Anaximandro Amorim é advogado
e professor, mas, antes de construir um vasto currículo profissional, tornou-se
escritor. Foi em 2001 que ingressou no universo literário integrando a Academia
Jovem Espírito-Santense de Letras, considerada,
institucionalmente, a primeira Academia Jovem de Letras do Brasil. Na
atualidade, o escritor é autor de obras que transitam entre a prosa e a poesia
e continua atuante no campo cultural integrando varias instituições, dentre as
quais a Academia Espírito-Santense de Letras.
A leitura inicial de A Euforia do corpo me rememorou as
ideias de Roland Barthes, para quem a escrita, afastada dos
deveres e pressupostos do fazer científico, possui a potência de produzir
diferenças, provocar deslocamentos e descentralizar sujeitos e palavras. Barthes
nos diz, também, que o corpo vincula-se à escritura por meio do prazer. Foi a
partir desse prisma que passei a deleitar-me com a leitura desse poemário e compartilharei
com vocês, leitores, algumas sendas por onde passei nesse espaço dinâmico e
plural.
Acredito
que A Euforia do corpo busca implicar os leitores num
percurso de ambiguidades ¾ rompendo com obviedades¾, a começar pelo título, indicativo
de estados abissais do ser, pois, a euforia pode indicar tanto alegria e
otimismo quanto o seu posto, o patológico, bipolar, a euforia depressiva. Jacques
Lacan referiu-se à depressão como uma espécie de covardia moral, uma recusa do
sujeito frente ao seu desejo. Anaximandro aceitou o chamado interno para
refletir poeticamente sobre temas e conteúdos pulsantes e limítrofes. O
escritor elegeu o
filósofo francês Jean-Luc Nancy, estudioso de Lacan, como interlocutor privilegiado, como
poderão observar em mais
de duas dezenas de epígrafes. Essa escolha, que julgo ser consciente e bastante
adequada, põe em cena o ente delimitador-mor da existência e condição primeira para a materialização de outros
corpos: o corpo. A jornada começa com o
impulso que arremessa para “fora (ex) do não-ser”. Sob o signo/bússola do desejo, ¾ negado ou vivido às últimas
consequências ¾, o saudável e o que, oprimido no inconsciente
busca vir à luz, se comunicam como instâncias afins.
A Euforia do corpo desnuda esse ente que nos
acompanha do nascimento à morte/desencarne, impondo inquietações, espantos e,
em momentos preciosos, nos regala com o maravilhamento e a epifania. Corpo
plural e, como podemos observar no poema homônimo à obra, subdividido em três
partes, apriorístico. Tomei a liberdade de ler esse poema como se fossem lâminas,
ou seja, cartas do tarô. No início, observamos que loucura, magia e desejo constroem
uma senda arquetípica, “labirinto
sem mapas ou réguas”, que encaminha o leitor para um eufórico “balé feérico”, onde
tomará contato com outra subjetividade. A imagem do Louco, que subsiste nos
baralhos modernos como o “coringa”, não tem posição fixa e, livre, transita
entre os demais personagens do jogo. O eu poético parte daí, carta de número
zero, liberto dos códigos tradicionais, “sem arrependimento, abrindo cordões,
correntes e camisas de força”, enfim, “em procura”. “Uma charada que convida a
repetir o enigma” está lançada. Chega o tempo da experimentação: O corpo é
Amuleto! Na primeira carta do tarô, o Mago, criador e embusteiro, dirige a sua
atenção para tudo o que lhe rodeia criando mundos imaginários e “um pacto de
mistério”, a partir do qual o eu poético vivenciará o processo de diferenciação
necessário à sua evolução, uma espécie de rito de veneração e de delícias que transforma
a matéria alheia em uma coisa outra, “colosso”, “Porto aberto, macio e úmido”,
“augusto deus pagão” e “objeto de culto/delírio”. Simplesmente, não há como
resistir, “O corpo é uma tentação!”, não existem diques que contenham a sua
força e nem o seu furor, embora o homem seja “feito de carne, ossos, músculos e
vontade”, a qualquer momento “explode o que está (nele) contido”. Percebemos o
germe de algo novo, a emergência de uma energia feminina poderosa.
A deriva do
corpo é sempre produtiva e, ao desbravar uma Geografia íntima, o eu lírico se depara
com “falésias” e “planícies”, repousa no “golfo”, “corpo de fuga”, sempre animado
pelo “desejo do perder-se” e “Tendo a adrenalina/ do querer como/ ópio da
procura”. Inexiste um manual que aponte
saída para as antinomias do desejo, entretanto, o caos enuncia uma nova ordem
e, “como monção que tudo destrói/ mas também tudo renova”, e o eu lírico
encontra nessa “geografia íntima”, “em cima,/ um cheiro de porto-seguro/
embaixo,/ um gosto de corpo.” Seguimos acompanhando a evolução dessa
subjetividade poética que supera o medo de perder-se, pois crê ser preciso o seu
destino: “o território do corpo”. Nessas andanças, o erro deixa de ser falta
grave, tornando-se “brincadeira”, e as cicatrizes do corpo tornam-se um convite
erótico, “portas semicerradas pelo tempo” cuja chave é outro corpo. Persistem
as imagens que sugerem a existência de um código de acesso para todos esses
mistérios, e nessa altura do texto, na qual o corpo tornou-se local
privilegiado de enunciação, ¾ seja ele um corpo de carne,
filosófico ou linguístico ¾, urge “Buscar o eterno/ no
irromper do instante// sabendo-se / cativo / no vazio / do depois”, ou seja, é
tempo de desafiar “o estado da matéria”. O eu poético vê-se impelido a “subverter
a ordem do mundo,/ virar o macho do avesso/ - criar uma grande confusão!”: “Lilith”.
Tomamos contato com a lâmina segunda do tarô: a Sacerdotisa. O conteúdo
feminino latente é poderoso, mas, aqui essa imagem deve ser observada a
contrapelo, ou seja, ser a carta de número dois não indica subjugação ou inferioridade,
antes como ente emergente da sombra do um, vinculada à serpente, mentora da
segunda esposa de Adão: Eva. O poema, dedicado a “todas as mulheres do mundo”, desafia
o corpo sociocultural e opressor do patriarcado ao apresentar um modelo de
entregar desmesurada. O tempo tornou-se propício para que constelasse essa que possui
“entre as pernas”/ - uma máquina de castração!”. A primeira esposa de Adão, Lilith
possui um forte conteúdo revolucionário e pode ser encontrada em mitologias de
variados países, entre eles as da Assíria, da Suméria, da Babilônia, da
Cananéia, da Arábia, da Pérsia, entre outras, escancara o “desvario da criação”
revelando a necessidade uma nova arquitetura, a “Arquitetura do Nada”, plantada
em um domínio “fértil de símbolos”. Assim, sob o signo da insurreição, nos
deparamos com outra personalidade emblemática, o desejado Jacinto, que entra em
cena como um “corpo de alívio”, fluido como um “rio soberano” e transbordante, ¾ poeta e amante ¾, presenciamos, então,
a “Soberania do corpo”. Tudo é prazer, “um mundo se põe em delírio”, “dedos” e
“língua” são senhas para a penetração, mas ainda há alguma reserva. Volto a
Roland Barthes em minhas reflexões. Esse pensador nos diz que a escrita cria um
espaço relacional, nem sempre harmonioso, entre o escritor e a sociedade. Acontece
ai um embate profícuo que, em essência, busca liberar a literatura de comunicar
fatos históricos e de transmitir mensagens, para que possa realizar-se em si
mesma: prazer e gozo. Na poesia de Anaximandro sinto esse pressuposto em
operação, há no seu processo criativo uma bússola que o orienta para que não se
desvie do cuidado/compromisso com a linguagem, sempre burilando os poemas, explorando sons e formas e jogando com o sentidos
das palavras, como observamos no poema “A Pele. O Pelo” que, anaforicamente,
repete cinco vezes a palavra “voo”, ao passo que brinca com as consoantes “p” e
“l”. Esse poema ratifica o movimento ascensional ensejado nos poemas anteriores.
A pele e o seu “raso”, o pelo, são peças no jogo da sedução e levam o eu
poético ao desfrute de um “Acalanto doce” que é “remanso” e “abrigo”, e a
possuir um “gosto de eterno”. Tempo de dizer, tempo de dizer-se: “A Boca”. A
escritura efetua a linguagem na sua totalidade e deparamo-nos uma poética de hierarquização
dos corpos: “imaculados”, “aceitáveis”, “rebotalho”, “transitórios”, todos
esses presos à ilusão de serem senhores de si. Avesso do avesso: “o não-corpo”
influi, seduz e tenta, espelho no qual o sujeito poético se vê refletido de
forma invertida.
Jean-Luc Nancy
terá dito que “Um corpo só é fazendo e se fazendo”, dessa maneira, o
próximo conjunto de poemas construirá, a partir da “fresta da palavra”, o
mundo. O eu poético denuncia: “aquilo
que cala,/mata” e, a semente que dormitava desperta “feito poema de devir”,
semente-ostra gerando pérolas espetaculares, guardadas pelo “segredo-oceano”.
No campo da beleza e do “sublime” ressurge o “corpo de
alívio”, agora, maturado pelas vivências, ele anseia “apenas o inominado:/
Um casamento de almas” que possibilita “A Humanidade/ Recompor/ A beleza/ Dos
dias” e, eis o milagre: “(o corpo inteiro)”.
O movimento
circular do texto enseja um reinício, a “queda” torna-se uma espécie de senha
para novas viagens e descobrimentos, o corpo torna-se “cordilheira” e o eu
poético vislumbra, enfim, o segredo que se escondem por trás da complexidade,
“para além do absurdo”: “A dor de máquina do mundo”. O olhar dessa
subjetividade peregrina se (re)constrói com a imagem de um embate entre
“Nasciso” e “Medusa”, ela percebe então que há beleza no brutal das criaturas, ou
melhor, que brutal é a própria beleza. Essa visada que tomou a leitura da obra A Euforia do corpo como a leitura da profundeza do ser buscou
centelhas de compreensão, de forma nenhuma tentou esgotar o seu significado, até
porque a potência da palavra poética nos impede de cometer tal hybris.
Há “segredos” inesgotáveis escondidos “por trás de um silêncio prenhe de signos”, o caminho buscado, agora é o da “alegria”. Mas, esses segredos podem ser acessados apenas por meio da leitura individual, na solidão essencial que emana da obra literária, como diria Maurice Blanchot. Mas, lembre-se sempre da senha: “aquilo que cala/ mata”.
Renata Bomfim
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