Se pode pensar que Vitória,
capital do Espírito Santo, é uma ilha rodeada de praias cingidas por prédios
altos. De certo modo é assim. Acontece também que, nas férias, as praias
abraçadas pelos arranha-céus estão superpovoadas: pessoas de lá e forasteiros.
Não obstante, é possível encontrar uma praia deserta; e eu a encontrei. Não era
Namorados, nem Curva de Jurema; Era a longa, longa Praia de Camburi.
Em Camburi, a vida agita-se à noite como uma garrafa de champanhe e espuma. Mas
na primeira hora da manhã eu passeava sozinho. Só não; Ali, perto, uma criança
brincava na areia na beira da água, onde as ondas morriam e morriam. Pensava eu
na enormidade complexa do Brasil, tentando decifrar a paisagem e as pessoas,
enigma de natureza múltipla. Cheguei ao lado do menino e vi que estava ocupado
enchendo um pequeno buraco, feito na areia com uma concha maior do que as mãos
juntas. Com a mesma concha ele tomava a água que banhava seus pés para agonizar
em silêncio, e depositou-a no buraco. Que fazes menino?, que jogo jogas?:
perguntei. Sem interromper sua tarefa nem um momento, ele respondeu com uma voz
que não parecia de criança, se não de adulto muito sério: Estou mudando de
lugar toda a água do mar. Não entendi bem, e usando certa ironia perguntei: E
onde a queres deixar? Neste buraco: respondeu ele com toda a firmeza do mundo.
Naquele momento, percebi a semelhança do meu encontro com o de São Agostinho,
quando ele debatia em seu interior sobre o homem e a Santíssima Trindade. Eu
estava pensando e pensando, para encontrar uma definição justa que abraçasse o
Brasil sem deixar nada fora. Entendi que meu esforço era tão inútil quanto o do
menino, bem como o do eminente santo. “Isto que vejo, tão complexo, tão
exuberante, tão diverso, tão pobre, tão rico, tão escuro, tão colorido, tão
árido, tão fértil, tão débil, tão forte, tão violento, tão terno; isto e mais:
um conjunto de energias que somam e restam, um enigma intrigante que devo
interpretar por mim mesmo; todo isso e bem mais, que não vou compreender nunca,
é BRASIL.” Tardei meses, dia após dia, hora após hora, em chegar a essa
conclusão; possivelmente incompleto e inexata.
Não obstante, gostei do resultado; parecia tão ajustado à realidade que eu
queria transformá-lo em unidade e escala; definição que trata de ser exaustiva.
Obstinação absurda, como eu vejo no instante de medir com ela O Coração da
Medusa. No entanto, é nessa tentativa quando percebo que O Coração da Medusa é
um livro profundamente brasileiro. E o excelente livro de poemas é tão
profundamente brasileiro quanto sua autora, Renata Bomfim.
Renata Bomfim é uma poeta que embala os mitos infantis e os cultiva em seu
seio, alimenta-os, mostra-lhes o caminho e leva-os à maturidade. Os mitos e o
Brasil são consubstanciais. Me refiro a lendas e mitos muito diversos, de
transmissão essencialmente oral. Há uma palavra que explica isso: Miscigenação.
Mas Renata Bomfim não se conforma com a amplitude do significado daquela
palavra de Gilberto Freyre, e desenvolve-a adicionando os mitos greco-romanos,
que na juventude fez próprios por pura admiração. Renata procede dos índios
Tupiniquim do Estado de Espírito Santo, de europeus portugueses e italianos, de
africanos iorubas. Uns povos chegados pela força abominável da escravidão, e
outros pela convocação interna que chama a cada um de acordo com sua natureza e
suas necessidades: posse ou entrega; e as duas juntas às vezes. Miscigenação.
Mas ela deseja conhecer causas e consequências; e estuda todo o que desperta em
sua mente algum interesse. Se chega algo estranho, que ela considera valioso, o
analisa, engole, digere e incorpora em seu ser. Antropofagia, na vontade
pictórica de Tarsila do Amaral. Por esta razão, e pela origem de um dos ramos
da família, Renata chega ao romano e, pouco depois, ao grego, incorporando-os em
seu sentir e pensar.
Atuam em Renata as capacidades generativas que no Brasil, como nela, somam e
subtraem. Luas crescentes e minguantes coexistindo e se impulsando até o
equilíbrio. Renata Bomfin é uma excelente poeta dramática. Seus poemas mostram
muito sentimento, abrangem e contêm muita vida, considerando a vida como aquele
mistério que vamos decifrando a cada momento até o miolo indecifrável: o
conhecimento-desconhecimento do próprio ser. Renata Bomfim é uma grande poeta
da incerteza, entendendo a incerteza como um profundo conhecimento do
desconhecido, da ausência, do que ainda falta completar. Esse conceito do Tudo
/ Nada, Vazio / Cheio, é a gênese da sua dualidade pessoal.
O afã da consolidação pessoal passa pela busca da verdade. Sempre a verdade, toda
a verdade: perto e longe, abaixo e acima. Verdade que faz sua dotando-a de uma
marca de água indelével muito pessoal. Sua escrita foge da imitação, não segue
correntes; abre estradas e as consolida a força de transitar por ambos sentidos
de direções diferentes. O paradoxo é sua arma mais desagregadora, a
desintegração é sua ferramenta analítica, a análise é seu método de trabalho
–atalho talvez, talvez rodeio- caminho da verdade última; se a verdade suprema
existir, pois Renata Bomfim cavalga sobre a dúvida. A dúvida e a chegada à
verdade são as faces da personalidade da artista capixaba, brasileira,
universal. Vai ela captando o estranho mais afim, misturando-o com o melhor
arraigado, para criar novos poemas enriquecidos, aprimorados.
O benefício e o dano estão considerados essenciais em O Coração da
Medusa. Não como conformidade com o que não pode ser evitado, mas sim como
reconhecimento de que, existente e inexistente, formam a essência em condições
de igualdade. Não de forma estável e estática, senão de forma dinâmica e
mutável. É o que é e o que ainda não é, unidos; e é ambas coisas endireitando
as curvas na estrada, avançando, indo e progredindo. Como toda pessoa de
pensamento e expressão, pensamento e expressão são baseados em fundamentos
pessoais. Renata Bomfim se emociona com o simples e se intriga com o complexo,
tentando separar seus elementos. Positiva o negativo, o dramatiza em seus
versos, liquefazendo-o, sublimando-o. O drama desdobrado no papel resulta menos
doloroso, facilita a pesquisa e sua eficácia terapêutica cresce. A dor nela é
amiga, ferramenta em ocasiões, meio de purificação, ponto de embarque para a
nova partida. Sai, depois de cada chegada, a lugares diferentes, que são os
mesmos vistos com outro olhar. Suas feridas não apresentam cicatriz no contato,
mas borbulham dentro do íntimo. A importância do mundo onírico é considerável
na sua criatividade. Alguns de seus melhores poemas foram sonhos, nasceram de
sonhos, sonhos com frequência reiterados.
As ideias sobre a origem e o fim, as teorias tecidas nesse ambiente, as
práticas religiosas nas que participou ou das que teve conhecimento, moveram a
sua olhada para O Grande Tudo, ou seu contrario equivalente O Grande Nada. Ou
seja, aquilo que esvazia o cheio, o que preenche o vazio. Por ser dual em seu
modo de ver o Universo -pessoa isolada e pessoa integrada no conjunto- ela
explica nos seus poemas as imensuráveis magnitudes e a simplicidade próxima da
ausência. Segundo suas experiências e conhecimentos, cada um dos inúmeros
corpos dos quatro elementos, foi dotado de alma individual que forma parte da
alma comum, essa alma infinita que respira a energia do Universo -matéria e
antimatéria- procurando, não a nulidade, senão a síntese. Percebe Renata Bomfim
o humano perseguindo a impossível integração de sensações, sentimentos,
vontade, desejos, necessidades e objetivos na utópica felicidade, extensão da
não menos utópica liberdade. Tudo o que existe real e imaginário, é animado;
existe per se e ao mesmo tempo como consequência da existência geral. Causa e
resultado, de acordo com sua poesia, formam uma unidade inseparável e agem e
interagem dessa maneira no concerto universal.
Este livro de Renata, segundo a poeta pertence à Medusa, a intérprete. A razão
pode vir de um eu lírico, autor verdadeiro e único, diferenciado, separado da
pessoa da qual forma parte. E Renata Bomfim se justifica na crença de que o eu
lírico possui conhecimentos e experiências localizados e adquiridos fora do
resto da pessoa. Teoria do poema filho, posta em prática com rigor, o que pode
explicar sua originalidade. Uma originalidade que não consiste apenas em levar
o seu veleiro contra a corrente, senão em remar quando o vento entra em calma.
Remar, trabalhar, experimentar todo: é um recurso que ela usa em seu progresso,
um progresso evidente, ato por ato, verso por verso; que neste livro alcança o
zênite.
Nada importante foi feito no tempo-mundo sem paixão. A paixão é a ilusão
excedida, desencadeada, urgente, ágil, rápida, intensa: flecha impulsionada
pelo arco em direção ao objetivo. Renata sabe disso e coloca a ênfase nisso. Os
arquétipos femininos que ela estuda tanto, que tanto admira, viveram essa
paixão; em alguns momentos oposta à felicidade com F, como ela a escreve, como
ela a persegue sem resultado visível. Todos os aspectos aqui considerados, e os
muitos beirados por pouco conhecidos, configuram, na soma das partes, o
interior rico, real, vivo e ativo de Renata Bomfim; artista e literata de nervo
e caráter, pessoa infrequente. O Coração da Medusa é o resultado de
todo o anterior: lido, visto, imaginado, escrito, pintado, desenvolvido,
sonhado, apreendido pela poeta. O Coração da Medusa é tudo o que foi
dito acima, assimilado, refeito e entregado a outros pela autora com a intenção
de mostrar-se em toda a sua completa integridade.
Pedro Sevylla de Juana.
Villeneuve sur Lot, Aquitânia, França.
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