Há gramáticos, entre os quais Napoleão Mendes de Almeida, que repudiam como erradas as expressões tevê a cores e tevê de cores, e recomendam apenas tevê em cores sob a alegação de que, no Brasil, não se diz tevê a preto e branco, mas apenas tevê em preto e branco. Na verdade, a expressão tevê em cores é menos vernácula do que tevê a cores, já que tevê em cores me parece um galicismo (Cf. télé en couleurs). Em Portugal, diz-se televisão a cores/a preto e branco. Ora, as preposições a, de e em, com frequência se podem intercambiar em várias expressões, sem que se possa afirmar que apenas uma seja a correta. Senão vejamos: fogão à lenha / de lenha; panela de pressão / à pressão; vestido de muitas cores / em muitas cores; barco de vela / à vela; navio de vapor / a vapor. O fato de não se ouvir, no Brasil, televisão a preto e branco não significa que se trate de expressão condenável, mas apenas de um padrão não preferencial. A norma restringe o sistema.
Sistema é um conjunto de elementos coordenados entre si que se relacionam e funcionam numa determinada estrutura. Em outras palavras, todo sistema é uma rede de relações. Sistema, do ponto de vista linguístico, é o conjunto de relações numa determinada língua, assim como o conjunto de relações entre fios, lâmpadas, faróis, dínamo e bateria constitui o sistema elétrico de um carro. Norma é aquilo que é usual entre os falantes de uma determinada língua. Assim, temos uma norma no dialeto caipira como temos uma norma no dialeto do brasileiro culto. Norma culta, portanto, é o que é normal na linguagem de uma pessoa culta. A sibilante surda entre o silêncio e uma vogal tônica admite a formação de um ditongo decrescente: nós > nóis; rapaz > rapais. Essa é a norma no dialeto mineiro, mas a norma culta não admite esse ditongo.
A norma culta, de certa forma, é arbitrária por aceitar uma determinada forma em detrimento de outra; é artificial, por ser ideal e, ao mesmo tempo, difícil de atingir plenamente, porque uma pessoa não pode policiar a linguagem durante todo o tempo em que estiver falando e até mesmo escrevendo. Chama-se estilo ao maior ou menor grau de atenção que um falante dá à própria fala. A norma culta se caracteriza por ser um estilo refletido, de policiamento da própria fala, em oposição a um estilo descontraído, em que a pessoa dá mais importância ao que diz do que ao modo como diz. Há cinco tipos de estilo, do mais formal (como o de um discurso a um autoridade) ao menos formal (familiar), passando pelo semiformal (linguagem de um professor em aula), pelo coloquial tenso (um cronista ou jornalista escrevendo sua notícia) e pelo coloquial distenso (conversa entre amigos sobre, por exemplo, um jogo de futebol).
Curiosamente, um aluno meu no curso superior escreveu: O rapase me procurou (cito de memória). Ele queria dizer rapaz. Demorei a descobri o porquê dessa grafia que não correspondia à norma do aluno que nunca usou rapase por rapaz nas conversas pessoais: ele dizia “Eu estava quais caindo” (quais = quase). Ele pensou, portanto, numa quarta proporcional: o nome rapaz ele pronunciava “rapais”. Portanto, como escrevia quase e pronunciava “quais”, achou que rapaz tinha grafia semelhante (um exemplo de hipercorreção).
Num jogo de xadrez, as peças constituem um sistema. Se uma das peças é movida ou removida, o sistema é outro, porque se modificou a rede de relações, mas o jogo (a língua) permanece o mesmo. Antigamente, o sistema de demonstrativos na nossa língua tinha vários elementos, entre os quais, por exemplo: este, esse, aquesse, aqueste, isto, isso, aquilo... O sistema de demonstrativos mudou, porque alguns de seus termos desapareceram, mas a língua permaneceu a mesma. O sistema permite que se diga à manhã, como se diz à tarde e à noite, mas a norma não permite (cf. de manhã, de tarde, de noite). O sistema aceita que o feminino de diretor seja tanto diretora quanto diretriz (cf. ator/atriz), mas a norma reservou diretriz para a metalinguagem da ciência, e reservou apenas diretora para o feminino de diretor. O sistema admite que se diga mulher superiora, mas a norma estabeleceu que o feminino de superior só deva ser usado para a freira diretora de um convento: madre superiora. Da mesma forma, é a norma que não permite que se diga, por exemplo, televisão de cores, embora o sistema permita essa construção. Se uma criança diz fazi em lugar de fiz, ela se guia pelo sistema (cf.: correr corri), mas a norma leva-nos a dizer apenas fiz, e corrigimos a criança que diz fazi. O sistema permite que se diga presidenta, como se diz governanta (feminino de governante) e infanta (feminino de infante), mas a norma não permite que se diga estudanta para o feminino de estudante, nem gerenta para o feminino de gerente, embora o sistema permita esses femininos, mas tanto o sistema quanto a norma admitem o feminino presidenta. Repita-se o que acima se disse: a norma restringe o sistema. O feminino dos nomes em -ês, como português, por exemplo, se forma acrescentando-se um a ao nome: portuguesa. Mas a norma não permite que se diga burrinha pedresa, e só admite pedrês como nome invariável em gênero. A norma não se explica: ela estabelece. Por isso não podemos explicar por que se admite o feminino governanta (de governante) e não se admita o feminino estudanta (para estudante).
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