa de viver, custa de encontrar a maneira de viver.! Quando eu tomei à minha custa a impressão do Charneca, nem o país, nem o marido, nem os amigos, tinham confiança no sucesso. Audaces Fortuna Juvat! Dizia Florbela que sobre um sonho desfeito precisa erguer um outro sonho ainda. E nós erguemos não sobre um sonho, mas sobre uma realidade gloriosa. Um grande abraço. Tenho vontade de ver o lindo livrinho, mas espero não morrer antes disso.

Guido Battelli

(FTE 0064.14, grifo nosso)

 O artigo foi publicado como especificado na carta, assim como grande parte dos planos descritos se tornaram obras que hoje integram, inclusive e especialmente, o espólio estudado. A carta do dia 25-12-1952 revela a alegria de Battelli com o recital realizado em Coimbra no dia 08-12-1952, em homenagem a Florbela. O evento, divulgado no Diário de Coimbra, reuniu muitas pessoas e “obteve um grande sucesso”. Ele conta a Túlio que o recital contou com a presença de “mais de 500 pessoas!”, e que foi um:

 Sucesso fantástico! O povo, mais que os críticos literários, compreende a aprecia os versos de Bela. Estes despertam entusiasmo e fazem palpitar os corações. Bem haja! Nós não faremos retórica retumbante com bombo e Zé Pereira, [...] Os fartos dizem que, apesar da torpe indiferença das beatas e da inveja das poetisas [...] a poesia de Bela encontra adoradores em Itália e em França! [...] Julgo que despertará muito interesse e, talvez, muitas discussões! [...] Muitos votos de felicidade e profícuo trabalho para 1953. Para mim, infelizmente são os versos de Baudelaire:

 

Bientôt nous plongerons dans les froides ténèbres ;
Adieu, vive clarté de nos étés trop courts !
J’entends déjà tomber avec des chocs funèbres
Le bois retentissant sur le pavé des cours.

 

Mas lembremo-nos também dos versos latinos:

VIVITUR INCENIO, CETERA MORTIS E RUNT.

 

Florbela a 22 anos da morte é mais viva que muita gente que agora passeia pelo mundo! E viverá eterna!

Um grande abraço de saudade

Florença, Natal 1952

Battelli

(FTE 0064. 19)

 Nesse momento, podemos observar a relevância do público na atualização da obra florbeliana. Esta recepção corrobora, como postulou Jauss, a importância do leitor. Jauss interessou-se pela dimensão coletiva da leitura voltando a sua atenção para os aspectos ideológicos que envolvem a recepção social da obra, reconhecendo a sua importância para a transmissão da literatura no tempo, agindo num campo de reações. Observemos que mudanças significativas vêm acontecendo na recepção da obra de Florbela Espanca no decorrer das décadas. Jauss (1994, p. 28) destacou que a obra predispõe o leitor para determinadas posturas emocionais, antecipando um horizonte geral da compreensão, segundo convenções de gênero, estilo e forma que evocam um “marcado horizonte de expectativa” em seus leitores. Quando uma nova obra aparece, a sua acolhida pode acontecer de variadas maneiras, pela via da negação de experiências conhecidas ou pela tomada de consciência provocada em relação a outras experiências. Essa “mudança do horizonte” mostrará a distância estética que existe entre a obra e o seu tempo, e essa aferição será possível por meio da forma como o público se expressa e do juízo de valor tecido sobre a obra (sucesso imediato, rejeição, choque, compreensão gradual ou tardia). Será a reconstrução do horizonte de expectativas, sob o qual uma obra foi criada e recebida no passado, que permitirá que se vislumbre sobre quais questões o texto se apresenta como resposta, e ver, também, de que maneira o leitor compreendeu o texto em questão.

Ainda no documento FTE 0064.19, outra carta, que traz como título (em letras de forma) “FLORBELA IN MEMORIAM[6]”, corrobora o aporte teórico descrito mostrando como, passadas duas décadas da morte de Florbela, sua obra vai encontrando acolhida crescente entre público e crítica. Segue o texto:

 Fazem hoje 22 anos da morte de Florbela Espanca, mas o seu nome e a glória desta Poetisa Alentejana longe de se apagar com o passar dos anos brilha mais fulgido, assim como o lume mais fulgurante aparece entre as trevas da noite. O sucesso da sua obra vai se acrescentando de dia em dia: a oitava edição dos seus sonetos está por esgotar-se e já pensa-se na nona; a tradução italiana dos seus sonetos alentejanos despertou o maior interesse em Itália e em França, onde as revistas e os jornais falaram dela; o prof. Carlos Cordié de Universidade de Paris e o prof. Marcel Bataillor, diretor da Revue Hispanique, pediram em exemplar desta obra para os seus estudos. Na Universidade de Roma o prof. Carlos José Rossi este ano tem um curso sobre a Poesia lírica portuguesa moderna e uma das suas lições será dedicada a Florbela; uma aluna do seu curso Vanda Rondini já apresentou a sua tese de doutoramento que trata da obra da Poestisa alentejana. Escusado será falar do Brasil, onde o nome de Florbela goza de uma popularidade enorme e do mais alto apreço. Tudo isso é motivo de satisfação para os estimadores e os amigos de Florbela. Infelizmente eles sofreram a mais dolorosa perda na morte prematura do Ex. senhor Doutor Celestino David que foi um dos mais devotados admiradores da Poetisa, e um dos mais destemidos lutadores para honrar a sua gloriosa memória. Nesse dia a nossa reverente homenagem de gratidão depois de ter oferecido uma coroa de louros ao monumento de Florbela, deixa cair uma flor banhada de lágrimas o nome querido do amigo, rezando uma extremida prece para a sua alma.

Guido Battelli

Florença, 8 de dezembro de 1952

(FTE 064.19, grifo do autor).

 

No documento FTE 0064.18 há um postal enviado por Guido a Túlio Espanca no dia 20-19-1952, onde este afirma ter sentido muito a morte de Celestino David, destacando que Évora perdeu “um dos seus admiradores mais apaixonados”, mas que tanto ele, quanto Túlio perderam “um dos mais devotados amigos à memória da grande Poetisa”. Battelli declara que nunca se esquecerá do incansável trabalho de Celestino David “em função da nossa causa”. A causa a que ele se refere é a divulgação da obra e do nome de Florbela. Vemos o professor italiano tecer uma imbricada teia de relações nessa empreitada que ele considera a missão final de sua vida. Para tal, ele busca implicar variados colaboradores, entre eles Túlio e pessoas do seu circulo de amizade em Portugal e Itália. Esse empenho de Battelli à “causa” pode ser observado na carta de 29-10-1953, na qual o professor informa a Túlio acerca de um artigo muito comprido sobre a obra de Florbela que ele publicou na “Revista Letterature Moderne”, a mais prestigiosa da Itália, e outro breve artigo no Diário de Coimbra, esse ainda por sair. Para além da divulgação da obra da poeta portuguesa, Guido prossegue o laborioso processo de invenção da imagem de Florbela, agora, defendendo que esta “criou a poesia do Alentejo”. Nesses estudos que realizou, o professor defendia que era

 uma asneira repetir que foi o Alentejo a formar a alma de Florbela: foi a ALMA de Florbela que CRIOU A POESIA do Alentejo. Fialho, Monsaraz, Celestino David, Américo Durão, são fotógrafos, viram o Alentejo só com os olhos, Florbela o sentiu com o seu coração, por isso é imensamente superior a todos os “regionalistas”, por isso é grande e a sua obra imortal. [...] Meu caro Espanca, este escrito será, talvez, o último, porque eu sinto-me ao fim da minha vida, mas quero que o mundo conheça a minha admiração para a obra de Bela e a minha devoção a sua gloriosa memória. O professor Santos [...] do Liceu de Coimbra em um belo artigo publicado no Diário, que me deu muita satisfação, [afirmou] que eu construí o monumento de Florbela. É verdade. Já transcorreram 23 anos do dia de sua morte e eu nunca a esqueci: Como o legionário Romano CURSUM CONSUMAVI, FIDEM SERBAVI, Talvez alguém se lembrará de mim! um dia!... [...] Sei que o pai de Florbela quer se fazer editor da obra da filha! Deus o ampare!

Battelli

(FTE 0064.23, grifo nosso).

 O professor italiano, católico fervoroso, como vimos, destaca a incompreensão da obra de Florbela em Évora:

 Mas isso não podem compreender as beatas de Évora que Pascoaes chama “múmias católicas da morte”, não podem compreender e resmungam as mais venenosas calúnias. Eu dizia um dia brincando a Bela: “Oh! moer todos os ossos da capela, e com esta farinha fazer hóstia e comungar todas as beatas. E se eu fosse Rei de Portugal faria derribar a igreja de Santo Antônio em Évora [...]. Bela tinha razão quando exaltava a sua alma “rútila e pagã” precisa-se apagar o fanatismo católico [?] do tribunal de inquisição, [...] das torturas e das pobres vítimas queimadas (FTE 0064.23).

 Observamos que os documentos apresentados discorrem sobre as intenções de Battelli acerca da obra e da imagem de Florbela e sobre o seu desejo de difundir os poemas florbelianos fora de Portugal. Entretanto, acreditamos que mais relevante são as reflexões suscitadas por esses documentos, que nos impelem ao retrospecto, quase obrigando aos leitores e à crítica a reinterpretar os acontecimentos que cercam a vida e a obra de Florbela. Jauss foi claro quando propôs a necessidade de que sincronia e diacronia sejam articuladas durante a leitura das obras literárias. Dessa forma, podemos acompanhar os múltiplos olhares lançados para a obra florbeliana no decorrer do tempo, ver como os retratos de Florbela estão sempre ganhando novos contornos, e atestar o valor estético dessa poeta, cujo lirismo mostra não pertencer a um só tempo. No dia 13-11-1953, volta na correspondência a questão da comemoração de instauração do busto[7] de Florbela em Évora. Guido diz a Túlio que “a causa da homenagem não tem só um caráter privado, é a consagração oficial do valor de Bela”. Guido sugere que Túlio leve algumas autoridades de Évora para a comemoração, mas se esses não quisessem ir tudo bem. Nessa homenagem “a fita com as cores da Itália deve ser entrelaçada na coroa de louros que será oferecida” pela Universidade de Roma. Encontramos no documento FTE 064.26 o desfecho dessa história: Guido diz a Túlio, num postal, que tem a impressão de que “a comemoração fracassou”. O professor destacou que “isso não tem importancia”, afinal, “La virtud está en ser tranquilo y fuerte; / con el fuego interior todo se abrasa; / si triunfa del rencor y de la muerte, / y hacia Belén... ¡la caravana pasa! Rubén Darío”. O professor, depois de citar os versos do poema dariano “Cantos de vida y esperanza”, finaliza a carta declarando: “Bem outras e mais amargas decepções passei em minha longa vida! Saudações cordiais e votos de felicidade, Battelli” (FTE 0064.26).

 Na Itália, José Carlos Rossi, titular da cadeira de português na Universidade de Roma, publicou na sua “História da Literatura portuguesa” o retrato de Florbela com os dizeres: “Se levantou pelo seu gênio a uma altura solitária, exprimindo na maneira mais admirável o irônico doloroso da sua vida” (FTE 0064.24). Guido diz que Florbela é a única mulher de quem o professor Rossi fala, “consagração oficial” vinda da “luminosa Itália”, que “devem aparecer nas Notícias de Évora”, porque “As beatas “múmias católicas da morte” não pensem que é só um orgulho pessoal, uma vã satisfação o sentimento que nos inspira. No Diário de Coimbra vai também aparecer o meu artigo. No grande e glorioso nome de Bela, um grande abraço de saudade!” Battelli (FTE 0064.24). “Temos vencido”, escreveu Battelli a Túlio (FTE 0064.25). Na carta de 8-12- 1953, quando se completavam vinte e três anos da morte de Florbela, o professor italiano contabiliza as vitórias

 Quem poderia calcular isso no janeiro de 1931, quando na pequena loja do Gonçalves apareceu a primeira edição do Charneca em flor? Todos nos eram hostis, o meio universitário porque eu não tinha invocado o seu patrocínio, os estudantes que queriam um livro que lisonjeasse as suas aspirações políticas, o mundo católico porque o livro não era conforme as tradições da igreja, o público indiferente porque já tantas vezes enganado, os velhos poetas que suspeitavam um rival. [...] Apesar de tudo isso temos vencido! Isso parece-me é realmente um milagre que nunca se viu na história das letras portuguesas. A oitava edição está por esgotar-se e já pensa-se na nona, quem pode ufanar-se de um semelhante êxito? O favor do público nos amparou, e pudemos vencer a hostilidade tácita das universidades, e a aberta da Academia de Lisboa, que para nos fazer desfeita negou o prêmio à Florbela, e o concedeu a um fulano qualquer, autor de um poema enfadonho [...]. Temos vencido a energia das regras empavonadas, das críticas burras e malcriadas , que se deitaram sobre a memória de Bela como um [?] de porcos famintos de escândalos e inventaram as mais venenosas calúnias e as mais torpes insinuações. A estrela de Bela hoje resplandece fulgurante [...] destinado a desafiar o curso dos séculos.

Túlio, meu companheiro na luta e no triunfo, deixa que eu te aperte nos meus braços junto ao meu coração! Salve.

Battelli

(FTE 0064. 24, grifo do autor).

 O silêncio das Academias para com a poesia de Florbela é assunto recorrente nas cartas de Guido para Túlio: observamos que o professor fala sobre esse assunto na carta de 9-4-1954. As cartas desse ano tratam de assuntos relacionados à Renascença Italiana (FTE 0064.29), à Cultura de Évora (FTE 0064.30), de personalidades da realeza portuguesa como Dom Luiz (o infante), mas sugerem uma preocupação com o destino da obra de Florbela. Para Battelli (FTE 0064.32), Túlio e seu irmão Demóstenes deveriam ficar com as obras de Florbela, pois “são os legítimos herdeiros”. Ele destaca que os documentos correm perigo e que os sonetos podem cair “nas mãos de um pirata sem cultura, sem gosto e sem educação”, afinal, “a obra de Bela é herdade sagrada da família Espanca”. Às vésperas do vigésimo quarto aniversário da morte de Florbela, Guido afirma: “Este ano não escreverei nada, porque eu já disse o que esperava e não poderei que repetir-me. A glória de Bela é um astro que não conhece tamanho” (FTE 0064.32). A pasta FTE 0064.34 guarda oito cartas que abordam temáticas relacionadas com “as notícias do sucesso da obra de Bela”, seja das “separatas”, já citadas anteriormente, que ficaram prontas, e com uma carta aberta ao Sr. Celestino David. Guido diz a Túlio, na carta do dia 26-01-1954, que enviou as “separatas” para “autoridades e pessoas mais categorizadas” da Itália, para fazer com que “nossa grande Bela” seja conhecida no país, Battelli lamenta que Florbela não possa “gozar do seu triunfo”. Ainda nesse documento encontra-se uma carta aberta de Guido ao Sr. Celestino David, que diz:

 Ex. senhor Doutor,

O que nós, por tantos anos temos desejado, agora está uma esplêndida realidade. Não encontro palavras para louvar e agradecer a generosidade da Comissão de Turismo! Os três ou quatro sonetos do nosso primitivo projeto chegaram [...] enriqueceu-se do precioso retrato de Demóstenes Espanca, duma expressão impressionante, e de algumas vistas do Alentejo, que realmente nos dão caráter da terra brava, que Florbela exaltou no seu canto. Oxalá que os seus conterrâneos, esquecendo as velhas prevenções, reconheçam a grandeza da poetisa, glória da sua terra e da literatura nacional. Quando a exatamente no fim de janeiro de 1932 eu deixei Portugal para regressar a minha terra, toda obra poética dela estava publicada: a Charneca em flor, as relíquias, as Juvenílias, e também as suas cartas, tão interessantes e de tanto valor para conhecer o espírito da poetisa. Mas, a sua glória estava apenas no seu alvorecer. Quem teria dito que a estes pálidos alvores sucederia um dia esplêndido cheio de sol, de luz e de calor? O êxito foi superior às nossas previsões! Mas eu já expliquei aqui e algures a razão deste êxito, e apontei onde está a verdadeira grandeza de Florbela. O seu canto ficará eterno e o seu nome imortal. Ter contribuído, embora modestamente, a este reconhecimento do seu gênio ficará para nós a melhor lembrança da nossa vida. A minha já sinto que se aproxima do seu termo, que seja ainda longa e feliz a vossa, Amigo, é o voto sincero do meu coração.

Florença, janeiro de 1952

Guido Battelli

(FTE 0064.34)

 

Anteriormente, destacamos que a morte de Florbela suscitou muitos comentários em Portugal. Uma carta do dia 12-2-1952, enviada de Florença, por Guido Battelli, para o Sr. Flávio de Oliveira, advogado a quem o professor “interessou” acerca da obra de “Bela”, diz, respondendo à pergunta deste sobre as circunstâncias da morte da poeta:

 Ex. Senh. Doutor,

Queira desculpar-me se eu não sou em condições de responder às suas perguntas. Eu não acompanhei Florbela até os últimos tempos da sua vida. Deixei Matosinhos na penúltima semana de setembro e desde esta data nunca mais a vi. Lembro de que na última tarde havia muita gente na sua casa, e ela conversou conosco com o seu brilho e a sua verve habitual. Determinar a hora da sua morte parece-me impossível, porque ela deitava-se sozinha no seu quarto, depois de ter trabalhando durante a noite. Aconteceu com ela o que aconteceu agora com o rei da Inglaterra: quando a criada subiu para lhe trazer a primeira refeição a encontrou morta! Para mim o triste aniversário é o dia 8 de dezembro, quer dizer o dia em que o trânsito foi revelado. Igualmente impossível saber se a dose do sonífero foi um erro fatal ou um propósito deliberado. [...] Compreender e revelar a beleza suprema do canto de Florbela explica a razão do seu êxito fulmine, parece-me verdadeira a tarefa dos críticos sem render tempo em indagar os pormenores biográficos que não tem a mínima importância para avaliar a sua obra. A apreciação estética desta obra já é a única coisa que nos interessa.

Com toda consideração,

Guido Battelli

Florença, 12 de fevereiro de 1952

 

Observamos que Guido é capaz de mudar o foco do seu discurso. A ênfase no amálgama vida e obra da poeta vai cedendo espaço para uma visão mais focada na obra. O documento FTE 064.35 diz respeito a um convite para uma palestra, no mês de maio de 1951, na Sociedade Leonardo da Vinci-Palazzo Corsini Firenze. A palestra tinha data marcada para acontecer, dia 23 de abril de 1951, e seria uma “Conferenza su la poesia portoghese moderna”. Nessa conferência o professor José Vitorino de Pina Martins falaria sobre a obra de Florbela Espanca.

 O documento FTE 064.38 diz respeito à morte de Guido Battelli. É um postal enviado a Túlio por Fiorella Ved. Vitaletti, filha do professor, informando sobre a morte do pai, com data de 9-4-1955. Os documentos FTE 0039 e FTE 0040 trazem, na sequência, um postal com o rosto de Michelangelo, escultura de Leonardo da Vinci, e uma foto de Firenze, na Itália, ambas enviadas por Guido. Destaquei do material integrante do espólio de Túlio Espanca trechos significativos das correspondências enviadas de Guido Battelli que dizem respeito a planos de divulgação e valorização da obra de Florbela Espanca. 

Conforme salientei, muitos desses planos se concretizaram, viraram publicações e a decisão de publicar este material inédito foi motivado pelo meu desejo de ampliar o olhar para o Guido Battelli, este personagem ambíguo da história literária florbeliana, e que foi o responsável por apresentar a poeta à obra de Rubén Darío.  Observamos nessa exposição, que a imagem de Florbela foi se erigindo aos olhos Battelli como que imantada por uma aura religiosa, ao ponto desse, “católico fervoroso”, se posicionar contra as beatas, “múmias católicas da morte”, e dar razão à Florbela, quando esta exaltava a sua alma “rútila e pagã”. O professor italiano esperava ser lembrado pelo que acreditava ter sido o seu grande feito: descobrir, revelar e traduzir para o italiano “a maior poetisa de todos os tempos” (FTE 064.8). Essas correspondências mostram um homem idoso, mas ativo, especialmente porque é motivado por um ideal, quem sabe amoroso: divulgar a obra e a imagem de Florbela Espanca.


[1] Túlio Espanca declarou numa entrevista: “Eu tinha um grupo de clientes (professores e outros) que esperavam na barbearia para irem para a minha cadeira, até que um dia me disseram que é raro ouvir um barbeiro falar das coisas que você fala. Normalmente falam de escândalos, boatos, mortes, e você fala de arquitetura, de arte e de história” (In: “Ler e aprender”, Évora, 1988. Exposição sobre Túlio Espanca no Teatro Florbela Espanca, em Vila Viçosa).

[2] FTE é o código que designa essa documentação dentro do espólio total de Túlio Espanca.

[3] Guido ainda descreve o projeto, destacando que pretende imprimir um soneto em cada página, com a sua respectiva tradução ao lado, o que ocuparia exatamente vinte páginas; sendo vinte e seis páginas para o índice, uma dezena de páginas para os desenhos, num total de 36 páginas. O projeto poderia ser reduzido se dois sonetos fossem impressos em cada página. Assim caberiam bem nela. Depois da impressão do volume, poderiam tirar-se “separatas”, que se venderiam, salvando uma parte das despesas. Se a venda produzisse algum benefício, poder-se-ia dar alguma lembrança ao artista. Guido pede a Túlio para “apresentar este projeto ao Sr. Presidente” e, se aprovado, ele ficaria feliz em ter apenas uma dezena de “separatas”.

[4] Não conseguimos identificar o que estava escrito nesse parêntese, sendo a carta manuscrita a tinta tornou a palavra ininteligível à nossa compreensão. 

[5] O documento FTE 0064.14 revela que Guido pretendia escrever uma obra com este título que traria “as palavras de Lamartine”, depois descreveria como ele descobriu Florbela. Seguiriam ainda os estudos reunidos por ele sob o título “Vinte anos depois”, e mais “O livro d’Ele (publicado na Prometeu), “O Alentejo na poesia de Florbela Espanca”, o “Pórtico da edição original de Charneca”, “A verdadeira grandeza de Bela”, “Uma sugestão poética”, “Alguns sonetos comentados e traduzidos”, “Elegia a morte de Florbela” e “No vigésimo aniversário”

[6] Mantivemos as palavras sublinhadas como no manuscrito original.

[7] Tratamos da questão da instauração do busto de Florbela na pesquisa Vozes femininas: a polifonia arquetípica em Florbela Espanca (BOMFIM, 2009). O caso da instauração do busto ocupou por muito tempo as páginas dos jornais portugueses, confusões que, seja com o propósito de afirmar a poética de Florbela numa política de reconhecimento de sua qualidade, ou com o de desqualificá-la, fizeram com que a poeta fosse, gradativamente, se tornando um mito. Em 1949, os amigos de Florbela tentaram assentar o busto de mármore nos jardins da praça pública de Évora, mas o governo não permitiu. Essa história exemplifica o preconceito da época para com as mulheres artistas e de como se buscava conjurar os poderes do discurso feminino. Em um documento que a Sra. Aurélia Borges recebeu, datado de 28-01-1947, o Presidente da Direção do Grupo Pró-Evora, Antônio Bartolomeu Gromicho, explica os motivos dos variados entraves que fizeram com o projeto do busto de Florbela Espanca não fosse liberado. Segundo Gromicho, Celestino David e Antônio Ferro, em 1932, levantaram a campanha pela instauração do busto no Diário de Notícia, e o artista Diogo Macedo ofereceu-se para esculpi-lo a partir de um bloco de mármore que lhe fora doado. Uma comissão de artistas e intelectuais escolheram para a fixação do busto o Jardim Público de Évora. Entretando, houve uma inesperada e violenta resistência por parte de alguns vereadores ― o que envolveu até mesmo o ministro da Educação, que foi amável e elogioso para o valor da poeta, mas terminou por dizer que “a sepultura estava ainda muito quente” para que a homenagem pudesse ser realizada. O ministro declarou que não consentia a homenagem, “nem em Évora, nem em qualquer ponto do império português” (GROMICHO, 1947). Foram movidas altas influências tanto a favor, quanto contra a instauração do busto, e chegou uma nota do Governo Civil explicando que o busto não podia ser colocado no jardim. Após a instalação do busto este não foi demolido porque um vereador, esse da nova geração, levou à Câmara a discussão e resolveu que se camuflasse o plinto com benévolas e discretas trepadeiras (GROMICHO, 1947)

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