10/10/2022

Mulheres abolicionistas e sufragistas no Espírito Santo (Por Renata Bomfim)

 

Judite Castelo Leão- fundadora da AFESL.

Abolitionist and suffragist Women in Espírito Santo

   Renata Bomfim[1]

O conteúdo que ora compartilho é fruto de reflexões e pesquisas no campo da literatura de autoria feminina. É fato que as mulheres conquistaram vários direitos sociais e políticos, entretanto, ainda há um longo caminho de luta pela frente até que a sonhada igualdade de direitos seja alcançada. A opressão sexual, afetiva, econômica e política persiste, mostrando que as relações entre os seres humanos ainda não se tornaram transversais. Trazer à luz ações políticas e culturais de mulheres que viveram em outras épocas, passar a história em revisão, não permitindo que essas sejam diminuídas e nem apagadas da memória, é um dos papeis dos intelectuais contemporâneos. O campo de pesquisa da literatura produzida por mulheres, que ganhou força na década de 1970, busca auscultar vozes femininas ignoradas na história por um cânone literário ocidental constituído por homens brancos e de classe social média e alta.

Este é um texto que homenageia as capixabas que participaram do movimento abolicionista e, posteriormente, do movimento sufragista no Espírito Santo. Muitas delas deixaram contribuições ímpares, como Maria Stella de Novaes e Judith Leão Castello Ribeiro.

Historicamente, o binarismo de gênero colocou a mulher no campo do privado, no mundo da família, da reprodução e do cuidado, e os homens no campo público, do trabalho e da política. Maria Stella de Novaes na obra A mulher na história do Espírito Santo (1999, p. 55) discorreu sobre a opressão que solapava as aspirações femininas nos século XVIII e XIX: “Quantas vocações estioladas, [...] quanto idealismo de cursar uma faculdade, uma Academia de Belas Artes, um instituto de ciências era soterrado no percorrer das teclas de um piano”, assim, as mulheres dessa época podem ser comparadas a “abelhas operárias”, “fadas incógnitas, que salvaguardaram as bases da sociedade”.

O caminho que as mulheres trilharam, seja no campo da literatura ou da política, até que chegássemos ao patamar que estamos agora, começou há muitos anos e é marcado pela resistência e pela luta. Lendo a obra História do Estado do Espírito Santo (2008), de José Teixeira de Oliveira, observei que o autor destacou a existência, desde 1869, de um grêmio emancipador na província, a Sociedade Abolicionista da Escravatura do Espírito Santo. Essa instituição contava com vários membros da elite espírito-santense. Teixeira ressaltou, ainda, o empenho desses “batalhadores” que “coordenavam as iniciativas, promoviam reuniões públicas, angariavam fundos e agitavam a questão” (TEIXEIRA, 2008, p. 461). Entretanto, constatei que nenhuma mulher foi citada entre esses abolicionistas. O texto escrito por Teixeira é um termômetro que nos dá a medida do apagamento que as mulheres sofreram durante um longo tempo.

Ao olharmos essa história a contrapelo, observamos que a participação feminina foi decisiva para o sucesso da causa abolicionista no Espírito Santo, pois, elas “agitavam a questão” mobilizando as famílias e outros grupos, organizando variados eventos sociais que arrecadavam dinheiro para a compra de cartas de alforria. Nesses encontros, as mulheres tinham a oportunidade, também, de experimentar outros lugares sociais, entre eles o lugar de escritoras, geralmente, poetisas. 

Francisco Aurélio Ribeiro, na obra Antologia de escritoras capixabas (1998, p. 18), nos faz saber que, em 1884, houve um sarau lítero-musical, realizado sob a coordenação de Afonso Cláudio, líder do Movimento Abolicionista no Espírito Santo, no qual um grupo de mulheres declamou poemas, tocou piano, realizou quermesse com brindes que eram acompanhados por poesias. Entre as muitas escritoras abolicionistas da época encontrava-se Adelina Tecla Correia Lírio (1863-1938), educadora, pianista, primeira professora de datilografia de Vitória e precursora das escritoras capixabas. Ela abriu espaço para as mulheres na imprensa em Vitória, ainda na segunda metade do século XIX, juntamente com Orminda Escobar, outra poetisa e intelectual feminina de grande destaque na época.

As mulheres que participavam dos salões tocando piano e declamando versos não eram levadas a sério como escritoras. Aos críticos de então, as “poetisas de salão”, aspirantes a poetas, só faziam enfastiar. Certamente, havia homens que apoiavam essas mulheres, mas, no geral, a presença feminina no mundo das letras era considerada algo deplorável, pois, como afirmou um crítico literário português[2], desviava as mulheres da sua missão própria, que era a de preparar o caldo.

A produção feminina até o primeiro quartel do século XX foi fortemente marcada por temáticas como o amor, a família e a religiosidade e considerada pela crítica literária, por muitos anos, como uma produção de caráter apolítico. Contudo, conforme afirmou Herbert Marcuse (1999, p. 11), “o potencial político da arte está contido na própria arte que, se apresenta autônoma perante as relações sociais”, permitindo a ruptura da consciência dominante e revolucionando a experiência”. Dessa maneira, podemos constatar que a participação das escritoras capixabas nas causas abolicionista e sufragista, questionou o ideário feminino da uma época.

No Brasil, não podemos parear o movimento abolicionista ao movimento sufragista, no entanto, muitas escritoras participaram de ambos. No início do século XX, em vários países, as mulheres já estavam organizadas social e politicamente em torno do movimento feminista. A luta era, especialmente, pelo direito ao voto, à instrução e pela regulamentação do trabalho feminino. No campo da escrita, as mulheres já possuíam suas próprias revistas, publicavam livros, mas, o silenciamento sobre as suas produções e o desdém da crítica impregnavam o cenário; um exemplo disso é Guilly Furtado Bandeira, primeira capixaba a publicar um livro, em 1913. A escritora foi pouquíssimo lida na sua época e teve o valor da sua obra rebaixado pela crítica que a definiu como “literatura de moça”, com histórias de “escassa originalidade”, “desprovida de força de criação”, algo “natural e desculpável, principalmente em moça estreante”, como destacou Francisco Aurélio Ribeiro na apresentação da versão da obra fac-similada (BANDEIRA, 2011, p. 217). Considerando o olhar depreciativo para a produção da nossa primeira escritora publicada, podemos imaginar a opressão e a discriminação que mulheres que ousaram escrever em épocas anteriores sofreram.

As intelectuais capixabas dessa época, a despeito dos preconceitos, acompanharam o movimento de emancipação que acontecia em outros estados da federação e não deixaram de escrever. Vale destacar que, Dionísia Pinto Lisboa, mais conhecida como Nísia Floresta, é considerada a precursora do movimento feminista em terras brasileiras. Nísia publicou a obra Direito das Mulheres e injustiça dos homens, em 1832, uma livre tradução da obra Reivindicação dos Direitos da Mulher, escrita em 1792 por Mary Wollstonecraft.  Esse trabalho rendeu frutos e, em 1922, Berta Lutz fundou a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino.

No Espírito Santo, as capixabas não ficaram alheias ao que acontecia no restante do país, em especial, no Rio de Janeiro, e se organizaram fundando em 1933, tanto a Federação Espírito-santense pelo Progresso Feminino, presidida por Sylvia Meyrelles da Silva Santos, quanto a Cruzada Cívica do Alistamento, esta segunda instituição não exigia das participantes o compromisso partidário e tinham como dirigentes Sylvia da Meyrelles da Silva Santos e Maria Stella de Novaes. Certa vez, Berta Lutz, de passagem por Vitória, elogiou Sylvia pela sua capacidade de agregar mulheres em torno de uma causa, e por ter feito um jantar para homenagear Adalgisa Fonseca, a primeira capixaba a se graduar em medicina. Segundo Lutz, essa era a primeira vez que ela via mulheres se reunindo para homenagear mulheres e que isso era “um verdadeiro símbolo da emancipação feminina” (LAZZARO, 1995, p. 80).

Judith Leão Castelo Ribeiro possui um papel importante no movimento sufragista capixaba. Professora, escritora e primeira deputada estadual do Espírito Santo, foi uma defensora dos direitos das mulheres, agregando em torno de si várias companheiras de luta que, mais tarde, a ajudariam a chegar à Assembleia Legislativa do Espírito Santo. Em 1934, Judith candidatou-se a deputada estadual pela primeira vez, mas como não estava filiada a nenhum partido, acabou não se elegendo. Posteriormente, optou por disputar sem legenda, por apoiar o Movimento Revolucionário Constitucionalista de São Paulo, de 1932, e por discordar da política estadual em vigor na época. Judith conseguiu se eleger como a primeira deputadas estadual capixaba em 1947 exercendo vários mandatos. A participação de Judith na política está presente na criação da UFES; ela foi membro-fundadora do Hospital Santa Rita de Cássia e foi, durante vários anos, membro do Conselho da Associação Feminina do Combate ao Câncer, da qual foi uma das fundadoras.

Maria Stella de Novaes (1999) destacou o “esforço titânico”  das mulheres para se sobressaírem nesse ambiente social marcado pelo preconceito; segundo ela houve apenas Judith na militância, mas também outras intelectuais e escritoras como Guilly Furtado Bandeira, Ilza Etienne Dessaune, Maria Antonieta Tatagiba, Lidia Besouchet, Virgínia Tamanini, Yponéia de Oliveira, Zeny Santo e Haydée Nicolussi.

O movimento feminista capixaba de primeira hora foi formado, na sua maioria, por senhoras de classe média e alta, e era fortemente marcado pela religiosidade e pelos valores da época; entretanto, isso não diminui a sua importância, pois, essas mulheres cumpriram o importante papel de abrir espaços para a expressão e fala femininas. Retomo o pensamento de Marcuse (1999, p. 21) que diz: “a verdade da arte reside no seu poder de cindir o monopólio da realidade estabelecida” e daqueles que a estabeleceram.

Eleita a primeira mulher deputada no Espírito Santo, Judith candidatou-se para ocupar uma cadeira na Academia Espírito-santense de Letras (AEL), mas foi recusada. A negativa levou-a a fundar a Academia Feminina Espírito-santense de Letras (AFESL), em 18 de julho de 1949. Participaram da fundação da AFESL, também, as escritoras Arlette Cypreste de Cypreste, Zeni Santos, Iamara Soneghetti e Virgínia Tamanini; posteriormente, se juntaram a elas Ida Vervloet Finamore, Hilda Prado entre outras.

Essas e muitas outras histórias sobre as conquistas das mulheres nos mais diferentes campos precisam ganhar visibilidade, pois são pouco conhecidas da maioria das pessoas. Há muitas escritoras ainda a serem estudadas e lidas. Na obra A face múltipla e vária (1995, p. 19), Agostinho Lázzaro fez um levantamento das mulheres escritoras na historiografia do Espírito Santo; ele constatou a “dificuldade de acesso às obras produzidas por várias intelectuais” e a “escassez de informações fidedignas sobre as mesmas”.

Finalizo a reflexão fazendo minhas as palavras de Herbert Marcuse (1999, p. 39): “A arte não pode mudar o mundo”, mas pode “contribuir para a mudança de consciência e impulso de homens e mulheres que poderiam mudar o mundo”. Baseada nisso, escolhi autoras capixabas que procuraram mudar as consciências sobre as mulheres. Nesta seleção, apresento alguns textos em verso e prosa, de escritoras que participaram do movimento abolicionista e do movimento sufragista no Espírito Santo. Boa leitura!

 Texto originalmente publicado na Revista Fernão, da Universidade Federal do ES (UFES).

Referências:

·         BANDEIRA, Guilly Furtado. Esmaltes e camafeus. Posfácio de Francisco Aurélio Ribeiro e estudo crítico de Josina Drummond]. E.ed. fac-simile. Vitória, Academia Espírito-Santense de Letras, 2011.

·         LAZZARO, Agostino. A face múltipla e vária: a presença da mulher na cultura capixaba. Vitória: Lei Rubem Braga (PMV), 1995.

·         LÍRIO, Adelina Tecla Correia. Combatem grandes ideias. In: Francisco Aurélio Ribeiro. Antologia de escritoras capixabas. Vitória: UFES, 1998, p. 14.

·         MARCUSE, Herbert.  A dimensão estética. Trad. Maria Elisabete Costa. Lisboa: Edições 70, 1999.

·         NEVES, Reinaldo Santos. Mapa da literatura feita no Espírito Santo. 2, Ed. Vila Velha, Vitória: Estação Capixaba; NEPLES; Cândida, 2019. (série Estação Capixaba, v. 20).

·         NOVAES, Maria Stella de. A mulher na história do Espírito Santo: história e folclore. Vitória: Edufes, Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, Secretaria Municipal de Cultura, 1999.

·         OLIVEIRA, José Teixeira de. História do Estado do Espírito Santo. 3. ed. Vitória: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo: Secretaria de Estado da Cultura, 2008.

·         RIBEIRO, Judith Leão Castelo. Deveres e direitos políticos da mulher. In: RIBEIRO, Francisco Aurélio. Antologia de escritoras capixabas. Vitória: UFES, 1998.

·         RIBEIRO, Francisco Aurélio. Antologia de escritoras capixabas. Vitória: Centro de Estudos Gerais, Departamento de Línguas e Letras, 1998.

·         TAMANINI, Virgínia Gaspari. Nasci ainda no século passado. In: LAZZARO, Agostino. A face múltipla e vária: a presença da mulher na cultura capixaba. Vitória: Prefeitura Municipal de Vitória, 1995. p. 169-170. 



[1] Doutora em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo.

[2] O crítico é Ramalho Ortigão, citado por Cláudia Pazos Alonso na obra Imagens do eu na poesia de Florbela Espanca, publicado em Lisboa, na Imprensa Nacional/Casa da Moeda, em 2007. P. 19.

 

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