28/03/2023

Jeanne Bilich, Dama do Jornalismo Capixaba, deixou um legado na cultura espírito-santense (Prof. Dra. Renata Bomfim)

 

No dia 27 de março de 2022, a escritora Jeanne Bilich faleceu em sua residência, na Praia do Canto, Vitória, deixando o seu nome gravado no jornalismo capixaba, pelo qual ela é conhecida como grande “Dama”. Após quarenta anos de profissão, Jeanne deixou um legado na cultura, tendo atuado como apresentadora, redatora, radialista e assessora de comunicação nos mais destacados veículos de comunicação do Espírito Santo, além de também ter se dedicado à advocacia. 

Nascida no Rio de Janeiro, no dia 12 de outubro de 1948, Jeanne veio para o Espírito Santo com a família após o falecimento de seu pai, radicando-se em terras capixabas na década de 1960. Aluna no internato do Colégio do Carmo e, posteriormente, estudando no Colégio Estadual, a escritora formou-se em Direito pela UNESC, em Colatina, em 1975. Jeanne fez mestrado em História Social das Relações Políticas com a dissertação intitulada “As múltiplas Trincheiras de Amylton de Almeida: o cinema como mundo, a arte como universo”, na UFES,que foi publicada em 2005.

Entrevista no programa "Casa mais Família"

Jeanne Bilich surgiu no cenário jornalístico capixaba na década de 1970 e fez história sendo a primeira apresentadora do Telejornal da Rede Gazeta, em 1976. É sabido que a hierarquia de gênero faz parte da história de muitas profissões, inclusive do jornalismo. A determinação e a competência de Jeanne contribuíram para a feminilização da profissão majoritariamente exercida por homens, na sua época. As conquistas de Jeanne Bilich também se estenderam para o campo da literatura. No dia 10 de junho de 2013 ela foi eleita para a Cadeira nº 7 da Academia Espírito-santense de Letras. A escritora tem uma produção rica em textos para sites, ensaios, coletâneas. Ela possui  dois livros de crônicas,  Zeitgeist – O Espírito do Tempo (2009) e Viajantes da nave Tempo (2013). Na obra Zeitgeist, a crônica intitulada "Transgressão às regras da boa crônica”, descreve a existência dos “Cadernos de Anotar Vida”, ou seja, uma coletânea que começou a ser escrita em 1972 e que, na época, já contava com “26 volumosos tomos”, “hemorragias gráficas" que segundo revelação da autora, a impulsionaram para a pesquisa e, que mais do que instrumentos para “mapear a alma” e  "autoconhecimento", serviam para “diluir raiva, frustração, mágoas ou ressentimentos”. 

O escritor Álvaro José Silva foi amigo pessoal de Jeanne por muitos anos, além de seu confrade na AEL, nos faz saber que, na ocasião do passamento da escritora, os “Cadernos de Anotar Vida” já contavam 50 volumes, material relevante para a literatura e o jornalismo capixaba, pois, além dos recortes da vida da escritora, possivelmente com tonalidade diarística, ela reuniu neles notícias sobre filmes, artes, informações coletadas em revistas, jornais, fotografias e outras imagens. Acredito que esses “Cadernos”, juntamente com os objetos pessoais que decoravam o apartamento de Jeanne, formam uma espécie de bricolagem artística. 

Uma bruxinha de roupa roxa altivamente postada à frente da imagem de um cavaleiro do Barroco, já outras, reunidas próximas, como que formando uma confraria bem ao estilo de “Abracadabra”, de Anne Fletcher. De frente para uma réplica da Pietá de Michelangelo, um sofá de veludo azul, como que flutuando sobre um tapete, também azul, com floragem branca; no centro da sala, uma mesinha octogonal de madeira, repleta de pequenos objetos. Logo adiante, na parede, saltam aos olhos as imagens renascentistas de Adão e de Eva pintadas por Albrecht Dürer, devidamente emolduradas individualmente e separadas por outras imagens e objetos. Eva, ao lado do interfone, tem o olhar voltado para o Adão de Rodin, figura de músculos bem desenvolvidos, posicionada mais abaixo, na mesma parede. A presença amorosa dos gatos Nietzsche e Baudelaire, espelhos, chapéus, plantas, cristais, incensos, relógios antigos, LPs, CDs, DVDs, bibelôs, e muitos livros, deram forma a uma ambiência única, ao lar que a escritora chamou de “A Casa da Bruxa”.

Jeanne Bilich transferiu para a sua escrita essa forma “encantada” de ver o mundo, tanto que na sua dissertação de mestrado, que teve como objeto de investigação a vida e a obra de Amylton de Almeida, ela utilizou o símbolo do ouroboros. Segundo as palavras da escritora a imagem da serpente que morde a própria cauda “simboliza a natureza cíclica do universo”. Ela usou esse conceito de tempo cíclico para construir o percurso de sua exposição teórica. Essa opção foi justificada, ela objetivou dar ao leitor a oportunidade de fazer uma leitura linear da pesquisa, mas também outra não linear, mais “independente”.

Jeanne Bilich foi a primeira mulher a ocupar a cadeira de nº 7, na AEL, cujo patrono é José Fernandes da Costa Pereira. A escritora Josina (Jô) Drummond afirma que "há uma porcentagem mínima de mulheres na AEL: 13 entre 150 acadêmicos”, sendo que, ocupando o lugar de presidência, apenas duas, Maria Helena Teixeira de Siqueira, já falecida, e, atualmente, Ester Abreu Vieira de Oliveira”. No artigo intitulado “Mulheres notáveis na Academia Espírito-santense de Letras”, Drummond destacou, ainda, que das 40 Cadeiras existentes, apenas uma, a de nº 32, possui uma escritora como Patrona, a poetisa Maria Antonieta Tatagiba.

As mulheres estiveram presentes na produção jornalística e cronística do Espírito Santo desde o final do século XIX, de forma reduzida ainda e, muitas vezes, as publicações eram assinadas com um pseudônimo, entretanto, essas contribuições, nem sempre foram valorizadas, ao ponto de alcançarem destaque nos registros historiográficos. A década de 1970, época que Jeanne Bilich surgiu no cenário jornalístico capixaxa, foi avivado pela crítica feminista e pelos os estudos culturais, quando as mulheres puderam exercer maior liberdade nas profissões ligadas à escrita.

Lanço um olhar sobre a obra Zeitgeist: o Espírito do tempo, de 2009, que reúne 56 crônicas publicadas no Caderno Dois do Jornal A Gazeta, entre os anos de 2007 e 2009.

            “Interativo leitor”, como Jeanne se refere às pessoas que aceitam compartilhar das suas “mais íntimas e até publicamente inconfessáveis impressões, emoções, pensamentos e análises”, ao iniciar a leitura, você será inserido em um espaço onde as certezas não são absolutas: “Duvidar é preciso”. É parodiando Fernando Pessoa e citando Dom Quixote de la Mancha como epígrafe; “O que preferes; a loucura sábia ou a sanidade tola”?, que a escritora pergunta, na crônica que abre a obra: “Crônica é um relato? É uma conversa? É o resumo de um estado de espírito? Não sei! A escritora destaca que esse "peremptório” “Não sei”, veio das primeiras crônicas que Clarice Lispector escreveu para o Jornal do Brasil. No prefácio à obra, Sidemberg Rodrigues adverte o leitor que “é difícil passar incólume pelas traiçoeiras letras de Jeanne Bilich”, pois elas são “portais”, "cápsulas douradas” que combatem “os males da limitadora condição humana”.

Concordo com a colocação, pois, embora o texto seja narrativo, ele é  poético,  e a palavra poética funciona como um caleidoscópio, além do mais, nada mais desconfortável que, de repente, termos as nossas certezas questionados. É assim, no tear do “Duvido, logo penso” que Jeanne estende o fio de uma intrincada trama que junta e mistura pessoas, livros, filmes, lugares, escritores, política, sentimentos e tantos outros assuntos que não poderiam ser desenvolvidos a contento nessas breves considerações.

A crônica de abertura de Zeitgeist: espírito do tempo, chamada “De Mestras e ousadas aprendizes'', nos apresenta uma Jeanne surpreendida com a missão de cobrir as férias da escritora Bernadette Lyra no Caderno Dois do jornal A Gazeta. Essa deliciosa leitura descortina o rico campo de diálogos que envolve essa obra e o vasto cabedal de leitura da escritora. A cronista destaca  o relevante papel das “Mestras” Bernadette Lyra e Clarice Lispector na,sua história e para o campo da escrita cronística, e topa iniciar a “aventura” que a levará para “inovadoras trilhas”, que ela percebe já estarem se tornando muito pessoais. A escritora deixa clara a sua determinação, e que pretende não sucumbir ao medo, pois é impulsionada pela “coragem” e pela “ousadia” para “voos incertos” e “desafiantes”. Bernadette Lyra, Clarice Lispector e uma miríade de outras personalidades capixabas e do mundo afora, entre elas escritores(as), pensadores(as), cineastas, músicos,  bem como personagens de livros e de filmes, são convidados para o seu banquete de ideias. Amylton de Almeida, A.A, “maior crítico de cinema que o Espírito Santo já produziu…”, é tratado com doçura, e para Jeanne ele permanecerá, mesmo após o seu falecimento, “inesquecível”, uma presença afetiva importante “entre nós, [...] Pelo menos nos corações e nas mentes de quantos o amaram. E admiraram” (“O Bergman de cada um de nós”). Na escrita cronística de Jeanne Bilich há um dialógico com o Espírito do Tempo expresso pelo embate entre a modernidade que promoveu a “ruptura com o passado, as tradições que vinculam as nossas experiências pessoais às das gerações passadas” e a solidez de um outro tempo, esse de fluxo menos acelerado. Viver nesse nesse limbo, - “Eis o enigma”-, refletir sobre tais contradições é a proposição da crônica “Navegando no presente continuo”.

O tempo é o mar desafiado e percorrido pela cronista, nele, o sujeito da escrita experimenta “a estranha sensação de vertigem” e, por vezes, o medo do naufrágio, “redemoinho” que “já ameaça a nossa sanidade mental e até as identidades". Essa profusão de eventos submerge o ser num “caudal de fatos factóides, celebridades, internet, tecnologia high-tech, comportamentos bizarros, cascatas de imagens multicoloridas, enlaces e desenlaces (profissionais e amorosos) instantâneos. Fugacidade”. Leitora de Zygmunt Bauman, pensador que captou o caráter volátil da “modernidade líquida”, e de Eric Hobsbawm, historiador britânico autor de “A Era das revoluções" e que problematizou a revolução industrial, Jeanne completa a sua tríade, inserindo na mesma crônica “o velho Marx: Tudo que é sólido se desmancha no ar”. Observamos que o sentimento de estar à deriva, “mal-estar, insegurança, ansiedade”, faz emergir a saudade “dos velhos tempos, bons e sólidos tempos”, mas, destaca a autora, é certo que “felizes, ou infelizes”, “o calendário biológico avança”, restando ao sujeito singrar como Ulisses, em busca de sua Ítaca.

“Saber envelhecer” é uma crônica na qual a escritora revisita a infância e se lembra que os seus olhos de menina viam “as pessoas de idade como livros volumosos, plenos de histórias e saberes”. “Defrontar-se com o próprio envelhecimento” e suas reações a faz tecer uma crítica sobre a mercantilização da vida. Para a escritora,  o termo “terceira idade” não é agradável, ela prefere “idoso”, ou mesmo “velho”, porque são designações que não alijam a pessoa do vivido, não as despoja da “experiência, valentia e garbo de haver vencido as etapas cronológicas anteriores”. Cada crônica, como bem destacou Rodrigues, é um “portal”, por onde o leitor pode, de acordo com o seu desejo, penetrar mais profundamente. Há, ainda, em Zeitgeist, uma profusão de elementos que remetem para o sutil, espiritual e, por que não, para o esotérico? Não é à toa que a escritora, entre os pensadores com quem dialoga, insere Carl Gustav Jung, autor que fez uma cartografia singular da psique humana, descrevendo-a como território habitado por uma profusão de arquétipos, muitos deles antiquíssimos. Esse portal muito me interessa e o seu guardião é um gato persa de fina estirpe, Nietzsche, “nigerissimo”, “com olhos de farol, sábio e reflexivo amigo”.

Quando penetramos no campo dos símbolos e da magia, assim como guiados pela deusa Hécate, nos surpreendemos com a experimentação de um outro tempo, um tempo cíclico, mandálico, no qual “já fomos essas crianças de hoje, Depois? Rebeldes adolescentes, desafiantes jovens, adultos responsáveis; e, na maturidade, arcamos com pesados fardos. Imersos no incessante “contínuum” das elipticas”. Na crônica “O círculo do Ouroborus”, vemos constelar, como diria Carl GustavJung, várias imagens arquetípicas, como a da ansião sábia, à luz do símbolo que tem um significado especial para Jeanne e que “representa o ciclo da vida”: a serpente mordendo a própria cauda. 

No panteão grego, a deusa Hécate, arquétipo tríplice, - criança,  jovem e anciã- , atuava tanto no mundo dos mortos, como a padroeira a quem os cidadão recorriam para serem livrados dos perigos e das maldições, quanto no dos vivos, regendo nascimentos e processo de renovação. Essa deusa possui alguns epítetos, um deles é Propylaia, que significa aquela que fica na frente do portão, por isso o seu culto era, muitas vezes, realizado em portões e portais de entrada, onde estátuas eram colocadas em sua homenagem. Outra designação é Phosphoros, ou seja, aquela que traz a luz. Filha de Nyx, a Noite primordial, ela era a única deusa portadora de duas tochas, que trazia nas mãos.  Vida e morte, duas pontas de um mesmo fio, são poeticamente trabalhados na crônica “O filho herdado” que, não por acaso, ao rascunhar o texto, cometi o ato falho e chamei de poema: “nesse poema…”. Nesse texto vemos a assinatura de Jeanne como cronista. O “locus despido de autocensura”, “íntimo” e “personalíssimo” que ela nos convida para entrar é um cadinho de emoções. O ano é 2009 e Jeanne recorda que, em 1995, no dia 12 de outubro, seu aniversário de 47 anos, era realizada a “cerimônia de adeus” de seu querido amigo Amylton de Almeida: “amizade tão estreita e rica, que nos atou num laço inquebrantável ao longo de três décadas: dos meus 16 anos, e ele aos 18 anos, até aquele funesto dia”. Entretanto, afirma a escritora, “coincidentemente?”, “Presente dos deuses ou derradeiro ‘mimo’ de despedida de A,A.?”, mas o fato é que nesse dia ela afirma ter "herdado'' o filho de Amylton de Almeida, o escritor Sidemberg Rodrigues.  “Misteriosos os meandros da vida”, afirma Jeanne: “a vida é regida por correntes mais profundas e por uma magia impenetrável” que o pensamento não consegue alcançar, apenas os sentidos. “Cargas ao mar”. De forma “consciente” ou "inconsciente", a preparação para a “ancoragem suave no desconhecido porto” vai se desenhando. O retorno à crônica “O círculo do ouroboros”, revela que a escritora havia completado 60 anos logo após prestar o seu "particularismo Vestibular para a Velhice". Observamos que o campo foi  preparado para uma confissão, e a cronista  alerta ao leitor que “é de uma franqueza cortante.[...] Bela Virtude, grave defeito”, e confessa, ainda, que recusou “botox”, “lipo”, “silicone”, etc., preferindo observar “a geografia que se desenha no seu rosto e corpo”. Essa escolha de vida, na contramão da moda e das cobranças sociais a que comumente estão sujeitas as mulheres,a leva a um momento sublime, quando  percebe que os dedos da “estreante velha” se entrelaçam amorosamente aos da “menina Jeanne”, “isenta de culpas, mágoas ou ressentimentos" e que “À alma felina,- independente e libertária - amalgamou-se à leveza dos beija-flores que fazem sorrir as orquídeas na janela”.

A crônica "Zeitgeist ou espírito do Tempo” evoca as palavras de Virgínia Woolf em Orlando: “poder-se-ia ver o espírito da época soprando, ora quente, ora frio sobre as suas faces”. para Jeanne há algo de indizível neste termo do idioma alemão que para ela é “quase mágica”. O escritor João Batista Herkenhoff pergunta: “Qual é esta essência que Jeanne Bilich persegue no seu livro?”, e chega ao parecer de que “ é aquela [essência] que se alcança quando se tem a sensibilidade de perceber os fios que tecem a História, que ligam os seres humanos ao seu destino comum”. 

Acredito que a magia da obra de Jeanne está na conjugação entre consciência histórica e capacidade de maravilhamento e contentamento nas coisas simples, algo possível apenas às almas sensíveis. Jeanne Bilich, usou bem o seu tempo e amealhou um tesouro: “amigos diletos, paredes revestidas de livros, o gatinho Nietzsche e você, fiel leitor dominical". 

 Referências:

     BILICH. Jeanne. Zeitgeist – O Espírito do Tempo. Vitória, Editor Sidemberg Rodrigues, Vitória, ES, 2009.

     Bilich, Jeanne. As múltiplas trincheiras de Amylton de Almeida: o cinema como mundo, a arte como universo. Vitória, GSA Gráfica e Editora, 2005.

     DRUMOND, Josina. Mulheres notáveis na Academia Espírito-santense de Letras. Fernão ǀ ISSN 2674-6719 Vitória, ano 3, n. 6, jul./dez. 2021. Disponível em< file:///C:/Users/User/Downloads/Fern%C3%A3o+n.+6,+2021-2-159-182%20(4).pdf.>. Acesso em: 08 de out. 2022.

     João Baptista Herkenhoff. Zeitgeist, o Espírito do Tempo. Disponível em:<https://www.jornalgrandebahia.com.br/2018/08/carta-por-joao-baptista-herkenhoff/>. Acesso em: o3 de out. 2022.

24/02/2023

Medusa´s Heart (Poems by Renata Bomfim Translated by Silvia Siller)

 

Renata Bomfim- Mata Atlântica no Espírito Santo/ Brasil.

Medusa´s Heart

 

Medusa's heart

(forged in lava, filled with fury)

loves who wants to decipher it 

 

The goddess, snakes mane, offers herself to the male who penetrates

on the wet and narrow path

(initiatory cave):

seduction, pleasure, and ecstasy 

 

So far fatal from the sweet and deep glance,

The time stops.

The virgin breaks the deathly silence

shakes the bell,

but, nobody certifies

the miracle of miracles:

The eternal voluptuousness

That lives in a statue that is sculpted

in Carrara marble.


 ***

Mary Wollstonecraft's granddaughter


From my grandmother, I inherited

the taste for unstable men and

the nerve of those who have nothing to lose

I still remember her deep eyes, suicidal;

Of how she liked to feel overwhelmed

because of work and painful endeavours ...

How much pleasure it gave her to dig her fingers in the inkwell abyss,

To then, stain the soft, blank sheets of paper ...

Aristocratic woman on the pier ...

Her grief charted my destiny.

Today, in every street corner,

they sell copies of her book of misery and loneliness

(at popular prices). Ah! If my grandmother saw me now,

How proud she would be of her lineage: 

Women more broken than embroidered

Condemned to be separated

Irretrivably divided and dry,

prideful, like beasts grazing

ln wastelands.

***


Nicanor Parra's fiancee      

                                      Dedicated to the great Chilean antipoet   

Look at me tenderly 

It's time to retreat of drought and suffering.

I can't dream anymore

I can't sing anymore

The stories lose their meaning

My heart is withered

Contemplate me with affection. 

My hands touched (in dreams) the mountain ranges,

as if the mountains were toys of gods, me, that girl with smiles and braids ...

-They will never be able to reproduce such remarkable beauty

 They will never understand the mysteries of minerals. 

Listen to the abandoned rocks, I know the genealogy of these ancient stones

I climbed the highest hands, searching for myself

The hands show that granite approximation 

 

Look at me sweetly.

Pay attention to the voice coming from the caves.

Echoes of our forgotten humanity. 

Lamentations for the fall of the gods,

Cry that shakes the earth.

Lovingly stimulate the forehead of the poem,

Recreate (against the mythology, the unreleased song,

Only you, poet, are capable of doing it.)

 

Treat me with tenderness

To me, the most infertile of females,

Pursuer of salvation, esteem, love,

Longing to be reborn

Marry this creature capable of conceiving

something more than sunrises and utopia

***


Medusa's eyes 

 

Medusa's eyes

beyond their admired and loved

object of desire

they are not guilty,

 

In a desperate attempt to interrupt

the corrosive action of time,

and perpetrate their beauty.

The serpents dance exalted

over the head.  They are like lira strings

of that Muse's out of tune

banished,

disowned and sad,

she only asks one thing from life:

To be loved.

***

The song of the Harpy

I got tired of being a mermaid. I cut my hair, my nails grew. Instead of the scales, indecent and strong feathers in shades of white and ash. At the head´s top, the eroticized crest bristles at the slightest noise. I spread huge wings, I exhale a scream. The eyes, suddenly, see beyond. I got tired of drowning sailors, of singing the death of cliffs and frozen rocks. Like a child, emerged from the womb, I glorify life! I immersed myself in the depths of the deep blue sprinkled with the last lilos of day and I am reborn by morn, intoxicated by the yellow gold of that universe wildly new.

 

(Poems by Renata Bomfim Translated by Silvia Siller)

Renata Bomfim

Born in Vitória, Espiritu Santo, Brazil. She has a PHD in Languages awarded by the Federal Univiersity of Espíritu Santo (UFES) and she is a University Professor. She is also a poet, enssayist, researcher and environmentalist. She is the creator and manager of the Reluz Nature Reserve, located in the Espíritu Santo's mountains, where she works to preserve a remaining area of the Brazilian Atlantic Forest, a biome that shelters a vast biodiversity, one of the greatest on the planet, and that is highly threatened. Lastly, she is the authore of the Literary Journal " Letra e Fel" (Letter and Gall).

Silvia Siller

Poet, polyglot and radio host. She teaches Spanish and has taught Latin-American poetry at the New York Public University (CUNY). She studied a Master’s in International Relations at Columbia University,  has a Master’s in French and has completed several Diplomas in Contemporary Literature. Finalist of the Entreversos contest (2017) of the Mar Azul Foundation in Venezuela, poems that have been published by New York Poetry Press. Her collections of poems have been recognized in the International Latino Book Award 2015 and 2016 with the translation of Walter Krochmal. Received the G. Mistral, J. Burgos and F. Kahlo award from the Galo Plaza Committee in New York for her contributions to Latin American culture (2015). She has multiple collections of poems. Voice of cultural radio program –Cultural Dialogues with Silvia Siller on CalleVieja Radio. She has also danced flamenco and has written flamenco theater plays with poetry.  Her poetry accompanied the exhibition Man(o)rar by Luciana Corres at the Franz Mayer Museum (2018) and at the Oaxaca Textile Museum (2017). Fully fluent in English, French, and Spanish. Professional knowdelge of Portuguese and Italian. Learning basic Náhuatl.

19/02/2023

Poesia fêmea: uma leitura de poemas da obra O Coração da Medusa (por Anaximandro Amorim)

Uma recordação da presença do escritor Anaximandro Amorim no lançamento
 do meu poemário O Coração da Medusa. Em função da pandemia, 
o uso de máscaras foi um dos protocolos para a participação no evento. 

Renata Bomfim (Vitória/ES, 21 de novembro de 1972) é poetisa, professora, educadora ambiental e doutora em estudos literários pela Universidade Federal do Espírito Santo. Membro da Academia Feminina Espírito-santense de Letras, tendo, também, presidido a instituição e organizado uma das edições da Feira Literária Capixaba (a Flic-ES), Bomfim é autora de quatro livros, todos recolhos poéticos. O coração da Medusa (2021), seu mais recente trabalho, é um volume de 157 páginas, editado com recursos da Secretaria de Cultura do Espírito Santo (Secult/ES) e apoio do Funcultura, Fundo Estadual de Cultura. O livro é bilíngue (português/espanhol) e a tradução é assinada pelo prestigioso escritor e crítico literário espanhol Pedro Sevylla de Juana, membro correspondente da Academia Espírito-santense de Letras.

O coração da Medusa possui três partes: 1) “Canto iniciático”; 2) “Queda”; e 3) “Ascensão”. Há também uma quarta parte, “Outros poemas”, mas, segundo a própria autora, “[O]s poemas que se seguem vieram à luz um tempo depois de finalizado O coração de Medusa. A decisão de incluí-los no poemário deve ao fato de eu sentir, ainda, ressoar a voz serpentina de Górgona nesses versos”, no que achamos, portanto, que o núcleo da obra se concentra nos três primeiros capítulos.

 O livro tem, como fio condutor, o mitema (grosso modo, a representação/consubstanciação do mito) da Medusa (“Górgona”), ainda que Bomfim explore, também, outras alegorias, como a bíblica (“O prazer de Salomé”) e a indígena (“Ritual tupiniquim”). Trata-se de um bem estruturado poemário, cujo erotismo tem uma tônica singular como forma de posicionamento da própria autora, numa poesia que, ousamos afirmar, vai além do feminismo, consubstanciando-se em uma “poesia fêmea”.

Expliquemo-nos: primeiramente, o mitema da “Medusa”, tão popular, leva em consideração não apenas aspectos do próprio mito, mas, também, uma provocação. Medusa era uma bela sacerdotisa que, ao se deitar com Poseidon no templo de Atena, foi transformada por essa em uma horrenda criatura, com cabelos de serpente e o condão de transformar em pedra quem ousasse cruzar seu olhar. Ela é o arquétipo da maldição, alguém condenada por ousar o amor e, mais ainda, ousar o prazer.

Há, portanto, várias “Medusas” na História, mulheres que foram além das convenções, mas que pagaram com suas vidas, sendo tidas como bruxas, prostitutas, proscritas. Nota-se, no entanto, que a Medusa de Bomfim possui um coração, o que leva a um paradoxo interessante, visto que o órgão, em literatura, tradicionalmente, representa o amor. Sim, Medusa também tem coração e, se tantas mulheres foram tidas como monstros, não seria por elas terem ousado pôr o sentimento em lugar de uma razão proveniente de uma sociedade de papeis preestabelecidos? Não seriam por terem ousado ser como elas realmente queriam ser?  

“Medusa” é o preço que uma mulher paga na nossa sociedade machista e falocêntrica. Bomfim, todavia, faz de seu livro um canto contrário a esse estado de coisas, o que já se percebe, num leitor mais atento, quanto ao conteúdo do livro, com a proposital mudança entre os vocábulos “queda” e “ascensão”. Começo, porém, por “Canto iniciático”. O vocábulo “canto”, aliás, é bastante encontradiço na obra. A mulher, sempre tida como “perigosa”, seduzia por seu canto. Muitos monstros mitológicos, como a Medusa, tinham formas femininas. Lembro-me de outro mitema, o das sereias, que entorpeciam os homens com seu canto. Ulisses só escapa da “maldição” pois estava amarrado a um mastro. O mesmo canto que seduz também pode levar à guerra. Renata canta a bravura de tantas mulheres, alijadas pelo cânone histórico e social. Por isso a inversão: se a mulher, que nos primórdios, era o cume da sociedade matriarcal, foi destronada pelo patriarcado, a poeta, no seu “canto iniciático”, quer dar voz a uma nova ascensão para as tantas Medusas da História.

O poema que dá título ao livro está, justamente, no capítulo deste “canto iniciático”, como uma preparação para um porvir. É ele:

O coração da Medusa

O coração da Medusa
(forjado em lada, cheio de fúria)
ama aquele que a busca.
A diva serpentina oferece
ao macho que penetra
na senda úmida e obtusa,
(caverna iniciática):
sedução, prazer, e gozo.
Até o momento fatal
da mirada suave e íntima,
o tempo para. A virgem
quebra o silêncio sepulcral,
chacoalha o guizo,
mas, ninguém testemunha
o milagre dos milagres:
A volúpia eternizada
numa estátua de carrara.

São 17 versos livres e brancos, em que Renata lança mão de uma inteligente proposta: usar um erotismo fino e elegante como fio condutor. É neste aspecto que ousamos classificar o livro não dentro de um viés apenas feminino ou feminista. Para nós, a obra de Bomfim ultrapassa esses conceitos, mostrando-se uma “poesia fêmea”: marcando territórios, ainda hoje, dominados pelo masculino, a autora expressa em versos o corpo da mulher, junto de sensações que, em muito, deságuam em um tema tão tabu: o prazer feminino. Nesta senda, ela se une a autoras como Gilka Machado, Cecília Meireilles, Julia Lopes de Almeida, Haydée Nicolussi e tantas outras que “cantaram” o feminino, o corpo, suas idiossincrasias, seu espaço e, principalmente, seu direito.

O poema em epígrafe esbanja essa sensualidade, com arquétipos que aludem tanto ao genital feminino (“caverna iniciática”) quanto ao masculino (com o uso do verbo “penetrar”). Há, também, uma alegoria que vai se repetir em muitos textos do livro, a da serpente, como imagem do pecado, do proibido e, em última análise, da própria mulher, como ser “perigoso”, que pode “seduzir” e “perverter” o homem. O gozo, esta petite mort, representado pelo chacoalhar do guizo, é o prenúncio de um milagre: Medusa também tem coração, também sente prazer, isto é: à mulher também é outorgado esse direito.

Ainda sob alegorias ofídicas, a segunda parte trás o poema “A víbora”. Há de se lembrar, entrementes, que este capítulo, intitulado “Queda”, alude ao rasteiro, ao chão, sobre o qual rasteja a serpente:

A víbora

A víbora que faz Eurídice dormir
ronda a minha cama,
Se acerca em arabescos
Aguardando o momento
do bote preciso, prefeito.
No instante apoteótico
do sonho,
Ela crava os dentes
no meu seio.

Nem Cleópatra experimentou
tamanha delícia.

Há, aqui, mais uma alegoria mítica: a de Eurídice que, morta por uma serpente, desce ao Hades, sendo resgatada de lá a súplicas de Orfeu, seu marido, filho da musa Calíope e do deus Apolo. Orfeu desobedece aos deuses, olha sua amada antes de chegar ao lar e é condenado ao Hades, o que significa: a víbora, aqui, mais uma vez, é o desejo pelo proibido. Se lembrarmos, também, Freud, pode ser a pulsão pela morte, mais uma vez, alegoria do gozo. Há toda uma sensualidade aí: a víbora ronda a cama, serpenteia. Ela pode ser, também, um arquétipo da genitália masculina. Ela crava seus dentes no seio feminino, podendo, também, ser representado pelo corpo. É um “instante apoteótico”, orgásmico, epifânico, um lapso antes da expulsão do jardim das delícias como “Nem Cleópatra experimentou”.

Do terceiro capítulo, “Ascensão”, colhemos este:

Ritual Tupiniquim

A praia recebe do mar
Homens errantes e exaustos.
Recolhidos pelas guerreiras,
Os corações são postos ao sol para secar.

Enquanto elas cantam e dançam,
eles cintilam, pulsam, ardem,
sentem desejo. As carnes quentes
encontram peitos receptivos,
se abrigam e brotam...
A coisa geminada vira gente.

É importante notar que a autora, além de literata, é ambientalista, e também engajada nas causas indígenas. Não é a primeira vez que Renata Bomfim se utiliza dessa temática, colocada neste poema, cremos, como chancela ao capítulo: mais uma vez, ritual. O rito, o canto iniciático, a guerra, tudo tão presente na obra, tudo tão, aparentemente, caro ao masculino, é transportado para o universo feminino. Aqui, podemos pensar, em termo de mitemas, às amazonas. Elas são, porém, “tupiniquins”, ou seja, o poema traz, também, elementos de brasilidade, como uma ode à força da mulher brasileira, latino-americana, mestiça.

É interessante notar, justamente, essa alteridade: os homens estavam “errantes e exaustos”; eles são “recolhidos pelas guerreiras”; o coração deles é “posto ao sol para secar”. Há uma clara inversão de lugares comuns, como o sexo masculino como o mais forte, por exemplo. Os corações postos ao sol aludem a um canibalismo e a dança das mulheres, sempre sensual, nos remete a um ritual de antropofagia que, em um sentido figurado, subverte o sentido: não são os homens que comem as mulheres, mas as mulheres que comem os homens.

O fim, portanto, será o milagre da vida: “a coisa germinada vira gente”, ou seja, a mulher, aqui, não é apenas uma imagem de força, mas, também, como um campo fértil que abriga a semente masculina. Ela é um ser dotado para ser vida e gerar, também, outra vida.

Anaximandro Amorim é membro da Academia Espírito-santense de Letras e mestrando em Estudos Literários – UFES.

Texto originalmente publicado no site TERTÚLIA CAPIXABA. Esse excelente site, capitaneado pelo amigo escritor Pedro Nunes, é depositário de importantes textos de escritores nascidos e radicados no ES, fica a dica, façam uma visita!

17/02/2023

1ª Roda Verde de Leitura: "O EMPAREDADO" (fragmentos)/ CRUZ SOUSA (1861-1898).

 

Ah! Noite! Feiticeira Noite! Ó Noite misericordiosa, coroada no trono das Constelações pela tiara de prata e diamantes do Luar, Tu, que ressuscitas dos sepulcros solenes do Passado tantas Esperanças, tantas Ilusões, tantas e tamanhas Saudades, ó Noite! Melancólica! Soturna! [...] Uma tristeza fina e incoercível errava nos tons violáceos vivos daquele fim suntuoso de tarde aceso ainda nos vermelhos sanguíneos, cuja cor cantava-me nos olhos, [...] Mas as ardentes formas da luz pouco a pouco quebravam-se, velavam-se e os tons violáceos vivos, destacados, mais agora flagrantemente crepusculavam a tarde, que expirava anelante, num anseio indefinido, vago, dolorido, de inquieta aspiração e de inquieto sonho... [...] Era aquela, assim religiosa e enevoada, a hora eterna, a hora infinita da Esperança... [...] Vinha-me à flor melindrosa dos sentidos a melopeia, o ritmo fugidio de momentos, horas, instantes, tempos deixados para trás na arrebatada confusão do mundo. [...] Ah! àquela hora era bem a hora infinita da Esperança!

De que subterrâneos viera eu já, de que torvos caminhos, trôpego de cansaço, as pernas bambaleantes, com a fadiga de um século, recalcando nos tremendos e majestosos Infernos do Orgulho o coração lacerado, ouvindo sempre por toda a parte exclamarem as vãs e vagas bocas: Esperar! Esperar! Esperar! Porque estradas caminhei, monge hirto das desilusões, conhecendo os gelos e os fundamentos da Dor, dessa Dor estranha, formidável, terrível, que canta e chora Réquiens nas árvores, nos mares, nos ventos, nas tempestades, só e taciturnamente ouvindo: Esperar! Esperar! Esperar! [...] Elevando o Espírito a amplidões inacessíveis, quase que não vi esses lados comuns da Vida humana, e, igual ao cego, fui sombra, fui sombra! Como os martirizados de outros Gólgotas mais amargos, mais tristes, fui subindo a escalvada montanha [...] De outros Gólgotas mais amargos subindo a montanha imensa, — vulto
sombrio, tetro, extra-humano! — a face escorrendo sangue, a boca escorrendo sangue, o peito escorrendo sangue, as mãos escorrendo sangue, o flanco escorrendo sangue, os pés escorrendo sangue, sangue, sangue, sangue, [...] E, abrindo e erguendo em vão os braços desesperados em busca de outros braços que me abrigassem; e, abrindo e erguendo em vão os braços desesperados que já nem mesmo a milenária cruz do Sonhador da Judéia encontravam para repousarem pregados e dilacerados, fui caminhando, caminhando[...] [...]Era mister que me deixassem ao menos ser livre no Silêncio e na Solidão. Que não me negassem a necessidade fatal, imperiosa, ingênita de sacudir com liberdade e com volúpia os nervos e desprender com largueza e com audácia o meu verbo soluçante, na força impetuosa e indomável da Vontade. O temperamento que rugia, bramava dentro de mim, esse, que se operasse: — precisava, pois, tratados, largos in-fólios, toda a biblioteca da famosa Alexandria, uma Babel e Babilônia de aplicações científicas e de textos latinos, para sarar...

[...] O temperamento entortava muito para o lado da África: — era necessário fazê-lo endireitar
inteiramente para o lado Regra, até que o temperamento regulasse certo como um termômetro!
[...] Insipientes, uns, obscenamente cretinos, outros, devorados pela desoladora impotência que os torna lívidos e lhes dilacera os fígados, eu bem lhes percebo as psicologias subterrâneas, bem os vejo passar, todos, todos, todos, d’olhos oblíquos, numa expressão fisionômica azeda e vesga de despeito, como errantes duendes da Meia-Noite, [...] Almas, afinal, sem as chamas misteriosas, sem as névoas, sem as sombras, sem os largos e irisados resplendores do Sonho — supremo Redentor eterno! Tudo um ambiente dilacerante, uma atmosfera que sufoca,
um ar que aflige e dói nos olhos e asfixia a garganta como uma poeira triste, muito densa, muito turva, sob um meio-dia ardente, [...] Eles riem, eles riem e eu caminho e sonho tranquilo! Pedindo a algum belo Deus d’Estrelas e d’Azul, que vive em tédios aristocráticos na Nuvem, que me deixe serenamente e humildemente acabar esta Obra extrema de Fé e de Vida!

[...] O que eu quero, o que eu aspiro, tudo por quanto anseio, obedecendo ao sistema arterial das minhas Intuições, é a Amplidão livre e luminosa, todo o Infinito, para cantar o meu Sonho, para sonhar, para sentir, para sofrer, para vagar, para dormir, para morrer, agitando ao alto a cabeça anatematizada, como Otelo nos delírios sangrentos do Ciúme... Agitando ainda a cabeça num derradeiro movimento de desdém augusto, como nos cismativos ocasos os desdéns soberanos do sol que ufanamente abandona a terra, para ir talvez fecundar outros mais nobres e ignorados hemisférios... 
[...] Ah! Destino grave, de certo modo funesto, dos que vieram ao mundo para, com as correntes secretas dos seus pensamentos e sentimentos, provocar convulsões subterrâneas, levantar ventos opostos de opiniões, [...]O mundo, chato e medíocre nos seus fundamentos, na sua essência, é uma dura fórmula geométrica. [...] Eu não pertenço à velha árvore genealógica das intelectualidades medidas, dos produtos anêmicos dos meios lutulentos, espécies exóticas de altas e curiosas girafas verdes e spleenéticas de algum maravilhoso e babilônico jardim de lendas...

Num impulso sonâmbulo para fora do círculo sistemático das Fórmulas preestabelecidas, deixei-me pairar, em espiritual essência, em brilhos intangíveis, através dos nevados, gelados e peregrinos caminhos da Via-Láctea... E é por isso que eu ouço, no adormecimento de certas horas, nas moles quebreiras de vagos torpores enervantes, na bruma crepuscular de certas melancolias [...]talvez acordes da grande Lira noturna do Inferno e das harpas remotas de velhos céus esquecidos, murmurar-me:
— “Tu és dos de Cam, maldito, réprobo, anatematizado! Falas em abstrações, em Formas, em Espiritualidades, em Requintes, em Sonhos! Como se tu fosses das raças de ouro e da aurora, se viesses dos arianos, depurado por todas as civilizações, célula por célula, tecido por tecido, cristalizado o teu ser num verdadeiro cadinho de ideias, de sentimentos — direito, perfeito, das perfeições oficiais dos meios convencionalmente ilustres!

[...]
Artista! Pode lá isso ser se tu és d’África, tórrida e bárbara, devorada insaciavelmente pelo deserto,
tumultuando de matas bravias, arrastada sangrando no lodo das Civilizações despóticas, torvamente amamentada com o leite amargo e venenoso da Angústia! A África arrebatada nos ciclones torvelinhantes das Impiedades supremas, das Blasfêmias absolutas, gemendo, rugindo, bramando no caos feroz, hórrido, das profundas selvas brutas, a sua formidável Dilaceração humana! [...]

Artista?! Loucura! Loucura! Pode lá isso ser se tu vens dessa longínqua região desolada, lá do fundo exótico dessa África sugestiva, gemente, Criação dolorosa e sanguinolenta de Satãs rebelados, dessa flagelada África, grotesca e triste, melancólica, gênese assombrosa de gemidos, tetricamente fulminada pelo banzo mortal; dessa África dos Suplícios, sobre cuja cabeça nirvanizada pelo desprezo do mundo Deus arrojou toda a peste letal e tenebrosa das maldições eternas! A África virgem, inviolada no Sentimento, avalanche humana amassada com argilas funestas e secretas para fundir a Epopeia suprema da Dor do Futuro, para fecundar talvez os grandes tercetos tremendos de algum novo
e majestoso Dante negro! Dessa África que parece gerada para os divinos cinzéis das colossais e prodigiosas esculturas, para as largas e fantásticas Inspirações convulsas de Doré - inspirações inflamadas, soberbas, choradas, soluçadas, bebidas nos Infernos e nos Céus profundos do Sentimento humano. Dessa África cheia de solidões maravilhosas, de virgindades animais instintivas, de curiosos fenômenos de esquisita Originalidade, de espasmos de Desespero, gigantescamente medonha, absurdamente ululante — pesadelo de sombras macabras — visão valpurgiana de terríveis e convulsos soluços noturnos circulando na Terra
e formando, com as seculares, despedaçadas agonias da sua alma renegada, uma auréola sinistra, de lágrimas e sangue, toda em torno da Terra... 
Não! Não! Não! Não transporás os pórticos milenários da vasta edificação do Mundo, porque atrás de ti e adiante de ti não sei quantas gerações foram acumulando, acumulando pedra sobre pedra, pedra sobre pedra, que para aí estás agora o verdadeiro emparedado de uma raça. Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás ansioso, aflito, numa parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a primeira, te mergulhará profundamente no espanto! Se caminhares para a frente, ainda nova parede, feita de Despeitos e Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará ao alto! Se caminhares, enfim, para trás, ah! ainda, uma derradeira parede, fechando tudo, fechando tudo — horrível! — parede de Imbecilidade e Ignorância, te deixará num frio espasmo de terror absoluto...

E, mais pedras, mais pedras se sobreporão às pedras já acumuladas, mais pedras, mais pedras... Pedras destas  odiosas, caricatas e fatigantes Civilizações e Sociedades... Mais pedras, mais pedras! E as estranhas paredes hão de subir, — longas, negras, terríficas! Hão de subir, subir, subir mudas, silenciosas, até às Estrelas, deixando-te para sempre perdidamente alucinado e emparedado dentro do teu Sonho...

Ps: Fragmentos do texto integral que serão lidos na Roda Verde de Leitura.

15/02/2023

Posse da escritora Renata Bomfim na Academia Espírito-santense de Letras (AEL) será realizada no Centro Cultural Triplex Vermelho, no Coração da capital capixaba.

 


Amigos e amigas, é com alegria que, no dia 21 de março, às 19 horas, tomarei posse como acadêmica efetiva na Academia Espírito-santense de Letras (AEL), cadeira nº 7 . O Patrono dessa cadeira é José Fernandes da Costa Pereira Junior. Intelectual nascido em 1833, no RJ, Costa Pereira foi Bacharel em Direito e, em 1861, assumiu o cargo de presidente da Província do Espírito Santo, presidindo, ainda, as províncias do Ceará, de São Paulo e do Rio Grande do Sul. Depois, Legislou como deputado pelo ES e atuou como Ministro do Império nas pastas da Guerra, da Agricultura, do Comércio e de Obras.

A posse será realizada no CENTRO CULTURAL TRIPLEX VERMELHO, um prédio histórico que abrigou o Teatro Melpômene e, posteriormente, após a demolição deste por conta de um incêndio, foi construído o Hotel Europa, renomeado depois como Hotel Imperial. Agora, restaurado, tornou-se um espaço para arte e cultura e tem reunido pensadores e artista do ES e de outros estados. 

O Triplex Vermelho está localizado em frente à tradicional Praça COSTA PEREIRA, homenagem ao patrono da cadeira nº 7, um espaço no coração de Vitória, que faz esquina com a Rua 7 de setembro e Treze de Maio e Graciano Neves.

Também ocuparam a cadeira n º 7,  ARISTEU BORGES DE AGUIAR,  um vitoriense que nasceu em 1892 e teve um papel destacado na política do ES. Foi Promotor Público, Procurador Geral do Estado, Diretor da Imprensa Oficial e Secretário da Presidência do Governo Florentino Avidos. Posteriormente, Foi eleito Presidente do Estado do Espírito Santo, falecendo em 1928. Posteriormente, PLACIDINO PASSOS, nascido em 1892. Capixaba, também foi jurista e em 1947 foi eleito Deputado Estadual, o seu mandato se estendeu até 1951. Placidino faleceu em 1984. 

HOMERO MAFRA, mineiro de Itanhandú, sucedeu Placidino. Nascido em 1823, foi Bacharel em Direito formado pela ela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro e fez carreira como Magistrado no ES, atuando como Juiz de Direito em diversas comarcas. Entre os anos de 1974 até 1983 ocupou o cargo de Desembargador. Humanista, atuou, como Professor de Literatura e de Direito Civil, unindo o amor pelas letras à área jurídica. 

VALDIR VITRAL, quarto ocupante da cadeira 7, nasceu em Alegre, região Sul do ES, em 1926, Foi Juiz de Direito e professor. Ele foi professor de Jeanne Bilich, e descrito como um “mestre, precioso e confiável amigo”. Valdir Vitral produziu uma obra jurídica profícua, além de textos literários. Faleceu em 2012. A aluna ocupou a cadeira deixada vaga por seu professor. 

JEANNE BILICH, profissional multifacetada nascida no Rio de Janeiro em 1948, é conhecida como a “Dama do jornalismo capixaba". Ela foi a primeira apresentadora do Telejornal da Rede Gazeta, em 1976, atuando, ainda como redatora, radialista e assessora de comunicação nos mais destacados veículos de comunicação do Espírito Santo. No campo literário lançou as obras dois livros de crônicas, Zeitgeist – O Espírito do Tempo (2009) e Viajantes da nave Tempo (2013), além de uma produção rica em textos para sites, ensaios, coletâneas.

Serei a sexta pessoa a ocupar a cadeira nº 7, ciente de que essa ocupação é transitória e pretendo aproveitar cada momento, sei que em algum instante outra pessoa pegará de minhas mãos o bastão e o levará adiante. A literatura tem o poder de eternizar momentos,e é graças as palavras que me tornarei "imortal", palavras que dão forma à minha poesia e um sentido especial à minha existência. 

Pretendo contribuir para com essa instituição que completou 102 anos de existência, e ajudar a ampliar o seu quadro feminino. No dia 21 de março, Dia Mundial das Florestas, receberei a tarefa de suceder Jeanne Bilich, desafio que aceito com alegria, levando adiante o compromisso para com o ofício de escrever, desafiar, romper silêncios e de empenhar a minha voz onde ela for mais necessária, especialmente em prol da arte, da natureza e da justiça social.

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Renata Bomfim

14/02/2023

RPPNs para sempre: contos, encantos e desafios (baixe o e-book gratuitamente)

 

DIA NACIONAL DAS RPPNS SERÁ CELEBRADO COM LANÇAMENTO DE LIVRO COM RELATOS DE RPPNISTAS.

O dia 31 de janeiro, Dia Nacional das Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs), será celebrado com o lançamento do livro RPPNs para sempre: contos encantos e desafios, a live, que será realizada no canal da Confederação Nacional de RPPNs, conta com a participação de RPPNistas de várias partes do Brasil. Estão confirmadas as presenças de Márcia Hirota, presidente da fundação SOS Mata Atlântica, Rodrigo Agostinho, Presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (IBAMA). 

A mediação do Bate papo será feita pela escritora e RPPnista Renata Bomfim e do Engenheiro floresta Beto Mesquita.

O livro RPPNs para sempre: contos, encantos e desafios objetiva dar visibilidade a essa categoria de unidade de conservação que demonstra o engajamento crescente da sociedade civil na preservação da natureza, bem como, reconhecer o valor de cidadãos e cidadãs que não medem esforços para tornar o mundo um lugar melhor.

O livro, dedicado aos RPPNistas de todo o Brasil, possui 460 páginas que colocam em destaque histórias de criação, singularidades, belezas naturais e desafios enfrentados por proprietários e administradores no decorrer da gestão. Integram essa edição, 58 relatos que contemplam 72 RPPNs, que somadas totalizam 36.521 hectares. Cada relato é precedido por um mapa ilustrativo que mostra a localização da RPPN em relação ao mapa do Brasil, estado e município.

Respeitou-se a variação linguística dos relatos, que estão registrados em diferentes gêneros textuais. Além dos relatos, todos eles acompanhados de imagens belíssimas das reservas, o livro abarca dados técnicos relevantes sobre o desenvolvimento do modelo RPPN desde que passou a integrar o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC).

Histórias de determinação e coragem vivenciadas por RPPNistas nos biomas da Mata Atlântica, Cerrado, Caatinga, Pampa e Amazônia, foram representadas pela imagem da fêmea de beija-flor Heliodoxa rubricauda, escolhida para a capa, de autoria do fotógrafo e RPPNista Sándor Kiss.

 O leitor, certamente ficará encantado com a diversidade de narrativas, como a história da RPPN Não Me Deixes, em Quixadá, no Ceará, que remonta ao final do século XIX e pertenceu a escritora Raquel de Queiróz, e da RRPN Parque do Zizo, criada para homenagear, valorizar a memória e cuidar do legado do Zizo, Luiz Fogaça Balboni, líder revolucionário de 24 anos, vitimado em 1969, tempos de chumbo, pelas forças de repressão da ditadura militar que se instalou no Brasil.

 De acordo com Beto Mesquita, autor do prefácio: “É gente que sonha, mas que não se contenta só em sonhar. São seres humanos que, entendendo a beleza e o sagrado de compartilhar este Planeta com tantos e tão diversos seres de outras espécies, famílias e reinos, têm dedicado sua vida à proteção da natureza. Dedicam suas vidas e seu patrimônio porque entenderam que a natureza é, de fato, o nosso maior patrimônio”. Um sonho, um desejo, um objetivo, um legado, são variadas as motivações que levam à criação de uma RPPN, sendo que das maiores, sempre está presente o amor pela natureza.

 Essa publicação foi idealizada por um grupo de RPPNistas e realizada de forma voluntária com a ajuda de colaboradores que apoiam a causa, a sua distribuição será realizada de forma gratuita no formato e-book, com vistas a promover um intercâmbio de conhecimentos entre as RPPNs e incentivar outras pessoas a criarem RPPNs.

Ficha técnica:

Título do livro: RPPNs para sempre: contos, encantos e desafios.
Páginas: 460

ISBN: 97866599954108

"Divina Moqueca Capixaba" (Renata Bomfim)

Em 2011 tive a felicidade de saber que meus poemas sobre os alimentos, em especial as odes, estavam sendo utilizados nos saraus realizados pela Associação Internacional de Nutrição (World Nutrition). A publicação inicial foi feita por Fábio Gomes, a quem agradeço imensamente por ter sido o primeiro a acolher as minhas poesias nesse contexto de discussão, e posteriormente desenvolvido no artigo publicado na World Nutrition, February 2013, Volume 4, Number 2, por Geoffrey Cannon (Food, nutrition, health and well-being. What I believe, and other stories).

A minha hortinha poética continua crescendo e gerando alimentos para o espírito, mostrando o aspecto sagrado da terra e dos seus frutos , bem como, mostrando que a desnutrição e a fome são aspectos hediondos do egoísmo e da miséria humana. 

O alimento é coisa sagrada. Gaia, numa expressão de generosidade suprema, nos alimenta e sustenta. Alimento também é amor e, não por acaso, "comemos" e nos transformamos em verdadeiro baquete nos relacionamentos amorosos. A mercantilização da vida é uma corrupção do ser, de quem o ser humano realmente é em essência. 

O caso específico dos nossos irmãos indígenas Yanomamis, mostrou esse avesso do avesso do Brasil que, num surto coletivo, elevou aos mais altos postos de comando uma extrema direita fascista, corrosiva e corrupta. Chamo essa gente nociva de "dedos-podre", pois, tudo o que tocam definha e morre. 

A poesia, como expressão de insurgência da palavra-vida, foi vilipendiada e silenciada, agora ela tem despontado como uma bandeira importante, é preciso construir um país, CRIAR NOVAS NARRATIVAS, que nos reinventemos compromissados, criando o que ainda não existe: a justiça social. É preciso resgatar a dignidade e a alegria do povo brasileiro e, especialmente dos mais brasileiros dos brasileiros, dos donos e cuidadores da terra e das florestas, os povos indígenas.

Observei que o poema "Moqueca Capixaba", traduzido por Fábio Gomes para o inglês, foi publicado na China, levando um pouco da cor, da beleza do sabor da tradição da minha terra capixaba para o mundo.

Segue o poema nas versões português-inglês e o link para o artigo. 

Moqueca Capixaba 

She becomes hot so slowly, 

(Ela vai sendo aquecida, lenta e)

 gently, on a low flame,

(delicadamente, em fogo brando.) 

At the table, the loved one, 

(Sobre a mesa, o namorado,) 

warmed and amorous, awaits. 

(temperado com amor, espera.) 

Daughter of black native earth, 

(Pretinha de barro, filha de indio)

 In your lap, the fruit of the sea 

(seu colo acolhe o fruto do mar) 

is bubbling now, heavy with aroma. 

(fervilhante, emana seu odor.) 

And all of us wait, eager. 

(Esperam-na todos, deleitantes.) 

Now, a good table wine, 

(Um bom vinho, à mesa,) 

then a time of silence

(um silêncio respeitoso,)

 while mouths moisten 

(as bocas anseiam e marejam) 

like sails, experiencing the sea. 

(como velas errantes ao mar.)

Now it is the loved one that 

(E o namorado vai sendo devorado,) 

is devoured, transubstantiated. 

(transubstanciação) 

With Holy Spirit in our mouths, 

(Espírito Santo no céu da boca.) 

Moqueca capixaba is divine.

Divina moqueca capixaba!