16/12/2020

Actos (in)tencionales

 



I

En todo este tiempo no conociste mi color verdadero,

Ni sentiste ese olor mío tan especial

Nunca me sabrás del todo.

Esta soy en verdad:

Siempre otra, otra, otra, y otra distinta,

Desde que el mundo es mundo

Fui y continuaré evolucionando.

 

En todo este tiempo no acariciaste mi curva espinal

No sentiste la sacudida de mi soplo

El pinchazo seco del puñal: la cuchilla.

Son de hierro mis vértebras.

II

No estoy destinada a ti

Ni a tu placer siquiera.

No soy un florero de tu casa

estímulo en la cama, ¡no!

Esa mula incansable y obediente

Es solo una ilusión tuya.

 

No existo.

No vine para ti.

Quizá por eso solo sientas el deseo

Y no te interese yo ni las cosas del mundo.

Acaso por eso no percibas

La esencia viva de mi vida.

 

No lo comprendes:

Soy el vacío grávido.

 

III

Fértil y activa.

Nací dotada de vientre,

Entrañas, carne, sangre, escupiendo símbolos.

Estoy ante ti.

¿Me descubres ahora?

Sinuosa y cantando verdades, sigo

 

Fecundada por el vacío en la grieta,

En el interior,

(lugar que desconoces)

Fui, soy la dueña de los espacios ambiguos.

Ocupas el centro o lo ignoras todo

Del hueco y de lo que le llena.


IV

No deseo desvelarte esos secretos femeninos

Ignoras las sombras vivas que nos

Acompañan.

Desconoces la oscuridad que nos envuelve,

¡Pobre criatura!

No comprendes que el canto con sus ondas cortas y largas

causa los malos tiempos.

¡Pobre de ti!

Observa: el tiempo abre fisuras en la existencia.

¿Desconoces el canto y sus ondas?

¡Pobre de ti!

Descubre el camino de regreso.

 

V

Una razón para vivir

 

Vivo porque el aire manda en mis pulmones.

Porque mi cuerpo sigue los dictados de su propia voluntad.

Aunque el sol encienda mi existencia y torne todo luz

Yo prefiero la luna, las sombras y lo oscuro.

 

Una sombra va conmigo.

Es espesa y desprecia los obstáculos.

La sombra no necesita razones para avanzar.

 

Yo preciso volar tras una noche de insomnio

Quisiera tener alguna certeza al abrir los ojos.

¡Nada de certezas!

 

VI

Voces conflictivas.

Alguien me toca

Despiertan los demonios del recuerdo

Necesito olvidar.

Necesito olvidarte una vez más.

Quiero ser derrotada en la lucha de los inocentes.

Fui mujer de muchos hombres

Conservo la pureza

Como el lirio abierto bajo

El manto de la Aurora.

 

VII

El hombre que amé se burlaba de mis bostezos

El hombre que amé se burlaba sin parar.

Hoy hace un día que perdí las llaves

esas llaves que te abrían.

 

VIII

¿Usted sospecha la existencia de la vida

que crece dentro de mí?

¿Reconoce la vida de mi vida?

Con razón no me vislumbras,

Con razón.

Solo ves aquello que tus ojos imaginan ver,

Tu deseo te ciega.

 

Tuve una paciente llamada Norma,

La vida íntima de Norma parecía bonita, ella era libre.

¡Pero, cuántas medicinas,

se esforzaban para que viviera así!

Norma vivía una vida artificial inconsistente.

 

 

La vida secreta de mi vida cuenta con legislación propia.

Vivo enviciada de poesía.
Ayer esnifé a Walt Whitman,

Después me inyecté unos románticos y, por fin,

Camões, cantos encapsulados.

 

Acaso las voces que nos orientan

En el paso de la vida íntima a la vida mostrada

Permanezcan comunicándose a través de la mente

Trasvasando conocimientos.

 

 (Poema de Renata Bomfim/ tradução ao castelhano por Pedro Sevillha de Juana)

 

Atos (in)tensionais (Renata Bomfim)


I

Ainda não viste a minha cor,
Nem sentiste o meu cheiro,
Nunca me conhecerás por inteiro.

Esta sou.

Sempre outra, outra, outra,
Desde que o mundo é.

Fui e continuarei sendo. 

Ainda não viste a curva espinhal

Nem sentiste o abalo dos ventos

O furo seco do punhal: a lâmina. 
São de ferro as minhas vértebras.


II

 

Não sou para ti,

Nem para o teu prazer.
Não sou adorno para a tua casa,

Tempero da tua cama, não!
A mula incansável e obediente

É fantasia tua.


Não sou.

Não estou aqui para ti.

Talvez por isso vejas apenas o desejo
E não a mim e nem as coisas do mundo. 

Talvez por isso não enxergues

A vida íntima da minha vida.

Não compreendes:
Sou o vazio grávido.

 

III

Fértil e pronta.
Nasci formada de ventre,

Vísceras, carne, sangue, cuspindo símbolos.
Estou aqui.

Enxergas-me agora?

Sinuosa e cantando lisuras, sigo.

Gestada pelo vazio no interstício,
No entre,
(Lugar que desconheces)
Fui, sou a dona dos  espaços  ambíguos.
Habitas o centro e não sabes
Do oco e do nem vazio.



I

Não pretendo revelar-te esses segredos femininos,

Ignoras as sombras vivas que nos acompanham.
Ignoras as sombras,

Pobre de ti!

Não vês  que o canto em ondas curtas e longas faz o tempo ruim.
Pobre de ti!
Mira, o tempo abre fissuras na existência,
Desconheces o canto e suas ondas?
Pobre de ti!
Aprende o caminho de volta.

 

V

Um motivo para viver.


Vivo porque o ar se impõe aos meus pulmões.

Porque o meu corpo possui vontade própria.

Embora o sol aqueça a minha existência e torne tudo luz

Eu prefiro a lua, as sombras, o escuro.

 

Uma sombra me acompanha.

Ela é espessa e não respeita obstáculos. 

A sombra não precisa de motivos.

 

Eu preciso levantar após a noite mal dormida.

Gostaria de ter alguma certeza aos abrir os olhos.

Nenhuma certeza!

 

VI

Vozes conflituosas.

Alguém me toca

Despertam os demônios da memória.

Necessito esquecer.

Necessito te esquecer.

Quero ser derrotada na luta dos inocentes.

Fui mulher de muitos homens

Mantenho a pureza

Como o lírio que se abriu sob

O manto da aurora.

 

VII

O homem que amei se ria dos meus bocejos.

O homem que amei se ria, ia, ia, ia, ia...

Hoje faz um dia que perdi as chaves. 

 

VIII

Você enxerga a vida que se oculta
Dentro de mim?
Reconhece a vida de minha vida?

Normal que não me enxergues,

Normal.

Só enxergas o que teus olhos imaginam,

O teu desejo te cega.

 

Tive uma paciente chamada Norma,
A vida íntima de Norma era linda, ela era livre.
Mas, quantos remédios,

Faziam de tudo para ela se adequar.

Norma passava a sua vida ordinária drogada.


A vida secreta de minha vida possui legislação própria.

Vivo drogada de poesia.

Ontem cheirei Walt Whitman,

Depois injetei uns românticos e, por fim,

Camões, cantos encapsulados.  


Talvez as vozes que nos orientam

Na passagem da vida íntima para a vida revelada

Permaneçam se comunicando através da mente.

 

IX


Em segredo plantei um jardim.
Nada de simetria. 

Cultivo as flores da desordem. 
Em segredo, a vida de minha vida se expressa

Nas entrelinhas de mim, ou dessa que imagino ser.
Tudo normal, mas, não sou a Norma.

 

X

Me achas rude,
Grosseira,
Má. 

Sou essa.

Grotescamente rude e desordeira,
Leio as palavras que balbucias
À contrapelo.

Sou barroca, encarniçada
Saturnina, desvairada,
Sou isso.

Hierática, elétrica,

Orgástica, dramática.

Nada Rococó,

Não amenize os fatos,

Gosto dos efeitos,

Vamos debulhar afetos:
Sou barroca,
barroca.

 

 

14/12/2020

A condição da mulher na história: silêncio e enclausuramento (Renata Bomfim)

 











"Que a mulher conserve o seu silêncio” (Apóstolo Paulo)

A historiadora Andrée Michel afirmou que “a história das mulheres é antes de tudo a história da instalação de sua repressão e da ocultação desta”. Segundo esta autora não há acaso nesse fenômeno e nem ciência neutra. Este pensamento vai de encontro ao de Simone de Beauvoir (1980) que, com sua célebre frase: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, revelou o pensamento que defenderá em sua obra, de que o papel de coadjuvante da mulher em relação ao homem é uma construção social e não um fator biológico e nem psíquico. Tanto é cultural que, antes da cultura instituir-se, ou seja, entre 6.000 e 3.000 a.C., período que compreende o neolítico médio, a revolução técnica decorrentes da descoberta de novas fontes de energia como atração animal e a energia gerada pelas águas e pelo vento, de novas técnicas de produção e ferramentas como o arado, o moinho de vento, e o barco à vela, passou a substituir a mulher como agente de produção agrícola, e o status dessa passou sofrer profundas modificações que se perpetuarão por milênios.

Mas qual era a condição da mulher no paleolítico, antes das mudanças acontecidas no neolítico médio? O tema é controverso, muitos pensadores dizem não haver provas suficientes da existência de uma época dominada por matriarcado. Michel chamou a atenção para o fato de serem os referenciais mais antigos nos estudos científicos, também um produto histórico, cujo olhar está comprometido com uma visão de mundo que ratifica mulher como coadjuvante do homem na história, ela diz: “Num mundo em que o poder é masculino, a condição da mulher, quando não ocultada, é descrita por historiadores, etnólogos, sociólogos, de forma androcêntrica”.

O paleolítico durou milênios e é um dos mais desconhecidos da história. Estudos feitos a partir de sinais encontrados em cavernas e estatuetas de osso e de pedra, levaram os cientistas a delinear essa sociedade como pacífica não foram encontrados indícios de guerra, embora esses povos já utilizassem armas para caçar. Homens e mulheres participavam de forma equivalente da caça e da coleta, não havia propriedade privada e nem cumulação ou exploração de um sexo pelo outro. Os primeiros signos parietais encontrados nas cavernas datam de 30.000 a. C. e eram signos sexuais femininos e masculinos, mas as únicas estatuetas, em pedra ou marfim, são representações femininas, mulheres com seus atributos destacados, seios fartos, ventre bem desenvolvido.

Estes indícios levam a crer que, nessas sociedades, a mulher tinha papel de destaque. Michel (1982, p. 15), relata que aproximadamente 10.000 a.C., a mulher teve papel preponderante na mudança do paleolítico para o neolítico. O clima foi o gatilho que desencadeou essa revolução, a escassez da caça e a aridez do solo, fez com que surgisse a agricultura de enxada. Vários estudiosos entre eles E. Bouding (1982), atribuem à mulher essa invenção, a partir da observação dos ciclos de germinação e produção dos cereais, e outras invenções como a fiação e a tecelagem, as primeiras cerâmicas, a criação de mós de pedra para triturar os grãos. O estatuto da mulher no neolítico é elevado, e as estatuetas femininas, primeiras divindades, em argila, eram chamadas “deusas mães”, e seu poder vinha da associação entre a mulher e a terra fecunda.

Com o neolítico médio, o estatuto da mulher passa a sofrer modificações, como já citamos anteriormente, os avanços e descobertas desse período fizeram com que a mulher fosse substituída como força de trabalho, a enxada substituída pelo arado o que ocasionou o excedente de alimentos e, conseqüentemente, o sedentarismo e a explosão demográfica. Surge nesse período a propriedade privada e a cumulação de bens, bem como os burgos, embriões das futuras cidades. Na sociedade estatal, baseada na escravidão, rompeu-se o equilíbrio entre o homem e a natureza e inaugurou-se uma nova forma de divisão do trabalho. Os espaços comunitários passam a ser palcos de antagonismo de classes onde variados grupos como artesãos, sacerdotes, militares, passaram a viver a serviço dos mais ricos. As necrópoles indicam o grau bélico dessa sociedade, foram encontradas fossas coletivas com corpos crivados de flechas, o homem agora “agricultor” e “sedentário”, já não tolera a extensão das florestas e nem “rebanhos pastando em seus campos de trigo”. Enfraqueceu-se a base ideológica do matriarcado com o reconhecimento da participação masculina na procriação. A “deusa-Mãe” que durante muito tempo foi o único objeto de veneração foi atribuída um parceiro macho que, inicialmente, lhe era subordinado mas depois igual e, finalmente, soberano, o “pai do céu”.

No seio da nova religião, o patriarcado, está à repressão e o entendimento da mulher como ser de segunda classe. Uma forma de solidificar a imobilidade social da mulher ocorre por meio da clausura. Nos séculos VI e VII às mulheres era vetado o direito ao episcopado, mesmo assim, elas ajudaram a construírem mosteiros, que era a instituição detentora do monopólio da educação. No século VIII um decreto do imperador Carlos Magno proibiu que meninos fossem instruídos em mosteiros, o que fez com que nos séculos subsequentes as mulheres tivessem um grau de instrução maior que os homens e, conseqüentemente, voltassem a gozar de uma liberdade esquecida pois podiam gerir negócios, além de herdar e alienas propriedades. Entre os séculos VIII e IX as mulheres conseguem resgatar a autonomia, isso aconteceu em diferentes lugares do mundo, por exemplo, no Islã, as mulheres tinham papel social de destaque e lecionavam nas universidades, em Roma, a imperatriz Teodora e sua filha controlavam o papado, em Bizâncio, as rainhas eram conhecidas por sua instrução, as mulheres eram numerosas nas universidades e exerciam profissões liberais.
A imagem convencional da exclusão da mulher, só viria a nascer após o século XII, com reformas promovidas pela igreja. Os conventos deixam de ser locais de fomento da educação, a hierarquia da igreja constrói universidades anexas às catedrais, cujo acesso era vetado a moças que continuavam a ter uma educação precária nos conventos. A defasagem na educação entre homens e mulheres tirou-as do mercado de trabalho e no século XIV o poder e a cultura já não estão mais ao seu alcance. Fortalecida com a exclusão das mulheres dos cargos de poder, a igreja uniu-se a uma nova classe, produto das cidades engendradas pelo comércio, os burocratas. Da aliança formada entre a igreja e tesoureiros, chanceleres e magistrados, surgem leis que proíbem a sucessão do domínio real pela linhagem materna, as mulheres perderam o direito de gerir seus bens e a independência econômica. A crescente extinção dos direitos das mulheres, principalmente pela via da educação e da divisão do trabalho, faz nascer nasce à contracultura feminina da resistência.

Tendo como únicas opções socialmente aceitas o casamento ou o convento, as mulheres passaram a se agrupam, muitas passaram a morar juntas e a trabalhar nas cidades. A igreja e a burguesia responderam a tal insubordinação com novas leis que, agora, as julgam “juridicamente incapazes”. Simultaneamente foram instituídos os julgamentos por heresia que, sob o pretexto de feitiçaria, tinham poderes sobre a vida e a morte. Durante o século XIII, período que foi instituída a inquisição, as mulheres que viviam sozinhas, ou em grupos, bem como as viúvas que recusavam um novo casamento, as solteiras ou separadas, eram as primeiras a serem acusadas de bruxaria e de “atacar a força sexual dos homens, o poder reprodutor das mulheres e de agir com o objetivo de exterminar a fé”. A inquisição dizimou milhares de mulheres, ela foi sendo extinta gradualmente, no decorrer do século XVIII, mas a sua essência original que era a guarda da pureza e da fé. No século XVI a “normatização” prosseguiu e, amparados na antiga ideia romana de fragilitas sexus, foi decretada a morte civil das mulheres na família e na sociedade.

O enclausuramento no seio da família era o destino da mulher do século XV e XVI. Elas só podiam agir com autorização do pai ou do marido e qualquer ação sem tutela era considerada judicialmente nula. A ética burguesa apoiava-se na ideia de que lugar de mulher era em casa, dedicando-se as funções domésticas, essa mentalidade gerou a filosofia de que as mulheres não indivíduos, cidadãs do estado nacional. As produções científicas e artísticas realizadas por mulheres desse período eram assinadas por seus pais, maridos, irmãos, que passavam a ter direito sobre a produção. Os séculos XVII e XVIII a economia passa a se basear na indústria, ancorada na exploração colonial e na guerra. A condição das mulheres degrada-se ainda mais, principalmente a das mulheres dos países pobres. A valorização da produção faz com que estas sejam julgadas como “ociosas” e portanto tornam-se objeto do desprezo masculino. A invenção de novas máquinas acelerou a divisão do trabalho restando as mulheres empregos cada vez mais mal pagos. Tais condições geraram no século XVIII vários movimentos de resistência feminina no mundo. As bas bleus animavam os salões literários da Europa, na América as quakers, muitas delas foram enforcadas, na França as salonnières ganharam celebridade, e passam a se agrupar em associações que foram o berço do movimento feminista.

No século XIX as mulheres se tornaram uma potencia produtiva doméstica e não-mercantil. As mulheres pobres produziam em casa artefatos que eram vendidos no mercado e as da burguesia, esposas de executivos e multinacionais, exerciam gratuitamente o papel de um empresário bem pago no setor mercantil. Essa mão de obra “não-remunerada” e a exclusão feminina do mercado de trabalho davam aos operários seguridade, as mulheres eram prisioneiras da família. As mulheres do século XIX “constituíram uma importante vanguarda dos movimentos sociais participando das doutrinas e movimentos revolucionários”. Em 1848 o movimento feminista desbobrou-se em muitas direções o que desperta uma forte onda anti-feminista que atingia os sindicatos masculinos que lutavam para que as mulheres não tivesse acesso ao mercado de trabalho, eles contestavam as lutas das operárias chegando a fazer greve quando mulheres eram contratadas, eles exigiam “a supressão do trabalho feminino” e, segundo M. Guilbert,“o problema se colocava idêntico em todos os lugares”. A resistência feminina continua gerando nos homens profunda indignação, não podendo deter o avanço feminino, os partidos políticos sexistas, criaram legislações para limitar a sua atuação e o seu tempo da mulher no mercado de trabalho.
Renata Bomfim

A literatura portuguesa em foco: Entrevista com a profª Drª Ana Luisa Vilela/ Évora-Portugal

 

Amigos, realizei esta entrevista, em 2010, com a profª Drª Ana Luisa Vilela, do Departamento de Linguística e Literatura da Universidade de Évora/ Portugal. Deixo registrado o meu agradecimento a Ana Luisa pela  prontidão com que aceitou o meu convite e pela gentileza que permeou todo o processo. Vale a pena relembrar. 

1- Como a Sra. avalia o cenário e perspectivas do ensino de literatura (mestrado e doutorado) em Portugal?

Estou sinceramente animada, Renata: há muita gente apaixonada por Literatura, com vontade de a estudar mais profundamente, de ler mais e melhor. Muitos dos alunos de mestrado são professores de Português do ensino secundário (no Brasil, ensino médio); mas outros vêm de outras áreas, talvez procurando na Literatura um complemento da sua formação, um domínio que lhes falta… Nas universidades públicas portuguesas, os cursos de mestrado são em maior número, já, do que os cursos de licenciatura! Por um lado, não são excessivamente caros, nem longos. Por outro lado, como as licenciaturas em Portugal, conformes à célebre “Declaração de Bolonha”, são agora todas de 3 anos (e não de 4 ou 5 anos, como eram dantes), os mestrados vulgarizaram-se. E como o desemprego também grassa por aqui, continuar os estudos é uma opção de cada vez mais recém-licenciados… O número de inscrições em cursos de doutoramento também tem, evidentemente, aumentado. Mas ainda é substancialmente menor do que o dos mestrados.

2- Quais as linhas de pesquisa que tem se destacado e quais os diálogos que os estudos literários tem ensaiado e/ou consolidado com outros campos do saber?

É engraçado você perguntar-me isso, Renata, justamente quando acabo de chegar de um congresso de da Associação Internacional de Literatura Comparada (em Seul, na Coreia do Sul), que teve como tema “Expandindo as fronteiras da Literatura Comparada”!... A LC sempre foi provavelmente o campo mais vasto e mais deliberadamente interdisciplinar dos estudos literários. Imagine quando se pede a investigadores de todo o mundo que reflitam sobre como “expandir” esses limites tão amplos e tão flexíveis!...
Bem, a nível global, teremos mesmo de apontar a inevitável miscigenação (ou fertilização) da Literatura com os Estudos Culturais, os estudos sobre literaturas ditas “minoritárias”, os Estudos de Tradução; em complemento à globalização, ganham preponderância a redescoberta e a revalorização das culturas e literturas dos países emergentes, assim como as das questões ambientais, da Natureza e da tecnologia, da raça, género, etnia, cultura, identidade e alteridade, ideologia, ensino, religião, conflitos e sua mediação… Cruzemos ainda a velhinha noção de Literatura com a chamada “Idade Hipertextual” – e temos um quadro estonteante de perspetivas e diálogos!


3- A Sra é pesquisadora da poesia dos séculos XIX, XX e da poesia contemporânea. Quais poetas a Sra destacaria em cada um destes períodos e por quê?

Os maiores, canónicos e mais justamente lidos: Cesário Verde, Camilo Pessanha, António Nobre, Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner, Eugénio de Andrade, António Ramos Rosa.
Os que merecem ser mais lidos: João de Deus, António Feijó, Gonçalves Crespo, Eugénio de Castro, José Régio, Albano Martins.

4- Quais aspectos da obra de Eça de Queiroz estão sendo pesquisados pela Sra?

Bem, ando às voltas com a edição crítica d’O Mistério da Estrada de Sintra. Recentemente, tive de estudar mais a sério a vertente “político-ideológica” do Eça e fiquei assombrada. Mas aquilo que mais me atrai, ainda, e sempre, é a forma misteriosa como Eça representa e como magicamente provoca no leitor a sensação “física” do real: a hipotipose. Palavra estranha (parece nome de doença!) mas que designa uma coisa que todo o leitor do Eça reconhece nos seus textos – a impressão que eles dão de serem “realidade viva”. Esse é para mim o mais fascinante traço da escrita queirosiana.

5- Como a Sra avalia a recepção da obra de Florbela Espanca hoje, e o que destacaria como sendo seu legado à poesia produzida por poetas que a sucederam?

A recepção de Florbela é um grande desafio para a crítica académica: continua pujante; é impossível ignorá-la; Florbela é uma escritora hiperpopular; mesmo que o público nada mais conheça dela, conhece-lhe o nome, a pose, a lenda. Essa popularidade de “star” terá feito dela, postumamente, um poeta “de massas”. Irá essa popularidade canonizá-la? Não sei. Sei que ela talvez exija que Florbela ocupe um lugar maior no cânone – mesmo concedido de má vontade, com escrúpulos académicos e teóricos, com dúvidas, com desconforto…
É difícil avaliar o “legado” de Florbela: ela não terá sido propriamente uma precursora, sobretudo a nível técnico-formal. Tematicamente, inovou, sim: com o seu pendor narcísico, um erotismo por vezes escancarado e vulcânico, por vezes místico e sublimado, uma sentimentalidade torrencial, um culto do excesso. Quem “influenciou”? Diria que nenhum autor; mas todos os leitores, sim. Todos aqueles que a leram aos quinze anos. A energia terrível da adolescência está lá toda, nos versos dela, e nós amamo-la por isso. Nunca nos “curamos” de Florbela: ela é, exatamente, incurável. Como nós.


6- Professora, no Brasil, imagino que também em Portugal, existe uma profusão de estudos acerca da obra de poetas como Fernando Pessoa, Camões, Saramago, Eça de Queiroz, escritores estabelecidos pelo cânone. Em sua opinião há ainda algum escritor dos séculos XIX e/ou XX que tenha sua obra pouco estudada e mereça maior atenção por parte dos pesquisadores?

Renata, não é fácil escolher, porque, feliz ou infelizmente, há muitos bons escritores que valeria a pena estudar mais. Mas mesmo assim arrisco dois nomes (além do de Florbela!) – e um é do século XVIII, desculpe:
- Matias Aires (1705-1763), aliás luso-brasileiro, ensaísta brilhante e teorizador sobre a vaidade, as mulheres e o amor;
- e Raul de Carvalho (1920-1984), poeta alentejano que eu, ignorante, só descobri há pouco tempo, e na obra do qual - em versos por vezes fulgurantes, por vezes banais – há uma quase sempre uma poderosa “energia expressiva”, parecida até certo ponto com a da também alentejana Florbela.



ANA LUÍSA VILELA
Professora de Literatura Portuguesa na Universidade de Évora. Ensina e investiga nos domínios da Literatura Portuguesa dos séculos XIX e XX (sobretudo Eça de Queirós, Florbela, Torga, Sophia, Agustina) e da Literatura Comparada (Literatura e Arte, Imagologia e Estudos sobre o Imaginário).

Alquimia (Renata Bomfim)

 

Teu corpo nu,
o primeiro aprendizado
sobre ti.
observo, sondo-cheiro, lambo,
tateio, sorvo-mordo, sonho
com os olhos abertos.

Cores, texturas, reentrâncias.
Marcas encharcadas de memórias.

O teu corpo nu,
rio de palavras que apenas fazem sentido
quando deságuam
nas águas do meu corpo nu.
Crescemos em volume e dizeres.

No fundo de nós o intraduzível.
No âmago, a transmutação.

Eis a matéria bruta
transformada em ouro,
divinamente conjugada.

Respondemos juntos pela vida!

(24-11-2019)

 

O corpo está sendo preparado (Renata Bomfim)

 

 

O corpo está sendo preparado:
Nutrido,
Lavado.
Embebido em óleos naturais
E perfumados.

Enfim, a morte será anfitriã
no banquete dos vermes.

Ressurreição (Renata Bomfim)

 

Crucificaram o Senhor,

Agora tentam esquartejá-lo

Dentro do meu coração.

Senhor serei, nesse momento,
A pedra sobre a qual jaz o teu corpo,
Unirei as tuas partes
Como um dedicado mosaicista bizantino.

No grande dia, Senhor,
Quando os corpos se tornarem
Perfeitos e luminosos,
Lembra-te de mim.

Dá-me a graça de ver
A tua face emoldurada pelo infinito,
Dá-me um vestido de estrelas e
Um novo tempo onde a Dor não exista.

(04-09-2018)

 

Se eu morresse hoje (Renata Bomfim)

 Se eu morresse hoje,

Teria valido a esperança da eternidade.
Descansaria afinal.

Ah!  Poemas de linhas frágeis
Entremeados por dissabores e esperanças,
Tão desalinhados e imperfeitos.
Se eu morresse hoje não haveria
Arrependimento do orgulho de ser
Esse ser que inventa a si mesma
Arrancando, da pedra, sons de lira.

Teria valido o momento impreciso e fugaz
Da explosão da beleza,
Quando a flor se abre para ser beijada pela abelha.
A floresta desperta entre vapores mágicos,
Do silencio secular de uma noite.
Teria, sim, valido cada minuto vivido
Entre os teus braços.

Se eu morresse hoje, seria a lembrança
De poucos que me amaram realmente.
Seria eternizada na memória de seiva das árvores,
Minhas filhas mais amadas.
O meu corpo descansaria, afinal,
Depois da jornada de muitas vidas.



Laços (Renata Bomfim)

 

Envolventes fios de tempo entrelaçados,
Canduras e agonias que nos exasperaram,
cânticos e ruídos infernais em sintonia.

Não estamos mais aqui e nem agora,
mas estaremos sempre em algum lugar.