17/04/2022

A poeta Renata Bomfim (por Ester Abreu Vieira de Oliveira)


Renata Bomfim é autora de livros e artigos, nasceu na ilha de Vitória, capital do Espírito Santo (Brasil), no dia 21 de novembro de 1972. Pertence à Academia Feminina Espírito-santense de Letras e foi presidente na gestão de 2016-2018. Graduou-se em Artes Plásticas, Mestra e Doutora em Letras, pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Especializou-se em Psicologia Analítica Junguiana; Arterapia na Saúde e na Educação e em Psicossomática. Desde 2007 integra o grupo de pesquisa do CNPq intitulado “Aproximações Regionais: Alentejo Português e Nordeste Brasileiro” – Florbela: romanceiros e romance sergipanos pela Universidade de Sergipe. Gestora cultural e educadora socioambiental com foco na sustentabilidade. Suas obras poéticas: Mina (Vitória, Helvética […] Editora, 2010), Arcano Dezenove (Vitória, Helvética […] Editora, 2015), Colóquio das Árvores (Chiado Editora, 2016) Coração de Medusa (Editora do Autor, 2021), iniciam e terminam, com prefácios e posfácios, verdadeiras críticas literárias, nas quais o leitor não pode deixar de ler para mergulhar no “coração” do “eu lírico” que assim explica em Coração de Medusa (p.95): “O coração que pulsa,/ O corpo que vibra, a despeito/ Da dor, da dor, dor… e do medo!/ Meus poemas são, todos eles.”. Logo, sua “verdade”, está em sua poesia, em seus versos, na comunicação que estes estabelecem. 

 

Em todas as quatro obras o “eu lírico” valoriza a arte de escrever. Exemplo é o poema “Exílio” (p. 171), dedicado ao escritor Francisco Aurélio Ribeiro, em Colóquio das árvores, quando o “eu lírico” declara o seu desejo de escrever: “No Oceano povoado,/ Por letras, acentos e velas,/ Busco a folha em branco./ Terra firme onde a palavra,/ Insurrecta, prospera.”


 

Em Arcano dezenove, no poema 1- “Despertar” (v. 25-29, p. 21) e no poema 2- “Poemas” (v 1- 7, p. 22) a autora emprega a palavra “ritmo”

 

1 – Desperta tudo que dormita:

     Emoção, mímica, interjeição…

     Transita no ritmo

     Explode e goza num grito

    Poesia!

 

2 – As letras que, amorosamente,

      coloco sobre o papel

      não fazem o poema e o 

       ritmo embalado

       que se alterna em toques 

      não lhe confere musicalidade.

     A minha pena guarda segredos [….]

 

O “eu lírico” reconhece que o ritmo é um trânsito para a expressão poética. Ele só não basta para o texto integrar-se com a linguagem poética. É necessário haver uma articulação sintática e semântica na configuração rítmica e melódica para o poeta chegar à metáfora do sentimento, sem preocupar-se com a precisão conceituosa como faria um filósofo. Porque o poeta busca a imagem adequada para expressar o sentimento que imperará em seu texto. A metáfora é a sua arma expressiva: “Explode e goza num grito/ Poesia!” (ex. acima 1). E a poesia que “explode” é a bela interpretação que surge para apresentar o estado espiritual do “eu lírico”, expressado numa expressão autêntica de uma iluminação da existência humana no universo, guardada no silêncio da alma: “A minha pena guarda segredos.”  (ex. acima 2).

 

Agustín Basave Fernández del Valle (2002, p. 28) conceitua a poesia como linguagem rítmica, que emociona e agrada com significado existencial pleno: “La poesía es lenguaje rítmico, selecto y cautivante de lo emotivo, vertido bella y metafóricamente, em plenitud significativo existencial”.

 

De uma maneira geral, muito se tem procurado em prosa e verso conceber a poesia e se pretende que é alguma coisa que ao ouvido agrada, dá prazer estético, respeita os limites do espectador, exige distância e convida o olhar para uma comunhão acalentadora. Chega-se sempre à conclusão de que é uma bela interpretação da vida do homem, quer seja espiritual ou moral. Logo, sua essência é a manifestação semiótica que mana e dá prazer bom ou mal ao leitor.

 

Octavio Paz (1982, p.50) esclarece que “O poema nos revela o que somos e nos convida a ser o que somos.” 

 

O leitor encontrará nesse quarteto de obras de Renata Bomfim uma interferência de valores e de experiência de vida. Um descobrir do mundo ao redor, como quando o “eu lírico”, no poema “Irmandade”, em Mina (p. 17), confessa seu desejo de integração:

 

[…]

Há forças que não podemos explicar.

Elas fazem com que nos juntemos

e queiramos estar

no desejo do outro

e desejemos ser o outro,

bebendo da fonte e brotando da terra.

Um outro tão espe(ta)cular

e próximo que bem

poderia ser nós mesmos.

 

Em Mina, Renata reúne 89 poemas, colocados em três sessões poéticas (“Na Lavra”; “Arrebentação/ Explosão”; “Deslumbramento” e “Lapidação”), que vêm acompanhadas de epígrafes com textos de: Walt Whitman, Hilda Hilst, Charles Baudelaire e Freda Cavalcante Jardim, respectivamente. Nessas seções há teceduras de desejos, solidão poética, paixão e abandono. Há erotismo, a despeito de tabus, na procura de eternizar um momento, em “Encontro” (p. 82): “[…] Mas o divino acontece/ e nossos eus se tocam/ Eis o que acredito ser/ o milagre da vida” 

 

A autora relaciona mitos, por exemplo, o de Penélope e Pandora, em “Tecendo a espera” (p. 103), numa busca de sonhos que crescem e se desfazem (“lei do ofício de tecer”), mas há uma esperança afinal, “mudanças acontecem”. Lamenta a morte de um animal de estimação “Minha Lili” (p.135) e uma amiga “Canção para Frida Kahio (p. 133), e cita e parafraseia Fernando Pessoa em “Mentiras sinceras” (p. 85-96): “Eu finjo e minto sim!/ Finjo ter o que não tenho e/ ser a pessoa que não sou”, e ou mencionando os “fingidores”, os poetas: Pessoa, Nobre, Hilda, os irmãos Campos, com a assistência de Pignatari. Além desses poetas, faz referências a outros: Juan Ramón Jiménez, Drummond, Cabral e Adélia Prado, comprovação de que é uma leitora sensível e intelectual. 

 

 Em Arcano Dezenove, com perto de noventa poemas, oito epígrafes como uma forma de dizer mais, que abordam o social, o político, o literário, o meio ambiente, o religioso, o folclórico, o feminino e o erótico, a poeta torna a mostrar uma pessoa sensível, culta e cultivadora de uma sincera amizade, e dedica-o a “todas as pessoas que acreditam”. Com o poema “Cicatriz” (p. 37) a autora retrata o estigma do feminino, desde a origem do mundo, destinada a mulher ao cotidiano trabalhar e a ser desrespeitada.

 

Nos subtítulos, isto é, nas “partituras” (“Memória”, ‘Quintessência”, “Transição”, e “Rituais”)  os tempos se encontram.

 

Toda a obra envolve o leitor numa atmosfera de paz. O título tem como base a numerologia e o tarô. Na obra há um direcionamento para uma “desnudes“ do conhecimento de um mundo transformado, recriado e purificado pelos símbolos. Nas marcas da emoção e nas imagens, a poesia surge: “Desperta e ama o sabor filosofia!/ Desperta tudo o que dormita:/ Emoção, mímica. interjeição…/ Transita no ritmo. Explode e goza num grito:/ Poesia!”. (“Despertar” v. 23-28, p. 21)

 

No “Poema adâmico”, abertura de Arcano Dezenove, surge o tema da criação poética, numa analogia com o Mito do Paraíso. Assim, Adão, o mito bíblico que nomeou os seres, serve à autora para fazer uma analogia com o fazer do poeta e sua criação mediante a palavra: “No paraíso da linguagem/ O poeta com desvelo/ Inclina-se para amar a letra” (v 1-3). Com esse subterfúgio o “eu lírico” parafraseou poeticamente a história do livro do Gênese para ilustrar a sabedoria, o conhecimento da significação que o leitor poderá encontra em Arcano 19, no “Poeta Adâmico”:

 

No paraíso da linguagem,

O poeta, com desvelo, 

Inclina-se para amar a letra. 

Nesse momento, ele é Adão,

Ansiando companhia, à espera

De que a fêmea se submeta.

Cometidos os pecados,

Do outro lado, a pena:

“Ganharás o pão com trabalho, 

Com o suor de tuas mãos,

E também, com teus pulmões, 

Rins, fígado e coração.”

O homem se pega em desatino,

A sua vida será labor e sacrifício, 

Mas estava escrito:

Havia de ser assim

Para que pudesse seguir nomeando 

As coisas e povoando a terra

Com Abeis e Cains. (p. 17)

 

A autora, em “Poesia vegetal” (p. 81), com a metáfora do renascer da primavera, apresenta o sentimento poético do recôndito da alma que “desperta trazendo consigo/ coisas antigas que durante séculos/ foram silenciadas”. Com apoio de folclóricas receitas ela se vale de vegetais miraculosos, salvadores da fortuna, do espírito e dos males corporais, que atendam a orações, e recorda pedidos arcaicos; relembra a ajuda de plantinhas em benéficos banhos, que, auxiliados pelos eflúvios da erva medicinal e os delicados raios lunares, reorganizam a vida do outro, em “Banhos de limpeza” (p. 77): “Os caminhos se abrirão/ o olho gordo cairá por terra/ tua sorte voltará/ tudo isso com um banho,/ ou melhor, sete banhos”. O poema “Filtros mágicos” (p. 76) serve ao “eu lírico” de subterfúgios poéticos da técnica de conselhos, semelhante os de benzedeiras, para estimular a preservação do ambiente. 

 

[…]

Pegue uma ervinha brejeira,

catuaba ou coentro.

Besunte no mel e depois

enrole em seu lenço de algodão

Diga: “Ervinha poderosa e amiga,

faça “fulano “(diga o nome da pessoa)

se entregar aos meus caprichos”

Repita a frase três vezes

enterre o lencinho na praia

e espere …

 

Renata, em Arcano Dezenove, esmiúça a carta do tarô com uma força mágica interior em uma significativa extensão e, no poema “Arcano dezenove” (p.35), se despe. Eroticamente, o “eu lírico” vai se transformar em “cálice” (v.12) receptor do amor, do cosmo: “Te sinto mistério maior/ Quasares, buracos negros, estrelas/ tudo, tudo, tudo me leva a ti” (v. 24-26) e, diante da beleza e mistério da natureza, com sinceridade poética, se entrega, e se reveste de “lírios” e “lilases” (v. 21-22). Nesse momento vai nascer, ou renascer, em toda a sua intensidade. 

 

Como nas outras obras de Renata, também, em Arcano Dezenove perpassa sua integração com a natureza que se realiza com profunda intensidade. Viver o impulso vegetal é sentir no universo a força que desprende do vegetal e sentir-se sereno. No poema “Nossa Senhora dos raios multicoloridos” (p. 27, v 17-18), o “eu lírico”, humildemente, declara sua interligação poética: “Meu canto, aprendiz, foi marcado/ pelo ritmo da natureza”. No poema “Terra’’ (p. 72), indica a totalidade de seu amor pelo meio ambiente: “Amo a Terra/ Das entranhas ao infinito/ e os seus arabescos/ Conflitantes/ Divinamente pintados”, e em “Semear”, apresenta a sua preocupação ecológica e oferece conselhos: “Não despreze a natureza,/ Não pise na grama,/ nem arranque a flor. […] Semeie, plante, cultive:/ amizades, flores, árvores, idéias de luz./ Plante e acredite/ Sem fé, amigo, nada germina”. (p. 72, v 1-11).   

 

Em “Pos Mortem II” (p. 39, v. 11-14), com o tema da frustração, o “eu lírico” se desnuda num auto-retrato, (como num confessionário): “E amei, amei… não o suficiente, mas/ o bastante, se é que isso é possível./ Não fui mais porque não quis/ nunca pensei no amanhã”. 

 

Despojada da linguagem a autora vai dando consistência ao império dionisíaco e, com força mágica, vai dominando a atenção do leitor e, com ritmo que infunde vida, num jeito especial de escrever, vai brincando com os signos e ensinando-nos o amor à vida e deflagrando sua vida interior, que é o erotismo, segundo George Bataille, “[…] o desequilíbrio em que o próprio ser se põe conscientemente em questão”. (1987, p.29). 

 



Em Colóquio das Árvores, entre escritores, mitos, cidades e patriotismos, transbordam preocupação pelo meio ambiente e amor à natureza, como o título e capa já revelam na cor e na imagem e a doação do produto das vendas da obra, revertido para a reserva Reluz, dentro da Mata Atlântica, projeto de proteção ambiental de Renata e seu esposo Luiz.  Mas há, ainda, claramente o objetivo de estímulo à leitura, e de amor aos livros e às artes, pois além da citação a escritores, a dedicatória é um estímulo à leitura, e a constância de apresentação de epígrafes. A primeira, na introdução da obra, antes da dedicatória ao leitor, traz versos de Rubén Darío, escritor nicaragüense, com o tema da sacralidade da terra, e a segunda epigrafe, surge antes de uma citação bíblica de Lucas 19:40,  “Se estes se calarem, as pedras clamarão”,  com, o poema  “O grito da Rosa”, com o tema da necessidade de protesto, com o tema do desejo de liberdade, com palavras de Syvia Plath, escritora norte-americana, e, na página seguinte, ainda na introdução da obra, se encontra uma dedicatória a sua amiga, ex professora sua e artista plástica, Freda Cavalcanti Jardim, e a Luz Del Fuego, a capixaba e artista brasileira, pseudônimo de Dora Vivacqua. À continuação seguem poemas quase coloquiais e, entre a literatura e o folclore e os mitos, exemplo é o poema “Enciclopédia das plantas” (p.209, louvando as vantagens do alecrim, da alface, da arruda., da trepadeira, do bambu e, por  último da beladona:

 

[…]

A beladona é uma moira que corta o tempo

Sem piedade com a sua tesoura, mas

Antes brinda o ser com sonhos lascivos e

delirantes.

Era a planta rainha dos Sabás das feiticeiras. 

 

Coração de Medusa, obra bilíngue, português/espanhol, traduzida pelo poeta espanhol Pedro Sevylla de Juana, creio que a mais resenhada de suas obras, surge num período da pandemia da covid 19. O poema “O coração da Medusa” (p. 21), que dá nome à obra, trata da entrega amorosa e da consumação do ato da entrega “A volúpia eternizada/ numa estátua de carrara”. Esse mito se repetirá em outros poemas. Em “O silêncio da Medusa” (p. 47 “Incompreendida, só,/ mal vista e mal dita, / Medusa guarda silêncio,/ já não necessita das palavras/ A pedra é consolo e guarita.” O erotismo exala no terceiro poema desta obra, com 17 versos, na maioria, heptassilábicos. Esse poema dá nome à obra, “O coração da Medusa”, p. 21, mas não a representará em sua temática, pois esta é muito variada. O poema relembra uma obra de arte da mítica figura de Medusa: “A volúpia eternizada/ numa estátua de carrara”. (v. 16-17). 

 

Nessa obra se intensificam poemas eróticos e o aproveitamento dos mitos, já ilustrados nas obras anteriores, e se adentra na temática do feminismo, na valorização da mulher, na transformação da mulher e da importância da escritora que mergulha os dedos “no abismo do tinteiro” (p. 23),  constrói “castelos com palavras” (p. 42), e  impulsa a outras mulheres a escrever, a modificar-se: “A sua pena traçou a minha sina” “[…] se minha avó me visse agora, /Quanto orgulho teria da sua linhagem,” (p. 23). Também surge na obra aumento da indicação de mitos femininos: Circe, Penélope, Medeia, Salomé, Cleópatra, Medusa, Eva, Lilith e se acrescentam mitos literários: Florbela, Beatriz, Renata, ficcionada,  mitificada: “[…] Florbela e Renata./ A nova Eva, desbocada e louca,/ traz no céu da boca o mel, o fel” (p. 18). 

 

A obra se divide em quatro partes, todas com epígrafes: 1- “Canto iniciático”, a epígrafe são versos de “Piedra del Sol” de Octavio Paz, seguidos de dez poemas; 2- “Queda”, a epígrafe é formada de  versos de “Prelúdios-intensos para os desmemoriados do amor” de Hilda Hilst, seguidos de dez poemas; 3- “Ascensão” com a epígrafe de versos de “Canto Cômico” de Hernesto Cardenal, seguidos de onze poemas; 4 “Outros poemas” não consta epígrafe, mas uma nota da autora explicando como  e o porquê foram gerados e fazem parte do livro. Era como se a autora tivesse necessidade de um dizer mais de um desejo de “[…] ressoar a voz serpentina da Góngora” [… e que ] Foi entretecido nas sombras de mim mesma, fio a fio… cada ponto uma busca, cada busca uma surpresa, um vazio, uma saudade, uma esperança: medusa é a sombra de Penélope” (p. 98). Os sete poemas desse acréscimo são construídos por subdivisões.

 

O poema “Litania à serpente ou a nova gênese” (p. 17-18) dedicado às “mulheres desse novo mundo”, com 17 versos, apresenta um valor emotivo, sensorial em estado abstrato. Os olhos maravilhados, espantados, do “eu lírico” assiste a um encontro  sigiloso do mundo e deseja renová-lo, e aumentar o amor, livrar-se “da luz que cega e separa” ( v.24):

 

O mundo,

Nave? Claustro? Túmulo?

Espaço vazio e nulo,

esteriliza pelo horror, o absurdo.

[…]

Preciso repovoar o mundo,

dar novos nomes a tudo e,

para Eros, missão precisa:

flechar a si mesmo!

 

Em fim, nas obras poéticas de Renata Bomfim, Mina, Arcano Dezenove e O coração de Medusa, ela busca envolver o leitor apontando seus sentimentos sociais, morais e culturais. Ali se encontram as admirações e inquietações do “eu lírico”, nas recriações da vida.

 

REFERÊNCIAS

 

BATAILLE, George. O erotismo. Tradução de Antônio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM, 1987.

 FERNANDO DEL VALLE, Agustín Basave. ¿Qué es poesia? Introducción Filosófica a la poesía. México: Fondo de Cultura Económica, 2002. 

BOMFIM, Renata. Mina. Vitória: Helvética Produções Gráficas e Editora, 2010.

——. Arcano Dezenove. Vitória: Helvética Produções Gráficas e Editora, 2015.

——. Colóquio das Árvores. São Paulo: Chiado Editora, 2016.

—— Coração de Medusa. Vitória: Editora do Autor, 2021.

PAZ, Octavio.  O arco e a lira. Tradução de Olga Savary. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1982.

 

 

ESTER Abreu Vieira de Oliveira, professora Emérita da  Ufes, atua nas áreas literárias de teatro, poesia e narrativa das Literaturas brasileira e hispânica, com publicações de tradução, poesia, ensaio, crônicas e livros infantil e didático.  Nasceu em Muqui. É Doutora em Letras Neolatinas (UFRJ), Pós-doutora em Filologia Espanhola – (UNED – Madri- ES), mestre em Letras-Português (PUC-Paraná).  Pertence ao Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, à Academia Espírito-santense de Letras, Cadeira 27, atual Presidente, à Academia Feminina Espírito-santense de Letras, Cadeira 31, e a outros segmentos culturais e literários do Brasil e do exterior. Recebeu várias homenagens e prêmios por sua atuação profissional, inclusive o nome do prédio do Centro de Língua para a Comunidade da UFES recebeu o seu nome. Participou de organizações de obras literárias e de congressos estaduais, nacionais e internacionais, e tem várias participações em congressos no Brasil e no exterior.

 

Texto publicado na Revista Incomunidade


01/04/2022

O dia que recebi a Comenda Paulo Vinha. (Renata Bomfim).



No dia 29 de março de 2022 fui agraciada com a Comenda Paulo Vinha, na Assembleia Legislativa do ES. Essa homenagem foi proposta pela Deputada estadual Janete de Sá, que milita há muitos anos em prol das mulheres. Era para eu receber a Comenda Maria Ortiz, uma honra, visto ser essa personalidade capixaba a primeira heroína do Brasil. Mas, ao analisarem mais de perto a minha biografia e percurso de trabalho, viram que, mesmo tendo ações de entrega em prol da causa feminina, seja por meio da militância política ou da pesquisa e docência, a causa ambiental é o meu destino e missão, fazendo com que  tudo o que faço, como um rio, desague na Mata Atlântica brasileira. Enfim, foi assim que numa noite linda de homenagem às mulheres capixabas que trabalham em prol do social, eu fui a única receber a Comenda Paulo Cesar Vinha, que foca no ambiental. 

Na imagem acima vemos o Deputado Luciano Machado, Renata Bomfim, a Deputada Janete de Sá e Luiz Bittencourt. 

Comenda Paulo Vinha.

Nem tenho como descrever a emoção desse momento. Nem me acho tão merecedora, mas não vou me fazer de rogada, essa generosidade foi um afago no meu coração, e as delicadezas são bálsamos que nos ajudam a continuar persistindo na luta, mesmo em meio a um cenário caótico, desgraçadamente impregnado pelo ódio e pela maldade. Ser mulher militante na causa ambiental é um desafio diário, estamos ocupando, na garra, espaços historicamente considerados masculinos, mas não desistimos, nada é nos dado de graça, tudo vem com muita luta e resistência!

Paulo Cesar Vinha, ambientalista brasilelro nascido no Espírito Santo, foi assassinado em 1993 por defender a natureza, a restinga era a sua vida. Hoje, o Parque Estadual Paulo Cesar Vinha não nos deixa esquecer que existem pessoas assim, seres humanos capazes de atos extremo de doação de si mesmas, seus codinomes são Coragem e Coragem.

Não podemos esquecer que o Brasil é um país que lidera o topo do assassinato de ambientalistas e que essa realidade trágica precisa chegar ao fim. Não há romantismo algum em morrer, seja lá por que causa seja.  Não posso deixar de trazer à memória o nome de outra capixaba, a irmã Cleusa Carolina Rodi, que também foi assassinada defendendo a causa indigenista na Amazônia.

Poeta que sou, vários sentimentos galopam dentro de mim, um amor profundo que constantemente se choca com as mazelas da minha humanidade. Não é à toa que venho dedicando anos de estudo ao romantismo e aos poetas do amor: "amar, amar, amar amar siempre", disse Rubén Darío; "Eu quero amar, amar, amar profundamente", declarou Florbela Espanca. Acredito que não haveria outra vida melhor que essa para mim, ter o amor como meta e a floresta como fim.

Foi em 2013 que escrevi o poema "Fantasmas da Esperança", que se tornaria o centro do meu livro Colóquio das árvores, publicado em 2015. Agradeço ao meu amigo e tradutor Pedro Sevylla de Juana por tê-lo traduzido para o castelhano. Esse poema nasceu dedicado ao ambientalista Paulo César Vinha, por tudo o que ele representa para mim e para a humanidade.

Publico, também outro poeminha visual, em forma de globo, que se chama "Mi poema". 


1. Fantasmas de la Esperanza  


               En memoria de Paulo César Vinha.

Dejemos a Dios quieto
y vendimiemos las viñas de nuestra ira.
Suenen las trompetas
despierten las liras
pues, no existe un cielo además de éste que
conocemos y contaminamos.
Hombres, ¿hasta cuándo
la tierra será inundada
con la sangre de vuestros hermanos?
¿Hasta cuándo morirán indios,
negros, mujeres, niños,
bastardos y desempleados,
y la contratación de otros seres degradados?
¿por qué no somos capaces de percibir
que el rostro desfigurado
del hombre y de la mujer
sin nombre, sin casa y famélicos
es mi rostro y vuestro rostro, es nuestro rostro?
Por qué no aceptamos que
ese hombre y esa mujer son, también,
la flor que arrancamos,
el animal que asesinamos,
los árboles que dejamos abatir…
¿Hasta cuándo el cuchillo y el disparo
silenciarán las voces más esclarecidas?
Y que en el espacio de los árboles
se planten las sombras
de esas existencias olvidadas.
Murieron Paulo César Vinha,
Chico Mendes, Maria do Espírito Santo,
Dorothy, hermana querida,
murió José Cláudio Ribeiro da Silva,
defendiendo los castaños
y nuestra humanidad.
Muchos otros partieron también
traicionados por los suyos.
Ejército de vencidos
que se levantará un día
aún más fuerte, pues
existen cosas que no se pueden matar:
¡La Fe, la Esperanza, la Rebelión, la Justicia!
Es hora de inspirarnos
en los espectros de la esperanza, para que
las generaciones futuras puedan descansar, tener
aire, agua, espacio de existencia.
Nosotros nos perdemos en el laberinto
de la modernidad ourobólica,
construida con armas tecnológicas.
No tenemos, pero, seguimos buscando
alguien o algo que nos salve
de nosotros mismos.


2.



23/02/2022

RUBÉN DARÍO E O MODERNISMO HISPANO-AMERICANO.

 

Na medida em que investigamos a obra de Rubén Darío, nos deparamos com “retratos” do poeta nicaraguense fundamentados em materiais vários. Ao status latino-americano e transatlântico do poeta se juntam variados epítetos que destacam o seu valor como intelectual: pai do Modernismo, cisne de América, príncipe das letras castelhanas. Essas imagens figuram ao lado de outras como a do poeta boêmio, acomodado político, homem de muitas pátrias e sem nenhuma. Ernesto Mejía Sánchez (apud BLANDON, 2011, p. 10) esclarece que  “hoy que tanto se sobrevalora el ‘mensaje’ de cada poeta, Darío lo mismo nos puede parecer indigenista o españolista, hispanoamericanista, o panamericanista, poeta social o poeta esteticista. Para todos hay”. Durante muito tempo a critica biográfica se empenhou em fazer um “retrato” definitivo e acabado do poeta. E, erroneamente, buscando definir Darío, não percebeu que existia na sua obra um algo a mais que não se deixava apreender, que não podia ser capturada na sua totalidade, ou seja, que resistia à representação. Como destacou Harold Bloom (1995, p. 14), “um dos sinais de originalidade que pode conquistar status canônico para uma obra literária é aquela estranheza que jamais assimilamos inteiramente, ou que se torna um fato que nos deixa cegos para as suas idiossincrasias”. Essa “estranheza canônica” descrita pelo pensador se deve ao fato de a obra sempre manter o seu “aspecto inaugural” (BLOOM, 1995, p. 13).

A obra dariana é vasta e formada por um corpus complexo e fugidio às leituras reducionistas. Dessa forma, esse artigo aborda especificidades da escrita poética do bardo nicaraguense, destacando os movimentos que levaram ao movimento modernista hispano-americano e colocaram Darío como mentor intelectual desse movimento.

Octávio Paz (1969, p. 25) destacou que os modernistas “foram exagerados, mas não redundantes”, e que o movimento “jamais foi vulgar”. Eles recorreram à liberdade rítmica da estética romântica, submetendo-a ao rigor aprendido na França. Foram períodos de muitas experimentações e inovações. As riquezas dos ritmos modernistas nunca antes haviam sido vistas na história da língua espanhola. Esse movimento preparou terreno para que a poesia pudesse adentrar o campo do verso livre. Para Paz (1969, p. 27), foi o cosmopolitismo modernista que possibilitou aos poetas hispano-americanos inserções e diálogos com outras poéticas, experiências que possibilitaram a revelação da verdadeira tradição da poesia espanhola, a versificação rítmica: “A busca de uma linguagem moderna, cosmopolita, levou os poetas hispano-americanos a redescobrir a tradição hispânica”. Variadas temáticas e sentimentos deram forma ao discurso literário e poético modernista. A nostalgia da unidade cósmica é um sentimento permanente entre poetas modernistas, bem como a fascinação perante a pluralidade de formas nas quais essa unidade cósmica se manifesta. Essa forma de ver e de sentir o mundo, chamada sinestesia, consiste numa exasperação dos nervos, que é bem mais que um distúrbio psíquico, antes, é uma experiência na qual o ser participa por inteiro.

Na obra Los hijos Del limo (1993), Octávio Paz descreve a modernidade como sendo “uma suerte de autodestrucción creadora”, devido à ruptura que faz com a crítica do passado imediato e da interrupção da continuidade. O que Paz (1993) denominou “la tradicíon de lo moderno” encerra um paradoxo, o enfraquecimento da barreira que separa o antigo e o novo, o moderno e o tradicional, fazendo desvanecer os antagonismos, operações possíveis por meio da aceleração do tempo histórico. Dessa forma, a época moderna, que teve início no século XVIII, engendra aspectos como: “diferencia, separación, heterogeneidade, pluralidad, novedad, evolución, dasarrollo, revolución, historia”, nomes que podem ser condensados em apenas um: “futuro”. Paz (1990, p. 275) destaca que, embora Marx tenha sido acusado de “ceguera estética”, ele conseguiu antever que o mundo moderno, onde a poesía é marcada pela desmesura e que compreende “una sociedad que se desarrolla excluyendo toda relación mitológica con la naturaleza, relación que se expresa mediante mitos e que supone pues en el artista una imaginación independiente de la mitología”.

A modernidade tem como ponto de partida a obra do poeta francês Charles Baudelaire, materializada no livro As flores do mal. Walter Benjamin (2000, p. 7) considerou Baudelaire um ótimo modelo para explicar a modernidade, pois o poeta “se apresentou perante o público com códigos próprios, com regras e tabus próprios”. Os personagens descritos por Baudelaire trouxeram para o primeiro plano, na escrita, a condição dos sujeitos subalternos, os moradores anônimos da cidade, pessoas em trânsito, da terceira margem. O flâneur e o boêmio são alguns exemplos desses personagens baudelaireanos, eles não são autorretratos do poeta, mas “eus” que se permitem devanear e que se entregam ao prazer do olhar. Na modernidade, as camadas sociais são a matéria bruta das representações e o poeta, herói moderno, carrega a marca de Caim:

 

A maioria dos poetas que trataram de temas realmente modernos se contentou com temas estereotipados, oficiais ― estes poetas se preocuparam com nossas vitórias e heroísmos políticos. Mas fizeram-no, também, de mau-grado, e apenas porque o governo o ordena e lhes paga. Existem temas da vida privada muito mais heroicos. O espetáculo da vida mundana e de milhares de existências desordenadas, vivendo nos submundos de uma grande cidade ― dos criminosos e das prostitutas [...] prova que apenas precisamos abrir os olhos para reconhecer o heroísmo que possuímos (BAUDELAIRE apud BENJAMIN, 2000, p. 15)

A modernidade caracteriza, ao mesmo tempo, tanto uma época, quanto a força que faz com que ela se pareça com a Antiguidade. Esse é outro aspecto apontado por Benjamin, na obra de Baudelaire, para ilustrar este tempo onde as heroínas gregas Delfina ou Hipólita são modelos e a Antiguidade romana, inspiração (BENJAMIM, 2000, p. 18). Se Banjamin aponta caracteres da modernidade a partir do francês Baudelaire, Raymond Williams destaca na obra Cultura e sociedade, de 1969, que muitos escritores ingleses também se debruçaram sobre a questão do seu tempo, entre eles, os românticos Wordsworth, que escreveu panfletos políticos, Blake, que foi processado por sedição, Coleridge, que se dedicou ao jornalismo político e à filosofia social, Shelley, que fazia manifestos públicos, Byron, que participava ativamente de comícios e morreu como voluntário em uma guerra. Williams (1969, p. 54) destaca ainda que as atividades desses poetas não tinham caráter marginal, antes estavam em conformidade com a experiência que brotava da própria poesia, pois “essas gerações de poetas viveram o momento do surgimento da democracia e da indústria que estava promovendo transformações qualitativas na sociedade” e eram sentidas como coletivas e, ao mesmo tempo, pessoais. Eles não puderam ficar indiferentes à violência, aos movimentos políticos e aos impactos da Revolução Francesa. Dessa forma

As transformações de que tomamos conhecimento pela história foram, naqueles anos, experimentados na própria carne: fome, sofrimento, conflito, desajustamento, esperança, energia, visão, dedicação. O padrão de mudança não era algo que operasse à distância, tal como somos inclinados a estudá-la hoje; era, antes, o cadinho em que se fundia a experiência geral. É possível extrair um comentário político dos escritos desses poetas, mas isso não tem particular importância, [importa] acompanhar dos diferentes graus de ardor revolucionário que manifestaram [fruto do envolvimento desses poetas na tragédia de sua época] (WILLIAMS, 1969, p. 54).

Benjamin e Williams denunciaram em suas análises, a partir da obra de poetas emblemáticos, a sujeição da arte às leis do mercado, que se concretizaria no decorrer da modernidade e da vinculação entre aspectos da escrita e da política. Ora, percebemos que Baudelaire já imprime na sua obra caracteres que denunciam o universo dos colonizados. Ele descreve esse mundo dividido, e sua obra acabou se tornando uma base importante para o que depois seria reconhecido como o movimento Simbolista europeu e movimento Modernista Latino-americano.

Segundo Octavio Paz (1990), a modernidade se apropriou do saber, desde muito cantado pelos poetas ― o amor, a religião e a poesia ―, e os recodificou segundo seus interesses, especialmente por meio por meio do “imperialismo de lo particular” (PAZ, 1990, p. 135).

Baudelaire conspirou com a própria língua. Sua escrita foi um ato de violência. Ele introduziu a figura do conspirador na cena moderna como um herói trágico grego, retirou do poeta lírico a auréola[1]. Baudelaire registrou “a metafísica do provocador” e exclamou: “basta de tragédia” (BENJAMIN, 2000, p. 30).

Se a modernidade se apresentou como produtora de verdades, amparada pelo conhecimento científico, a Europa foi o lugar onde esse conhecimento e essas verdades foram legitimados. Escrita e política estão imbricadas, assim como Europa e América Latina, colonizador e colonizado. Algumas vezes, os latino-americanos são considerados aprendizes, segundo Bolívar, eles são “uma emanação da Europa”, pois, para se comunicarem, apenas possuem a sua disposição poucas línguas: as dos colonizadores:

 

Nós, os latino-americanos, apegamo-nos ao idioma dos colonizadores: São as línguas francas, capazes de ir além das fronteiras que nem as línguas aborígenes, nem as créoules conseguem atravessar. [...] De que outro modo posso [discutir com esses colonizadores] senão em uma de suas línguas, que é também nossa língua, e com tantos de seus instrumentos conceituais, que já são também nossos instrumentos conceituais? (RETAMAR, 1998, p. 16)

          Rubén Darío, em 1888, designou como “modernismo” as manifestações literárias que estavam surgindo na América hispânica. O vocábulo nomeou o primeiro movimento de língua espanhola nascido na América. O termo escolhido tem como referência o contexto de modernidade a que aspiravam os escritores hispano-americanos. Roberto Fernández Retamar (1989, p. 121) localizou “o mais importante período da literatura latino-americana” entre os anos de 1880 e 1920, a chamada “etapa magna”, a “idade de ouro”, a “modernidade ou universalidade”. O modernismo hispano-americano foi fundamental para a formação de uma lavra de escritores espanhóis como Antônio Machado, Ramón Del Valle-Inclán, Juan Ramón Jiménez, e ofereceu à literatura mundial “o primeiro grupo de escritores representativos” da América-Latina, entre eles Rúben Darío, José Henrique Rodó, Horácio Quiroga.

Rubén Darío é um caso patente de conspiração linguística, e sua poesia demonstra valores e ideias capazes de revelar o ideário do homem hispano-americano, como veremos mais à frente em poemas como “Caupolicán”, no qual o índio Toqui tem a sua coragem destacada. 

Rememoramos aqui a educação baseada na ideologia religiosa que Darío recebeu na infância, o fato de o poeta ter sido adotado e criado por parentes afeitos à leitura, e ligados ao militarismo, bem como a influência que recebeu do professor intelectual liberal Dr. Jose Leonard, que foi demitido por apregoar a liberdade de pensamento. Essas experiências produziram em Darío uma profunda transformação ideológica e espiritual: “¡pobre maestro Leonard! Incapaz de daño, alma de perla, corazón de excepción, flor humana” (BERNHEM, 1997, p. 17). O núcleo familiar e o entorno social, intelectual e político da cidade de León da época foram elementos que influíram de forma decisiva na construção da identidade de Darío, que abraçou a ideologia liberal:

... Yo contemplo

Que hoy es¡ nada más! tu templo

Un gran taller de indulgencias.

Y en un arrebato de entusiásmo grita:

¡Abajo la beatitud!

¡Abajo la aristocracia!

¡Abajo la teocracia!

Por toda parte resuena

De dulce cadencia llena

La voz de la democracia.

(DARÍO apud BERHEIM, 1997, p. 19).

            Vale ainda recordar que, ainda adolescente, Darío escreveu versos exaltados sobre o Governo. O poeta conquistou o espaço que ocupou, visto que a única educação formal que recebeu foi durante a infância e a adolescência, a sua formação secundária ficou incompleta e, depois disso, todo o seu percurso de aquisição do conhecimento foi adquirido informalmente, como autodidata. Foi por meio da educação que o poeta pôde, como jovem pobre, ocupar um lugar social. Os versos foram o seu passaporte. De acordo com Bernheim (1997, p. 58), Darío foi um dos primeiros intelectuais do continente que, além de proclamar que o índio é “fuente de originalidad e autenticidad”, aceitou todos os prejuízos possíveis na sua época ao assumir-se como “mestizo”.

As inquietações do poeta, especialmente, na juventude, encontram inspiração em Victor Hugo, de quem assimilou ideias e sentimentos de ordem social. O liberalismo de Rubén Darío levou-o a militar em prol da união Centroamericana e contra “soldados brutales e sanguinarios conculcadores de derechos ciudadanos, atropelladores de honras cívicas y forajidos legales de todo linaje” (ARELLANO; MEDINA, 2010, p. 8). Julio Valle Castillo é um crítico nicaraguense que defende um avivado interesse de Darío para com a política.

Darío escreveu sobre o jornal da União Centroamerica, do qual foi diretor. Observemos o fragmento de um artigo:

Venimos a ser trabajadores por el bien de la pátria, venimos de buena fe a poner nuestras ideas al servicio de la gran causa nuestra, de la unidad de la América Central. […] Seremos los que dirán al pueblo la palabra del entusiasmo. […] Al sentir que estamos bajo un viento de liberdad, nos vemos fortalecidos para nuestro trabajo por la patria. […] Pensadores: que en vez de las sombrías nubes que ha amontonado el separatismo, vuelem vuestras ideas vencedoras a los altos ideales, como águilas bajo relámpagos. ¡A la obra! (SEQUEIRA, 1964, p. 182).

A crítica demorou cerca de sessenta anos para se dar conta desse viés progressista da vida de Darío, abafado pela imagem do gênio inspirado, boêmio e alcoólico, resultante do processo de mitificação pelo qual ele passou.

            Observamos que Rubén Darío, ao lançar Azul..., em 1888, já criticava a moral da burguesia e explicitava as angústias modernas. De acordo com Jrad (2005), a literatura começou, a partir do modernismo, a se autorizar de modo alternativo e privilegiado a falar sobre política. José Enrique Rodó, escritor Uruguaio, escreveu a célebre frase em relação aos Estados Unidos: “Eu os admiro, mas não os amo”. A falta de afeição por parte desse crítico que fez com que na obra Ariel os ianques se tornassem Caliban, enquanto identifica a “nossa civilização”, a América Latina, com o espírito de Ariel. Obviamente, esse novo Caliban oferecia maior perigo (1998, p. 24). Em Azul..., Darío expressa por meio da sua poesia uma profunda reavaliação do papel do artista e da arte na sociedade.

            Prosas profanas y otros poemas, publicado em 1896, recuperou o conceito de poesia como busca da beleza, dedicando especial atenção para a questão da forma, características para as quais já haviam atentado os parnasianos e os simbolistas, cuja poesia era refinada e artificiosa e oferecia uma visão panteísta do mundo. Exemplifica essa postura estética o poema de abertura da obra, intitulado “Era un aire suave...”, que diz: “Era un aire suave, de pausados giros;/ El hada Harmonía ritmaba sus vuelos;/ e iban frases vagas y tenues suspiros/ entre los sollozos de los violoncelos” (DARÍO, 2011, p. 292). Assim como os mestres franceses admirados por Darío, ele juntava à poesia o hábito boêmio do álcool. A técnica encontra-se valorizada e é representativa da época, na qual emerge o novo século com suas máquinas maravilhosas. O esteticismo acrático era uma forma de afirmar o caráter da arte na poesia, e como definiu Darío no prólogo da obra em questão: “¿Y la cuestión métrica? ¿Y el ritmo? Como cada palabra tiene una alma, hay en cada verso, además de la armonía verbal, una melodía ideal. La música es sólo de la idea, muchas veces” (DARÍO, 2008b, p. 29). Essas declarações de Darío explicitam a evocação de uma liberdade radical para o fazer poético, rechaçando a rigidez das escolas literárias.

O tempo de experimentação inaugurado em Azul... é afirmado em Prosas profanas y otros poemas, onde Darío busca a musicalidade do poema, emprega variadas formas métricas, também altera as normas tradicionais do uso corrente da adjetivação, os efeitos cromáticos e a técnica do contraste, como numa pintura de Watteau com cisnes interrogativos deslizando sobre os lagos, ilustrando cenários onde são exaltados o amor e o erotismo. Na busca por desbravar o “Reino interior”, como descreve no poema “Uma selva suntuosa”, o eu lírico se pergunta: “― ¡Oh! Qué hay en ti, alma mía?”. Em Prosas profanas, o poeta afirma o seu status, “Hombre soy” (DARÍO, 2011, p. 290), humanidade que se explicita na raiz de seu lirismo, onde se alternam antagonismos: “rie, rie, rie, la divina Eulália” (2011, p. 293) e “La princesa esta triste” (2011, p. 300).

Consideramos a evasão nos tempos remotos, no Oriente misterioso, um rechaço à sociedade burguesa, forma de resistência que, aliada à busca pela originalidade, “mi literatura es mía en mí” (DARÍO, 2011, p. 289), torna a poesia rubeniana singular. A busca por autonomia poética foi reconhecida pelo crítico Juan Valera em Azul..., quando destacou que Darío não imitava a ninguém. Corrobora esta tese Arturo Massaro (1954, p. 3):

 

Si hubiese imitado y seguido dócilmente a algún escritor francés, no hubiera llegado a ser innovador. […] Es necesario ver que ha tomado Darío, de Gautier,  de los Goncourt, de Ovidio, y como la ha tomado; ver cuáles son los elementos que prefirió y como hizo su obra (MASSARO, 1954, p. 5).

 

Em Prosas profanas y outros poemas, Darío proclamou que os poetas americanos, de idioma castelhano, conquistaram sua independência mental da Espanha, a corrente modernista unia destacados grupos que cultuavam a arte cosmopolita e universal. Para Darío “cosmopolita” e “universal” eram termos sinônimos e a nova arte era universal porque era cosmopolita. Paz (1969, p. 24) destacou que os movimentos literários do século XX confirmaram a ideia de Darío sobre o caráter cosmopolita da arte moderna. O poeta se opôs ao nacionalismo que na época se chamava casticismo. O termo castizo origina-se na palavra casta, que significa casto, puro, sem mistura com elementos estranhos, e o discurso imbuído desta ideologia, ou seja, castizo, era a base da hispanidade, tanto que Miguel de Unamuno, quando criticou o casticismo ao afirmar: “Elévanse a diário em España amargas quejas porque la cultura extraña nos invade y arrasta o ahoga lo castizo, y va zapando poco a poco, según dicen los quejosos, nuestra personalidad nacional” (FIORUSSI, 2010, p. 40). O casticismo propunha substituir o purismo na tarefa de manter hábitos gramaticais e vocabulares castelhanos. Nesse sentido, a renovação tanto da métrica, quanto da racionalidade, proposta pela poética dariana, podem ser observadas no fragmento do poema “Salutacíon del optimista”: “Un continente y otro renovando las viejas prosapias, / En espíritu unidus, em espirito y ansias y lengua, / Va llegar el momento en que habrán de cantar nuevos himnos” (DARÍO, 2011, p. 383) e constituem um ato de resistência à ordem estabelecida.

            O amor de Darío pela modernidade acabou tornando a crítica que fez da tradição numa crítica à Espanha. Essa atitude “antiespanhola”, para Paz (1969, p. 24), expressa tanto uma vontade de separação da antiga metrópole, quanto de identificar o “espanholismo” com o “tradicionalismo”. Foi por meio do modernismo que os poetas hispano-americanos promoveram uma reforma verbal no castelhano, enriqueceram-no com termos transportados do inglês e do francês, abusaram de arcaísmos e neologismos, bem como foram os primeiros a utilizar a linguagem coloquial. Um grande número de indigenismos e americanismos foram utilizados na poesia modernista. Assim como os móveis do art nouveau se tornaram velhos, alguns termos do léxico modernista caíram em desuso, porém, um bom número deles adentrou na corrente da fala. O castelhano recuperou, por meio dos modernistas, a espontaneidade. 

Consumado o triunfo da nova estética, a América é a pátria do Modernismo. Darío passa a se identificar como um poeta hispano-americano, espanhol da América, americano de Espanha, ethos poético e político que alcançará seu ápice em Cantos de vida y esperanza, cujo poema de abertura diz: “Yo soy aquel que ayer no más decía / el verso azul y la canción profana, / en cuya noche un roiseñor había/ que era alondra de luz por la mañana” (DARÍO, 2011, p. 379).

Vale destacar que o poeta professou, além da nova estética, a sua posição frente aos movimentos políticos, como destacou Blandón Guevara:

Rubén Darío fue um promotor Del liberalismo em Centro-América. Primero se enrolo em la fracasada Unión Centro-Americana, más tarde, ejerciendo el periodismo em distintos países del istmo, defendió las causas liberales contra la resistencia de las fuerzas conservadoras que se oponían a la modernización de esas sociedades. […] En 1898 apostó por las fuerzas del progreso (BLANDÓN GUEVARA, 2010, p. 105).

Sintonizado com os movimentos de sua época, o eu poético dariano experiencia a sonoridade, o movimento, após ter vibrado com os rumores da virada do novo século com Verlaine e Wagner. Emerge o poeta cósmico de “Nocturno”, inspirado por Samain: “Quero expressar mi angustia em versos que abolida / dirán mi juventud de rosas y ensuños, / y la defloração amarga de mi vida por un vasto dolor y cuidados pequeños” (DARÍO, 2011, p. 406). Segundo Massaro (1954, p. 24), ao contrário de Samain, que vê apenas Paris, “Darío ve la humanidad entera. […] Descubre lo autor francés el valor de ciertas sensaciones casi imperceptibles, Rubén las passa a sus versos y amplia la extensión de sus imagines”.

Em Cantos de vida y esperanza o poeta registra que a obra se tornaria bandeira de resistência e afirmação da América hispânica, a partir do resgate histórico e literário da América pré-colombiana. Observemos o prólogo no qual Darío diz:

 

Si en estos cantos hay política, es porque aparece universal. Y si encontráis versos a un presidente, es porque son un clamor continental. Mañana podremos ser yanquis (y es lo más probable); de todas maneras mi protesta queda escrita sobre las alas de los inmaculados cisnes, tan ilustres como Júpiter (DARÍO, 2001g, p. 378).

 

José Henrique Rodó havia dito que Darío não era o poeta da América, e o poeta, de forma responsiva, atualiza a sua poesia ressignificando elementos de obras anteriores, por exemplo, o Cisne que aparece em Prosas profanas y otros poemas. Em “Blasón” (DARÍO, 2011, p. 302), “el olímpico cisne de nieve / com el ágata rosa del pico”, animal de “estirpe sagrada”, surge como elemento artístico, vinculado às pinturas de Leonardo da Vinci. Logo a seguir, o poema “El Cisne” (2011, p. 339) mostra que “el Cisne que antes cantaba solo para morir”, agora abriga sob as suas brancas asas “la nueva poesia”, e no poema que encerra o livro, intitulado “Yo persigo uma forma” (2011, p. 374), “EL CUELLO DEL GRAN CISNE BLANCO QUE ME INTERROGA”.

O cisne de Cantos de vida y esperanza atende responsivamente a essa interrogação, emergindo transformado, como esclarece o próprio poeta: “Por el símbolo císnico, torno a ver lucir la esperanza, para la raza solar nuestra: elogio al pensador augurando el triunfo de la cruz; me estremezco ante el eterno amor” (DARÍO, 2008b, p. 28).

O poema “A Roosevelt”, como destacou Rubén Darío, preconiza a “solidaridad del alma Hispano-americana ante las posibles tentativas imperialistas de los hombres del norte” (DARÍO, 2008b, p. 26). Esse poema proclama a identidade espanhola desde a sua origem, a América “nuestra”, “católica” e “española”:

ES CON VOZ de la Biblia, o verso de Walt Whitman,

que habría de llegar hasta ti, Cazador,

primitivo y moderno, sencillo y complicado

con un algo de Wáshington y cuatro de Nemrod.

 

         Eres los Estados Unidos,

eres el futuro invasor

de la América ingenua que tiene sangre indígena,

que aún reza a Jesucristo y aún habla en español.


Eres soberbio y fuerte ejemplar de tu raza;

eres culto, eres hábil; te opones a Tolstoy.

Y domando caballos, o asesinados tigres,

eres un Alejandro-Nabucodonosor.

(Eres un profesor de Energía

como dicen los locos de hoy.)

 

Crees que la vida es incendio,

que el progreso es erupción,

que en donde pones la bala

el porvenir pones.

                     No.

 

Los Estados Unidos son potentes y grandes.

Cuando ellos se estremecen hay un hondo temblor

que pasa por las vértebras enormes de los Andes.

Si clamáis, se oye como el rugir del león.

(DARÍO, 2011, p. 390, grifo nosso).

 

 

No poema “Salutación del optimista”, observamos a autoridade religiosa com que o eu poético se enuncia: “Es con voz de la Biblia, o verso de Walt Whitman, / que habría de llegar hasta ti, Cazador”. Nesse poema Darío fala como poeta da América, um neto da Espanha, e adverte: “Tened cuidado. ¡Vive la América español! / Hay mil cachorros sueltos del León Español”. E se as forças terrenas não forem suficientes para barrar o invasor, a América hispânica conta com a proteção divina: “¡Dios!”. A autoridade do poema é corroborada, como propôs Cristóvão Tezza (2012), a partir do pressuposto bakhtiniano de dialogia, pois, mesmo se apropriando de um discurso autoritário como o religioso, o poeta se vale das múltiplas vozes (polifonia) para que seu canto seja alteritário.

O poema “Caupolicán[2]”, soneto que integra a obra Azul..., foi publicado no jornal La época, em Santiago do Chile, em 1888, com o título “El toqui”, que em araucano significa “El chefe” (EZQUERRA, 2008, p. 253). Nesse soneto Darío dialoga com a obra La Araucana, poema épico escrito por Alonso de Ercilla (1533-1594), que foi testemunha do conflito entre espanhóis e índios da região do Chile. O soneto conta a história de Caupolicán, índio guerreiro que matou o conquistador Pedro de Valvídia e lutou bravamente contra os colonizadores. Caupolicán foi morto em 1558. O poema, dedicado a Henrique Hernández Miyares, poeta cubano, diretor da revista La Habana Elegante, diz:

Es algo formidable que vio la vieja raza:

robusto tronco de árbol al hombro de un campeón

salvaje y aguerrido, cuya fornida maza

blandiera el brazo de Hércules, o el brazo de Sansón.

 

     Por casco sus cabellos, su pecho por coraza,

pudiera tal guerrero, de Arauco en la región,

lancero de los bosques, Nemrod que todo caza,

desjarretar un toro, o estrangular un león.

 

      Anduvo, anduvo, anduvo. Le vio la luz del día,

le vio la tarde pálida, le vio la noche fría,

y siempre el tronco de árbol a cuestas del titán.

 

“¡El Toqui, el Toqui!” clama la conmovida casta.

Anduvo, anduvo, anduvo. La Aurora dijo: “Basta”,

E irguióse la alta frente del gran Caupolicán

(DARÍO, 2011, p. 278, grifo nosso).

Este soneto dariano corrobora a vertente americanista que emerge em Azul... e alcança uma expressão significativa em Cantos de vida y esperanza. O poema revela, ainda, a preocupação de Darío com o tema, ainda no início do Modernismo. Vale destacar que o Chile foi assim nomeado pelo colonizador espanhol; antes, era uma grande província por causa de um grande vale que tinha esse nome. Já o Estado de Arauco era uma pequena província povoada por índios muito ferozes, indomáveis, e por isso essa região habitada pelos índios Araucanos era considerada “indômita”.

Ao escrever poeticamente a história de coragem e força do índio Caupolicán, Darío realiza uma reescritura descolonizadora e traz à reflexão acontecimentos cujo fio encontra a sua ponta nos primórdios da instauração do sistema colonial no Novo Mundo. Darío escreve a história de resistência do povo mapuche, revelando, como pressupõe a teoria pós-colonial, que todo ato perpetrado pelo colonizador suscitou uma resposta do colonizado, porém essa resposta muitas vezes foi encoberta. A voz do colonizado não reverberava, tornava-se silêncio.

Os registros acerca da colonização, assim como outros comuns aos livros de história ocultam a história da resistência do índio. O crítico literário peruano Antônio Cornejo Polar (2000, p. 78) destacou que a literatura hispano-americana nasceu de textos escritos pelo colonizador: crônicas, romances da conquista. Polar ressalta que é importante atentarmos para o fato de o campo ibérico também ter feito parte desse processo por meio do petrarquismo indiano, o latinismo, que filia a ocidentalidade no germe dessa literatura, excluindo o arcabouço pré-colombiano.

O Caupolicán dariano é forte, corajoso e vencedor. O poema põe em cena um ritual indígena que indicava quem seria o próximo líder. A primeira parte do soneto apresenta o personagem com adjetivos como “campeón salvaje y aguerrido”, o que o situa fora da civilização europeia, cujas estratégias de luta nem sempre eram honradas. Caupolicán não precisa de armamentos para ser forte, pois ele tem “por casco sus cabellos, su pecho por coraza”. Darío compara a sua força à de legendários heróis, como o grego Hércules, o bíblico Sansão e Nemrod, o rei babilônico afeito à caça e com habilidades para manusear a lança. Os tercetos do soneto contam a façanha do herói e mostram a natureza do ritual, que consistia em caminhar carregando um pesado tronco de árvore sobre os ombros por muitos dias: “Anduvo, anduvo, anduvo. Le vio la luz del día, / le vio la tarde pálida, le vio la noche fría, / y siempre el tronco de árbol á cuestas del titán” (DARÍO, 2011, p. 278). Ao final do poema, o índio Toqui é aclamado: “¡El Toqui, el Toqui!” clama la conmovida casta, e o seu sofrimento chega ao fim: “La Aurora dijo: “Basta” / E irguióse la alta frente del gran Caupolicán” (2011, p. 278). O poeta utiliza a repetição “anduvo, anduvo, anduvo” para acentuar a temporalidade da ação e a persistência do personagem, assim como a sequência “Le vio la luz del día, / le vio la tarde pálida, le vio la noche fria”; esse recurso anafórico confere musicalidade e ritmo ao poema.

Essa valorização do índio americano, como já observamos, será amplamente trabalhada em Cantos de vida y esperanza, onde “el Cisne que antes cantaba solo para morir”, cantará “la nueva poesia”, como observamos em “Salutación del optimista”:

se anuncia un reino nuevo, feliz sibila sueña

y en la caja pandórica de que tantas desgracias surgieron

encontramos de súbito, talismática, pura, riente,

cual pudiera decirla en su verso Virgilio divino,

la divina reina de luz, ¡la celeste Esperanza!

(DARÍO, 2011, p. 382, grifo nosso).

A poesia de Rubén Darío traz à luz a memória histórica do povo americano e, dessa forma, participa do processo de descolonização. No ensaio intitulado “A construção de uma literatura”, publicado em 1960, Rama corrobora essa ideia, salientando que “o espírito sopra onde quer, e quando o faz na Nicarágua, desponta um Rubén Darío. Esse é o milagre da alta criação artística” (RAMA, 2008, p. 49). Para esse pensador, o desafio e a premência de se “construir uma grande tradição” a partir de nós mesmos, latino-americanos, é uma tarefa que será possível apenas, a partir da reordenação do passado (RAMA, 2008, p. 35).

Ainda em Cantos de vida y esperanza, nos deparamos com o poema “Los cisnes”, no qual o eu poético reafirma a sua identidade: “Soy un hijo de América, soy un nieto de España...”.  O poeta recorre ao enigmático cisne e pergunta:¿qué haremos los poetas sino buscar tus lagos? // La América española como la España entera / fija está en el Oriente de su fatal destino; / yo interrogo a la Esfinge que el porvenir espera / con la interrogación de tu cuello divino”; o eu poético, então, lança o seu grito:

 

¿Seremos entregados a los bárbaros fieros?

¿Tantos millones de hombres hablaremos inglés?

¿Ya no hay nobles hidalgos ni bravos caballeros?

¿Callaremos ahora para llorar después?

(DARÍO, 2011, p. 398).

O cisne dariano questiona desde a forma de seu pescoço, que lembra o sinal de interrogação, sobre o futuro. Ele marca, em Cantos de vida y esperanza, a resistência à colonização material e intelectual representadas pelos Estados Unidos. Na história da América Latina, é possível observar que, desde a Doutrina Munro, documento construído e instituído pelos Estados Unidos em 1823, consideravam-se as repúblicas hispânicas recém-libertas do jugo colonial imaturas para se autogovernarem e, portanto, dependentes da sua intervenção e proteção. A América Hispânica foi enredada em uma nova forma de colonização, o neocolonialismo norte-americano. A luta revolucionária pela libertação dos países da América Hispânica do domínio da metrópole espanhola foi alimentada pela desigualdade social, exploração econômica e opressão política, como nos faz saber Mirza L. González (1994, p. 17). Desde os tempos da colonização, a sociedade se dividiu em classes muito desiguais: “peninsulares, criolos, índios, mestiços e negros”. A crítica pós-colonial auxilia o leitor na compreensão desses processos em função dos questionamentos que tece à lógica eurocêntrica. Rama (2008, p. 78) salientou que, a partir da obra Prosas profanasy otros poemas, Rubén Darío afirmou “não haver poesia na América, a não ser no índio, e que a sua estética se afastava, propositalmente, de sua própria terra”. Mas Rama defende que esse afastamento de Darío foi necessário, pois:

Hoje reconhecemos que [Rubén Darío] foi a maior encarnação poética do espírito lírico americano, que suas Prosas profanas renovaram a tradicional vocação estética das letras do continente, que com seus imaginários cenários próprios do século XVIII ― marquesas, clérigos da corte e viscondes ―, expressou de forma maior e melhor a identidade dos homens da América do que ele suspeitara: esse arabesco de sensual paixão da beleza traçado por sua obra leva incrustado o perfil do homem de terra firme (RAMA, 2008, p. 78, grifo nosso).

Rubén Darío deixou para o mundo da literatura um legado poético construído com mestria e amor. Ele dedicou a vida às letras em um mundo onde cada vez mais elas viravam mercadoria, persistindo, contudo, com a poesia, afinal, como afirmou Del Valle (2002), apenas na poesia o literário alcança plenitude. Darío tinha consciência da primazia de seus status de poetas sobre outras identidades possíveis. Entretanto, foi considerado pela crítica, durante muito tempo, um escritor apolítico. Esse fato, como observamos, se deve à celebração do exercício da perfeição formal dos parnasianos e à musicalidade e imagens sugestivas do Simbolismo. A “arte pela arte” foi uma postura social, ou antissocial, que custou aos modernistas hispano-americanos a acusação de estarem alienados da realidade latino-americana.  Defendemos que essa ideia não se sustenta, e que Darío abriu variados campos de discursividade com a sua poesia, abarcando vozes audíveis e inaudíveis, sendo um poeta decisivo para o modernismo hispano-americano e colaborando para com o processo de descolonização da linguagem. Todo poeta, como defendeu Bakhin, é uma voz, entre outras vozes, no auditório polifônico da alteridade.

(Profa. Dra. Renata Bomfim)

       


[1] Benjamim chama de “aura” as imagens que, sediadas na memória involuntária, tendem a se agrupar em torno de um objeto de percepção; essa “aura” que envolve o objeto corresponderia, então, à própria experiência que se cristaliza em um objeto correspondente à própria experiência, que se cristaliza em um objeto de uso, sob a forma de exercício (BENJAMIN, 2000, p. 137).

[2] Segundo Ezquerra (2009, p. 253), o soneto Caupolicán foi o primeiro soneto alexandrino escrito em língua castelhana.