Os pronomes pessoais podem ser usados de forma genérica, sem ligação direta com as pessoas do discurso. O pronome eu, por exemplo, com sentido genérico, pode designar não apenas o falante, mas o ouvinte ou qualquer outra pessoa. Imaginemos alguém que, falando das vantagens de se passar algum tempo no interior, diga, numa linguagem informal: “Numa cidadezinha, é bom, eu posso respirar ar puro, fazer higiene mental. Onde é que eu acho lugar melhor para descansar, senão na roça?”
O falante, pelo fato de dizer eu, não quer significar necessariamente que tenha estado numa cidade pequena. Ele está generalizando uma situação cuja vivência considera universalmente válida.
O pronome de 2ª pessoa (tu, você, o senhor, etc.) também pode ter um emprego de sentido genérico, que o aproxima do grupo dos indefinidos, isto é, um emprego em que não se refere especificamente a nenhum ser determinado. Embora semanticamente de 2ª pessoa, o pronome tu (você, o senhor, etc.) pode designar, por transferência de experiência pessoal, uma 3ª pessoa generalizada e, simultaneamente, o eu e o tu do processo de comunicação. Em outras palavras, ao mesmo tempo em que designa um ser indeterminado, também designa o falante e o ouvinte, numa neutralização das três pessoas gramaticais num espécie de arquimorfema. Por exemplo, ao falar com uma amiga solteira, um homem pode desabafar assim: “Você chega cansado na sua casa, encontra sua mulher indisposta, seu filho doente, e aí você fica transtornado, sem saber o que fazer.” Observe-se que os adjetivos cansado e transtornado, referindo-se a você, não estão no feminino, como seria de supor, já que a ouvinte é mulher. Esse você, na verdade, é o próprio eu do falante na tentativa de generalização de seu próprio caso particular. Você, nesse exemplo, assume as três pessoas gramaticais: é o ele genérico; é o eu que narra a própria experiência e é o tu (você) também genérico, com que eu pretende partilhar sua própria sorte.
Esse emprego de tu, em sentido genérico, foi analisado por Halliday e Hasan, que o chamaram de exófora institucionalizada (HALLIDAY, M.A.K. e RUQAYA, Hasan. Cohesion in English. London: Longman, 1976, p. 53), junto com o nós e o ele usados também genericamente. Exófora é tudo o que se refere a algo exterior ao texto. Por exemplo, o pronome eu, numa carta, é um pronome exofórico porque se refere a alguém que se situa fora do texto escrito. Eis o que dizem esses autores: “Não somente o pronome pessoal generalizado one mas também we, you, they e it têm um uso exofórico generalizado em que o referente é tratado como se fosse imanente em todos os contextos de situação. You e one significam “qualquer indivíduo”, como em ‘you never know, one never knows’[trad.: você nunca sabe, nunca se sabe]; (...) We é usado de forma semelhante mas mais concretamente, implicando um grupo particular de indivíduos com os quais o falante deseja identificar-se, como em ‘we don’t do that sort of thing here’ [trad.: nós não fazemos esse tipo de coisa aqui].”
Giselle Machline de Oliveira e Silva registra também no francês fenômeno semelhante: “On ne va plus en France sans qu’on vous exploite” [trad.literal: Não se vai mais à França sem que explorem você.]. (SILVA, Giselle M. de Oliveira e. Aspectos sociolinguísticos dos pronomes de tratamento em português e francês. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, 1974 – dissertação de mestrado inédita). A autora, contudo, ressalta apenas o emprego de vous (você) como anáfora do primeiro on, e não como exemplo de exófora institucionalizada.
O você como exófora institucionalizada pode ser entendido como referência a uma 2ª pessoa imaginária, o que não lhe tira o status de pronome pessoal, ainda que se assemelhe semanticamente a um pronome indefinido. Apesar de se assemelharem semanticamente aos pronomes indefinidos como quantificadores determinados, os numerais cardinais, por exemplo, continuam sendo numerais cardinais: “Éramos seis.” (Título de um romance de Maria José Dupré).
O pronome nós também pode designar o ouvinte, excluindo o falante, caso em que nós não significa eu + alguém, mas apenas tu ou você. O médico, chegando ao hospital, pergunta ao doente: “Como passamos a noite? Como estamos hoje?” A mãe, querendo alimentar o filho, diz-lhe “Vamos tomar a sopinha?” – Esse nós, nos exemplos citados, em sua forma ø significa você.
Eles também pode ser empregado com um sentido genérico, em sua forma plena ou em sua forma ø: “Fui à secretaria, mas eles não quiseram dar-me o atestado.” Esse eles pode estar significando apenas uma pessoa que o falante não quis nomear ou determinar. Sintaticamente, contudo, neste caso, eles é analisado como sujeito simples (por só ter um núcleo). Em sua forma ø, a indeterminação da 3ª pessoa do plural é registrada em todos os compêndios gramaticais como “sujeito indeterminado”: “Assassinaram o Presidente Kennedy” (Cf. CUNHA, Celso. Gramática do português contemporâneo. 6.ed. rev. Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1976, p. 91). Um sujeito só é considerado indeterminado, pela Nomenclatura Gramatical Brasileira, quando não tem núcleo. O sujeito é simples se tiver um só núcleo, ainda que esse núcleo seja um pronome indefinido, como em “Todos saíram”, “Nada me afeta”, “Tudo mudou”.
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O Prof. Dr. José Augusto Carvalho é Natural de Governador Valadares, MG. Crítico literário, é professor aposentado da UFES, Mestre em Linguística (Unicamp) com a dissertação Análise de alguns componentes da narrativa (1975) e Doutor em Letras (Língua Portuguesa e Filologia) pela USP com a tese A Articulação pronominal no discurso (1979). Autor de A ilha do vento sul (romance), Aprendendo a ler (didático), Do pensamento à palavra – lições de português para a prática da redação (didático - em colaboração), De língua e linguística (2022), O suicida e outras histórias curtas (2020), Pequenos estudos de lingua(gem) (2022) e Crônicas linguísticas (2018).
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