17/06/2022

Poesia na Rede ( Texto e tradução de Francis Kurkievicz)

 

A pequena seleta de poemas aqui traduzidos e apresentados não tem pretensão literária alguma, o critério foi exclusivamente o deleite. Durante a pandemia, quando estávamos todos acuados na solidão de nossas casas, ilhados pela tela dos computadores, eu comecei a ler intensamente poesia pela internet, nas redes sociais, revistas digitais, etc. Essas leituras me fizeram perceber muitos poetas que eu desconhecia e em cuja obra encontrei um vigor e intensidade que me animou e inspirou muito neste período, como é o caso da poesia ousada de Andrea N. A. Segovia, amiga de facebook, que já acompanho a produção lírica já a algum tempo, e a poética mágica de Santos López, que conheci durante as transmissões virtuais do Festival Internacional de Poesia EL LUGAR DE LOS ESCUDOS/2021, organizado por Àlvaro Mata Guillé. Eu acabei por colecionar essas leituras de poemas e traduzir - muitos deles eu publiquei na timeline do meu perfil no facebook, mas como redes sociais não são documentos literários sérios - e decidi reunir alguns aqui para a LETRA & FEL, uma revista literária de amplo alcance no Brasil e na América Latina, cuja editora, Renata Bomfim, além de amiga generosa, é uma poetisa sensível e compartilha comigo a mesma alegria com a poesia de nossos Hermanos. Boa leitura.

 

 

 

VERSÍCULOS ESCRITOS NA VARANDA DE SEU CORPO

Poema de Andrea Natalia Amador Segovia / Nicarágua

 

Sim, eu tenho me mantido em silêncio

porque em seu parto natural

a partitura da vida

falava de uma obra-prima

Exigia-me em seu movimento oscilante

uma oitava mais elevada

alongada em Sol maior em quatro tempos

quatro espaços num quarto sem estações

O silêncio fresco acima do seu perfil

invadiu-me de cristalina lucidez

abrigou meus sentidos e me acariciou

transbordando mitos e metáforas

Sábias melodias de seiva poética

meticulosas e clandestinas

qual fragmento de céu e branco papel

Encanta-me o redemoinho de sussurros ...

brasa espalhando-se em imagens sem simulacros

na penumbra sussurrante

você afaga com a palavra precisa

você transborda de paixão destilando amor

e o amor surge amalgamando paixão

Gozo silencioso de milenar ingenuidade

nossos corpos destilando engenhos

Inquietos e convulsionados em loucos ritmos de prazer

Curvam-se em festim, crispados e alegres

com o sorriso irrepreensível do amor

Esse som embalsamado em tez

ruídos de fricção, gemidos sutis e ocultos

da sua inconfundível língua

Murmurando encontros de lábios

de sua respiração misturada em minha harmonia

 

no toque acústico ininterrupto

Versos escritos na varanda do seu corpo

escrituras risonhas de orgasmos leais às minhas carícias

Descobri-me nesta nota pura

No ângulo colossal de sua divindade

na onda pura de seu sexo viril

de sua pele nua, abrigando meus poemas.

 

 

 

*

CINZA FRIA

Poema de Santos López/Venezuela

 

Às vezes acho que um sonho me fez ter a cabeça fria

Como um peixe imerso na escuridão profunda.

(O que quero dizer é que os babilônios sonharam exatamente o mesmo)

Às vezes, creio que Deus é o substantivo infinito da minha salvação;

Autor e autoridade, à parte isso,

Como uma projeção que chega até nós.

Às vezes, algumas pessoas passam o dia todo lavando o rosto

Com as duas mãos, dizendo que uma lava a outra,

E o ditado assim se completa.

Às vezes tenho a cabeça fria como a espinha de um peixe,

Se desejo ir um pouco mais longe do que meus amigos, sem

Tropeços, durante o dia. E parece haver uma sequência:

A morte vem com a queda.

Disseram eles: "Não há no sonho nem mesmo uma palavra."

Mas escrito está: quando se sai da água, aqui na terra,

Na escuridão do criador, nossa cabeça é o oráculo

Que fala.

 

 

 

*

DESÍDIA

poema de Yolanda Pantin/Venezuela

 

Deixo passar versos que se perdem

em um nó de vozes, e por conta própria,

vão eles embora com suas visões. Eu os libero

das minhas imposições, torções

de pernas, brilhos que disfarçam

a pobreza dos retornos quando

tentam eles voltar tragédias para dramas,

entre os tecidos cotidianos que os

vestem num afã ignóbil. Eu deixo

que se vão por onde vieram,

da minha cabeça para o ar até se perderem

entre tantas histórias.

 

 

 

*

OURIVES

de Diego Lemer/Argentina

 

Eu não quero fazer barulho

pelo desamparo de um poema

que acende no meu peito

como um incêndio onírico;

Eu não quero um novo medo

no abandono de seus navios

desolados na inexperiência

do eterno naufrágio;

Eu prefiro imaginar

que este poema é uma pessoa

e que pode tocá-lo

com seus dedos de frase,

com suas mãos de palavras;

mas eu não sou tão ingênuo

sei que ninguém

pode consertar

um espelho quebrado

com fios de lágrimas passadas,

É preciso trabalhar a alma

com a paciência do ourives.

 

 

*

ALBA

poema de Blanca Varela/Perú

 

Quando acordei

Fiquei surpreso com a imagem que perdi ontem.

A mesma árvore pela manhã

E na vala

O pássaro que bebe

Todo o ouro do dia.

Nós estamos vivos,

Quem duvida,

O louro, o pássaro, a água

E eu,

que eu olho e estou com sede.

 

 

* Francis Kurkievicz é poeta, publicou seu primeiro livro em 2015 Meninices, contos para crianças, em 2020 publicou seu segundo livro, B869.1 k96, poemas pela Editora Patuá. Criou em 2019 a Ayatori Editora através da qual republicou Meninices no mesmo ano e, em 2022, publicou o livro de poemas para crianças Meu Cântico À Natureza, de Vitória Sainohira. Tem publicado seus poemas em revistas digitais como Mallarmagens, Arara, Acrobata, Hiedra, Escritas, etc., e traduções nas revistas Escamandro e Zunái.

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