11/12/2024

Entrevista com a escritora Renata Bomfim (por Francis Kurkievicz)



RENATA BOMFIM E O CORAÇÃO DA POESIA

Entrevista concedida à Francis Kurkievicz*

Renata Bomfim nasceu no estado do Espírito Santo - Brasil, no dia 21 de novembro de 1972, no mesmo mês e ano em que as Nações Unidas promoveram uma das maiores Conferências sobre o Meio Ambiente. Certamente este período da história influenciou e determinou, de alguma forma, o destino daquela menina. Nas suas próprias palavras Renata, agora madura e consciente de sua trajetória, se define: “Sou ativista ambiental com forte atuação na defesa da Mata Atlântica. Em 2007 criei, juntamente com o meu marido Luiz, a Reserva Natural Reluz. Nessa reserva, além da preservação ambiental, realizamos trabalhos de educação ambiental.

Em 2017 transformamos a Reserva em uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN). Os trabalhos na RPPN foram crescendo, reunindo pessoas e, em novembro de 2019, criamos o Instituto Ambiental Reluz. Esse Instituto era um sonho que eu acalentava há muitos anos, enfim ele se tornou uma realidade graças às pessoas que aceitaram vir sonhar junto comigo e a agir, contribuindo para com a preservação do nosso planeta”. Renata também se afirma vegetariana e milita pelo Abolicionismo Animal. Poeta, ensaísta e doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Renata Bomfim desenvolveu importantes pesquisas no campo da poesia Iberoamericana. Na ocasião, fez um estudo comparativo entre as poéticas de Florbela Espanca (poeta portuguesa) e de Rubén Darío (poeta nicaraguense). Renata também possui um diploma de bacharel em Artes pela UFES, mais tarde se especializando em Psicologia Analítica Junguiana, Arteterapia na Saúde e na Educação e em Psicossomática. Além dessa formação acadêmica, Renata fez uma formação livre em Hatha Yoga e Raja Yoga, tornando-me instrutora em processos de Meditação
Tradicional Indiana.

Entre os anos de 2018 e 2020 Renata presidiu a Academia Feminina Espírito-santense de Letras (AFESL), onde ocupou a cadeira de nº 16, presidindo também a 6ª Feira Literária Capixaba, na UFES, em 2019. Foi professora no Centro de Letras da UFES entre os anos de 2016 e 2018, onde ministrou, entre muitas disciplinas, os Laboratórios de Literatura de Autoria Feminina em Língua Portuguesa e Literatura no ES.

Renata Bomfim é autora de quatro livros de poesias Mina (2010), Arcano Dezenove (2012), Colóquio das Árvores (2015) e O Coração da Medusa (2021), escreve com frequência artigos e ensaios literários que tem sido publicados em diversos periódicos pelo mundo. Há vinte anos vem trabalhando como arte terapeuta e se dedicando ao seu blog literário Letra & Fel; onde, além de escrever, acolhe contribuições literárias de diversos escritores nacionais e internacionais.

FK - Já começo fazendo uma pergunta nada diplomática: como é ser mulher,
feminista, escritora, ativista, professora, terapeuta, blogueira, artista plástica,
palestrante, resenhista, e de esquerda, num mundo ainda imerso neste
patriarcado neoliberal que está flertando com o fascismo? Como Renata Bomfim
se autodefine?
RB – “Deixa-me, deixa-me, fonte!” / Dizia a flor a chorar:/ “Eu fui nascida no monte.../ Não me leves para o mar.” // E a fonte, sonora e fria, / Com um sussurro zombador, / Por sobre a areia corria, / Corria levando a flor”. A vó Abigail costumava recitar esses versos para mim quando eu era criança e me parece que eles acabaram se tornando uma espécie de profecia. Essa florzinha aí sou eu levada pela correnteza-vida mundo afora. Esse “ser levada pela correnteza” dá a dimensão do “ser mulher” numa sociedade patriarcal, preconceituosa e misógina, que nega, tanto ao sexo feminino, quanto às pessoas que reconhecem dentro desse espectro, o direito de serem quem elas quiserem ser. O desafio é não afogar, é resistir e construir formas próprias de ser e de estar no mundo. Minha bisavó Otília, nasceu no dia em que foi promulgada a Lei Áurea, ouvi histórias sobre ela, o bordão da sua vida era: “nasci forra”. Enfim, essa mulher que vos fala mistura o sangue de africanos escravizados, mas, por parte de mãe, sangue de colonizadores, na certidão de nascimento jaz a determinação: cor parda!

Peço licença para falar um pouquinho sobre a gênese dos meus mal-estares, e são muitos, e algumas inconformidades e revoltas que acabaram me levando para um caminho transdisciplinar de atuação no mundo. Me recordo que, na década de 1990, comecei a atuar no campo da saúde mental como artista plástica, dava oficinas de pintura. O fato de não ser psicóloga, médica, enfermeira, ou outra formação do campo da assistência, me colocou em um lugar novo, pouco conhecido pelas pessoas e aindaem processo de validação pela academia. Eu entrei no campo da saúde mental atuando no primeiro Centro de Atenção Psicossocial de Vitória, o CAPS-Ilha de Santa Maria, que na época ainda estava em processo de estruturação. No CAPS-Ilha, eu ministrei a oficina de pintura, Eliezer Almeida a oficina de teatro e Sérgio Blank a de literatura. Foi o amigo escritor Sérgio Blank quem me apresentou a obra de Carmélia Maria de Sousa. Depois de formada, atuei na estruturação de outros centros de atenção em saúde mental de Vitória destinados a crianças e adolescentes, um deles no HUCAM e outro na UFES. Essas experiências me deram segurança para abrir o meu primeiro consultório particular de arteterapia e essa se tornou a minha profissão, o meu ganha pão. Em 2000, tive a honra de estagiar no Museu de Imagens do Inconsciente, fundado pela Dra. Nise da Silveira. Paralelo ao trabalho como arteterapeuta, resgatava animais abandonados.

O ativismo ambiental começou de fato em 2007, com a criação da Reserva Natural Reluz, em Marechal Floriano. Passei a ser uma ativista ambiental sem ser do campo das ciências naturais, outro grande desafio. Infelizmente, pude observar que o machismo também macula esse campo de atuação. A ideia inicial com a criação da Reserva Natural Reluz era fazer a preservação do remanescente de Mata atlântica e abrir um ateliê, entretanto, a vivência da terra elencou novas demandas como lutar contra a atuação de caçadores, traficantes de pássaros e de plantas e extratores ilegais de palmito na floresta. Tinha que fazer uma escolha, escolhi mergulhar de cabeça na causa. E lá foi a florzinha da vovó, mais uma vez, levada para as paragens da militância ambiental. Em se tratando de meio ambiente, não tem meio termo, não existe meia implicação. Ser ambientalista não tem glamour, acredito que ninguém escolhe ser persona non grata e estar sempre sob os olhos da bandidagem, especialmente no momento em que há um surto de clubes de tiros e o poder maior do estado nacional incentiva a caça. Status temerário, estamos quase sempre metido em alguma pendenga com o sistema, para quem a natureza é apenas um recurso a ser explorado. E tem mais, mexeu com os meus macacos-prego, mexeu comigo, é chamar para a briga! O envolvimento com a causa ambiental exige uma espécie de desprendimento das coisas individuais e um foco no coletivo, pois, desarmados, colocamos o nome nas denúncias e a cara nos jornais. Desde que esse governo genocida subiu ao poder, liberou as armas e incentivou os clubes de tiros a situação se tornou pior e, no meu caso, tive que ingressar com mais força na militância junto ao poder público contra o desmatamento e a caça nas áreas naturais. Já sofremos represálias de caçadores. Mas, onde entra a literatura nisso tudo? O amor pela leitura nasceu bem cedo, nem lembro, mas na adolescência eu escrevia pensamentos e versos em caderninhos. Foi a paixão pela poesia, e em especial, pela poesia de Florbela Espanca (1894-1930) que, em 2006, me levou para o Centro de Letras da UFES, onde fiz o mestrado e doutorado. Nessa altura da história, já haviam sedado as mãos a artista, a terapeuta e a ativista ambiental. A pesquisa da poesia me deu o impulso para publicar a minha primeira obra, Mina (2010). A consciência de gênero eu agradeço à literatura. Eu vivenciei muitas situações de violência e preconceito na vida, mas foi a partir da imersão no universo literário que reconheci que o feminismo era uma necessidade íntima e de sobrevivência.Outras experiências de vida me impactaram bastante e podem ser rastreadas no que escrevo. Bem, depois de rolada como um seixo, levada pela correnteza-vida, me percebo uma pessoa aberta, agradecida e com muita vontade de compartilhar, parceriar... Nesse momento crucial da história, eu me posiciono abertamente contra esse governo de morte que odeia a cultura, os artistas, a natureza, as comunidades tradicionais e originárias, as mulheres, os negros, os brasileiros em geral. Dentro do campo literário sou rechaçada por uma ala bolsonarista que tentou fazer da minha vida um inferno, mas não conseguiu graças a fé que tenho em Deus. Eu busco dar a minha contribuição, mesmo que bem pequena, ajudando na preservação ambiental e atuando ativamente em coletivos ambientais e culturais. Tudo o que sou é coisa política e converge para a poesia, espero sempre atuar como quem planta um jardim ou escreve uma carta deamor.

FK – Este prolongado estado pandêmico, incrementado por uma necropolítica
estatal, insuflado por uma ameaça de guerra atômica, tingido com matizes
crepusculares cármicos... como isso afeta o poeta que você é? Como você tem
passado esses últimos dois anos de espantosos “plot twist”? Algo te surpreendeu
ou a intuição do poeta já colocava tudo em perspectiva?
RB – Penso que a visão de mundo e a relação da pessoa com o sagrado são determinantes para o enfrentamento das situações da vida. Eu não tenho religião. Eu nasci inserida numa religião que só fez me oprimir, acabei encontrando Deus longe dos espaços dogmáticos. O cristianismo esotérico, o budismo, o hinduísmo e o kardecismo me ajudaram muito a resolver a inquietação do espírito e percebi que Deus está logo ali, virando a esquina, embaixo da marquise, dormindo sob um pedaço de papelão com febre e fome, no orfanato, no olhar desesperado do animal vítima do tráfico, na árvore que é cortada porque “suja a calçada”. Quando a pandemia chegou, o meu Ateliê de arteterapia estava a todo vapor com as oficinas de bordado mexicano, eu precisei fechá-lo. Foi difícil em se tratando de grana, mas o sofrimento e as dificuldades de uma grande parte da população foi tanta que não posso me queixar, tive teto e alimento. Durante o período inicial da pandemia eu escrevi textos esparsos, mas não cheguei a elaborar nenhum livro. Tenho certeza que a fé me ampara, e acredito que ela me ajuda também a ter uma revolta qualificada. Eu não quero criar uma bolha e viver nela, acredito que isso faria a minha encarnação atual um desperdício, por isso eu direciono a minha revolta como uma flecha, e agora ela está direcionada para a política, como você bem destacou, para essa necropolítica que usa o santo nome do Cristo para expropriar e matar. Fizeram uma “marcha pra Jesus”, aqui em Vitória, com um carro alegórico que era uma pistola gigante, aprisionaram e pintaram pombos de verde e amarelo para soltar no evento que arrastou pessoas que se autodenominam “de bem”, isso me revolta e me pergunto como essas pessoas não enxergam que esse governo trabalha para acabar com a saúde, com a educação, que assassina indígenas, ataca a ciência, grila terras, desmata, enfim, desgraça pouca é bobagem! Tudo isso me afeta enormemente, ver pessoas sofrendo, perdendo os empregos, o número assombroso de mortes, tragédia orquestrada não apenas por incompetência e ingerências destes fascistas, mas pelo desprezo que ele tem pela vida e pelas pessoas, em especial pelas pessoas pobres.
Confesso que houve momentos bastante difíceis e que, enquanto poeta, a minha antena captou muita coisa que, apenas agora, em 2022, venho elaborando em uma nova obra. Quem acompanha a minha escrita desde o Mina, pode observar algumas mudanças estruturais, tanto que o meu livro mais recente, O Coração da Medusa (2021), flerta com a prosa e o teatro. Não se trata de nenhuma inovação literária, pois, os textos contemporâneos são afeitos ao hibridismo, mas é uma inovação dentro da minha produção.

FK – Como professora e escritora você tem um trânsito livre no “mundo sem
fronteiras da literatura”, quais suas impressões sobre a poesia atual? Quais
poetas capixabas devemos prestar mais atenção? Que poéticas o Brasil está
revelando? Quais poetas latino-americanos estão fazendo a diferença neste
momento?
RB – Posso dizer que tenho algum trânsito, mas esse ainda não é totalmente livre. Veio agora à mente uma frase da Clarice Lispector: “Liberdade é pouco, o que desejo ainda não tem nome”. As instituições culturais continuam patriarcais, e eu preencheria sem dificuldades páginas contando histórias que vivenciei como presidente da Academia Feminina Espírito-santense de Letras. A minha gestão, por ser progressista, foi odiada e muito combatida, o que incluiu uma denúncia de roubo da Lei Rouanet à Polícia Federal [enfim, a denúncia provou-se ser caluniosa]. Dentro das academias de letras há muitos escritores (as) que apoiam esse governo fascista e optei por deixar de frequentar alguns espaços. Como podem ver, o trânsito, nesse nosso mundinho que adoramos, nunca esteve tão tenso. Eu tenho uma visão clara do lugar que ocupo como mulher-escritora e como intelectual, hoje, esse lugar é o da resistência. A poesia contemporânea revisita o passado de forma irônica, o cânone se viu obrigado a dialogar com a periferia e muito dessa transformação graças às mulheres escritoras. A transgressão feminina renovou a literatura e está acendendo uma luz nos variados campos do saber humano.

Observo a poesia acolhendo vozes imprescindíveis e insurgentes, como as dos grupos minoritários. Adoro os Slams e os saraus com pessoas de diferentes origens e ideias, enfim, vejo a poesia florescer, a despeito da brutalidade e ignorância desse momento. Tem gente que nem me dou o trabalho de ler, mas há muitos escritores que admiro, alguns já consagrados e outros ingressando agora no universo literário, Por exemplo, me encantou pela leveza da linguagem o livro de estreia da Vitória Sainohira, “Meu Cântico à Natureza”. A lista de nomes de escritores que acho muito bons no ES é larga, citar alguns me obrigaria deixar de citar outros. Mas vou compartilhar poetas que li mais recentemente: Anaximadro Amorim, Lívia Coberlari, Juanne Vailante, Stel Miranda, Mara Coradelo. Eu destacaria o trabalho dos Slams Nísia e Marielle e dos coletivos de letras. Adoro ouvir a Jupter recitar. Há ainda uma turma muito bacana divulgando a poesia produzida no ES, como os amigos Saulo Ribeiro, Lia Noronha e Henrique Paris. O Letra & Fel, meu blog literário, on line desde 2007, também divulga a prata da casa e escritores de outros estados e países. O nome Letra & Fel surgiu porque ainda há quem acredite que sou um docinho, imagina, uma escorpiana... Lançamentos de livros, saraus, feiras e festivais de poesia são ocasiões propícias para se conhecer gente nova e interessante.

Nas várias edições do Festival Internacional de Poesia de Granada, conheci, além de poetas de países da América Latina, entre eles vários que tem levantado suas vozes em prol da democracia, como os nicaraguenses Francisco De Asís Fernández Arellano, Glória Gabuardi, Nicasio Urbina, Silvio Ambriggio, Gioconda Belli; os amigos poetas mexicanos Silvia Siller e Aaron Rueda; o amigo dominicano radicado em Nova York, Rei Berroa e ainda os poetas Aleyda Quevedo Rojas, do Equador; Consuelo Hernandez, da Colombia; Lety Elvir, de Honduras, e muitos outros escritores, muitos deles publicados no Letra & Fel. O meu tradutor para o espanhol, Pedro Sevylla de Juana, um amigo muito querido a quem sou eternamente grata pela parceria, também possui uma produção profícua na poesia. Poetas brasileiros são muitos e muitos muito bons! O poeta Antonio Miranda representou o Brasil comigo na FIPG, gosto muito de sua poesia, e tenho dialogado com amigos poetas de outros estados como o Remisso Aniceto, de São Paulo, o Fábio Mário da Silva, de Pernambuco, entre outros.

FK – Como Renata Bomfim compreende a Poesia? O que te move para a escrita?
Quais ideais, necessidades, perspectivas poéticas, poetas, temas abastecem o
Coração da Medusa?
RB – Gosto muito da reflexão de Octávio Paz sobre a poesia: “conocimiento, salvación, poder, abandono. Operación capaz de cambiar al mundo”. A poesia é um gênero discursivo que permite ao ser humano comunicar o incomunicável, até mesmo na prosa do dia-a-dia, por exemplo. Dizer do amor, que é “um não querer mais que bem querer”, ou “que seja infinito enquanto dure”, só a poesia mesmo. Eu vejo a poesia como uma linguagem construtora de pontes e facilitadora do diálogo em variados níveis. O Mina e o Arcano Dezenove são obras que nas quais eu estou inteira, derramada, já a partir do Colóquio das Árvores eu comecei a dedicar mais atenção a estrutura do poemário, esta tentativa pode ser observada no livro O Coração da Medusa.

Sou movida por tudo o que me afeta, ou seja, procuro não ser uma pessoa indiferente, tenho medo de como na atualidade até mesmo a barbárie periga se naturalizar, me afeta, inclusive, o mundo invisível, onde habitam duendes, fadas e incontáveis espíritos. Sempre fui uma mulher guiada por ideais, coisa minha, chamado interno que não responde a nenhuma obrigação. Não digo isso com arrogância, às vezes penso que seria interessante ter uma profissão única e focalizar a minha energia nisso, mas não consigo, faço duas, três, quatro coisas ao mesmo tempo. A necessidade é uma só, escrever, dialogar, com relação à publicação, vejo como uma consequência desse processo.

FK - Como você decide o que, como e quando escrever? Qual a sua rotina
literária? Como você organiza as ideias para o poema? Há diferenças no teor da
primeira ideia que impulsiona seu esforço e o resultado final? Qual o seu método
de trabalho literário? Como você planeja e nomeia seus livros?
RB – Não é nada muito pensado, depende do quanto uma imagem, experiência ou ideia me impacta, posso produzir, também, respondendo a algum edital ou evento. São propostas diferentes de escrita com resultados, igualmente diversos. Eu utilizo uns caderninhos de rascunho e o bloco de notas do celular para anotar versos e ideias que, posteriormente, vão sendo burilados. Geralmente, a ideia inicial é indicadora do caminho por onde o poema poderá seguir. Eu sou indisciplinada e bagunceira, não tenho um método definido, mas, pelo menos uma vez na semana, eu dedico um tempo à poesia. Às vezes tenho a sensação de que os textos vão ganhando vida própria, chega um momento que o próprio corpus passa a indicar os melhores títulos e sequências.

FK – Você é autora com uma escrita diversa, escreve desde artigos e ensaios
(publicados tanto no Brasil e quanto no exterior), e também mantém o blog LETRA
& FEL, tem em seu currículo quatro livros de poemas, Mina (2010), Arcano
Dezenove (2012), Colóquio das Árvores (2015) e O Coração da Medusa (2021).
Nesses quatro livros, cada qual tem uma personalidade bem distinta, possui um
design temático bem delineado, inconfundível, ao mesmo tempo em que um fio
temático peculiar transpassa-os e une todos eles, como uma missanga
multicolorida. Como você pensa seus livros? Como você estabelece o que cada
um deve representar e discutir? E como você consegue reuni-los num conjunto
articulado, como num mosaico significativo?
RB – Descobri, com o tempo, que publicar livros físicos para mim não é uma necessidade, talvez por ter o Letra & Fel, onde compartilho os meus textos há quinze anos. Há ainda a questão da grana, é caro publicar e grande parte da publicação fica encalhada nas estantes. Eu fico tão feliz e muito surpresa quando alguém diz que lê os meus poemas, ou quando vejo uma escola estudando minha “grande produção de quatro livros”. Quando eu era adolescente eu sonhava que um dia escreveria um livro, então, acho que superei as minhas expectativas. Conforme antecipei numa resposta anterior, na época do Mina, eu costumava reunir os poemas sem preocupações maiores, como um sentido de unidade temática, por exemplo. A produção inicial é bastante musiva. Depois da publicação do Colóquio das Árvores eu passei a curtir mais projetar a obra, obviamente, resguardando um espaço para os poemas mais viscerais, revoltados e cheios de sentimentos que vão aflorando com as vivências do dia-a-dia.

FK – O Coração Da Medusa, cuja temática problematiza as questões femininas, é
uma edição bilíngue – português e espanhol – o que te levou a realizar uma edição
em duas línguas? E por que o espanhol? Como foi essa parceria com o professor
Pedro Sevylla de Juana? E como tem sido a recepção dos leitores?
RB – Eu sempre fui apaixonada pelos mitos, fiz formação em psicologia analítica junguiana e toda a minha prática clínica se assenta sobre essa abordagem, embora tenha estudado também a psicanálise freudiana, que também utiliza muito os mitos. Então, desde a minha primeira obra publicada, utilizo a linguagem dos arquétipos para tratar vários temas. Há dois personagens que me encantam, um deles é o Frankenstein. Quando fiz a minha dissertação de mestrado eu construí uma ideia do feminino em Florbela Espanca como esse ser fragmentado, ansiando por sobreviver e amar, mas fadado à morte numa sociedade patriarcal. Outro personagem que amo é a Medusa. O Ítalo Calvino escreve um ensaio onde ele fala sobre o poder criador da Górgona. É do sangue da cabeça da Medusa que nasce o Cavalo alado Pégaso, foi graças a ela que Perseu conseguiu derrotar inimigos e monstros e conquistar o seu amor. Ser ctônico, com a cabeça adornada com serpentes, e que sofreu variadas formas de violência e
injustiça. Esse livro foi escrito numa época em que fiz várias viagens por Portugal, Espanha e Nicarágua por conta da minha tese de doutorado e participei dos Festivais Internacionais de Poesia de Granada, na Nicarágua. Eu senti uma identificação muito grande com a terra natal do poeta Rubén Darío, meu objeto de pesquisa, juntamente com Florbela Espanca, e fui acolhida pelos poetas de lá com tanto carinho que cheguei a representar o Brasil nesse Festival, considerado o maior da América Latina por seis vezes, sendo que agora recebi mais um convite, para o Festival de 2023. Fiz vários amigos poetas e pesquisadores na Nicarágua e a eles dedico os poemas do livro.

Com relação ao meu tradutor, Pedro Sevylla de Juana, o conheci por intermédio da prof.ª Ester Abreu. Ele era um leitor assíduo do Letra & Fel e se sentiu tocado pelos meus poemas, passando a traduzi-los na medida em que eu os escrevia. Daí nasceu a amizade. Pedro é um escritor com uma obra monumental, tem vinte e cinco livros publicados e é uma pessoa que tem muito interesse na cultura de outros países. Ele se encantou com a cultura capixaba, fez amizade com vários escritores e hoje é escritor correspondente na AEL. Eu estive com Pedro, Ester e Karina Foringher em Madri, e depois o Pedro veio passar uma temporada aqui no Espírito Santo. O Coração da Medusa foi uma obra construída a partir dessa parceria e diálogo. É um livro híbrido, experimental e que brinca e manipula mitos e símbolos da religião. O livro teve boa aceitação junto ao público capixaba e boa acolhida por parte dos colegas escritores de fora do Brasil, inclusive na comunidade hispanohablante que vive nos Estados Unidos.


FK – Essa pergunta eu faço para a acadêmica Renata Bomfim: Você entende que a
ciência dessacralizou o poético? As escrituras cibernéticas inauguram uma pós-
poética? O autor cibernético [algorítmico emulador – a nova tendência literária]
matou o autor físico, orgânico, real? A linguagem já não é mais uma virtude e
privilégio humanos? O que seria uma poesia pós-poética?
RB – Sim, entendo. Mas vou além, a contemporaneidade dessacralizou tudo o que há, e com a poesia não foi diferente. O contemporâneo é o lugar de todas as contradições e nele as sensibilidades são mutantes, cindidas, fragmentadas, há a desconstrução de mitos e de narrativas, enfim, as aparências sobrepujaram a essência. É por isso que o eu lírico surge como um anti-herói em busca de si e de sentido, bem como, empenhado a gritar as suas verdades, mesmo que essa ousadia lhe custe algo. Minha poesia pretende ser revolucionária, nada mais fora de moda nos dias atuais, mas, sigo enunciando e apostando nas utopias. O autor físico, “real” interessa bastante, mas ele surge no cenário de forma performática e variados aspectos biográficos podem, sim, ajudar a compreender a obra. Esse sujeito esvaziado da escrita busca preencher-se: religiões pentecostais, esoterismo, modas, etc., eis que diante desse cenário, a
linguagem emerge como uma possibilidade de emancipação. Gilbert Durand afirmou que ”representar a angústia existencial já é um meio de exorcizá-la”. Tomemos como referência a poeta Hilda Hilst, que possui uma escrita marcadamente pós-moderna. Quando perguntada sobre o que buscava na sua poesia, ela respondeu: “Deus”, e completou que toda a sua produção, narrativa, teatral e poética é sempre poesia. A poesia pós-poética, para mim, seria a busca do que, na minha produção, chamo de “Isso”, ou seja, do indizível que fica guardado no interior da palavra, como uma semente, poesia que busca aglutinar o que foi estilhaçado e despertar,− “revelar”−, esse olhar que a ciência negou.


FK – O livro de poemas que não ganha resenha e nem destaque nos meios de
comunicação é um livro que não existe, não tem importância? Até que ponto a
resenha literária colabora na cristalização do livro de poemas? A resenha é um
instrumento ainda necessário num mundo regido pelas redes sociais?
RB - Todo livro existe a partir da sua inegável materialidade. Há, também, vozes sempre prontas para enunciar-se no momento em que esse for lido, independentemente de ser um livro conhecido, ou desconhecido. A resenha, indiscutivelmente, é uma ferramenta importante para a divulgação da obra, mas não apenas isso, ela também abre a possibilidade de que a obra seja vista pelo olhar de outrem. Ou seja, a resenha ou o texto crítico exerce uma sedução sobre o público que pode ser um fator determinante para que esse a adquira e leia. Acredito que há algo que ultrapassa a publicidade, algo não tão valorizado nos dias atuais, e que fará que esse texto continue vivo, esse elemento é o que essa obra antecipa de futuro. Cito, como exemplo, a poesia de Florbela Espanca. Na sua época, década de 1920, seus livros foram recebidos de maneira fria pelos críticos, ao passo que uma outra escritora portuguesa, hoje esquecida, conseguiu a incrível marca de dez reedições. Como explicar? A escritora do best-seller fazia poemas que louvavam a família, o governo, as qualidades e prendas das “boas esposas”, ao passo que Florbela cantava o corpo vivo, desejante e desejável da mulher, bem como, lamentava o seu destino numa sociedade patriarcal, o que fez com que durante muito tempo fosse rotulada como a escritora melancólica. A Estética da Recepção é uma teoria que explica bem esses fenômenos. É por isso que sempre pedimos aos amigos escritores que escrevam uma notinha sobre o livro nas redes sociais, publicamos textos críticos em sites, revistas e jornais.

FK – Você tem uma grande experiência com a comunidade literária latino-
americana, participa de muitos festivais de poesia, congressos, encontros, etc.,
como se dá essa relação com nossos hermanos? Como eles te recebem, como
nos enxergam? Você se dedica à tradução dos nossos colegas latinos? Quais?
RB – Quando comecei a pesquisar a poesia de Rubén Darío no doutorado de Letras da UFES, observei a inexistência de obras atualizadas sobre o poeta na biblioteca da Universidade e a quantidade escassa de materiais sobre ele no Brasil. Fiz as malas e fui para Nicarágua em busca de materiais recentes e de compreender melhor quem era esse que é chamado de “Cisne da América” e considerado o fundador do modernismo hispano-americano. Chegando na Nicarágua, descobri que Rubén Darío não era apenas um poeta, mas herói nacional. Vi sua foto estampada nas casas, vários monumentos e me deparei com um povo alegre, hospitaleiro e fanático por poesia, enfim, me senti em casa. A Nicarágua realizou, durante vinte anos, o maior festival de poesia da América Latina, cada edição recebia em torno de 200 poetas de variados países. Em 2013 visitei o país pela primeira vez e assisti ao Festival, em 2014, convidaram o Ferreira Gullar, mas ele não foi porque estava doente, então me convidaram. No ano anterior, 2013, o poeta Thiago de Mello tinha ido representar o Brasil. Tive a alegria de conhecer pessoalmente o Ernesto Cardenal, de quem sou leitora há muitos anos. Nossos Hermanos tem muito interesse pelo Brasil e fui tratada com muito carinho e respeito. Acabei visitando o país mais três vezes e acabei montando uma biblioteca com um acervo bastante amplo sobre o poeta. Lembro que uma vez eu estava voltando para o Brasil com muitos livros e a moça do aeroporto perguntou o que eu estava levando, eu disse que carregava os objetos mais perigosos do planeta, ela arregalou os olhos e a piadinha me fez ter que abrir a mala. Participei, na Nicarágua, também, do Festival Internacional de Poesia de Masaya. Depois de 2014, representei o Brasil no FIPG mais cinco vezes. Infelizmente, o governo ditatorial de Daniel Ortega, cancelou a pessoa jurídica do Festival, isso acrescido da perseguição sofrida pelos poetas que são importantes militantes contra essa ditadura. Em 2023 a FIPG acontecerá no Panamá, e eu já dei o meu aceite para o convite, estou ansiosa para reencontrar tanta gente
querida. A participação nos Festivais de Poesias permitiram que conhecesse muitos escritores e ficasse um pouco conhecida. A amizade fomentou a troca e passei a publicar vários poetas estrangeiros no Letra & Fel e a ser publicada por eles nos seus países. Cheguei a receber o convite para um Festival de Poesia no Japão, mas acabou que não pude ir. Por tudo isso, por esse carinho e pela admiração recíproca, eu decidi dedicar O Coração da Medusa ao povo nica, e tive a alegria de ter a obra prefaciada pelo grande poeta e amigo Francisco de Asís Fernandez Arellano, o Chichi. A Nicarágua é um país marcante e de muitos contrastes, certa vez o escritor Julio Cortázar visitou o país e desse encontro nasceu a obra Nicarágua tão Violentamente Doce.
Com relação à tradução, ainda não arrisquei transitar por essas paragens.

FK – Você tem uma forte presença política no Espírito Santo, como ativista do
meio ambiente, defensora da Mata Atlântica e dos animais, mantém uma RPPN –
Reluz - por 15 anos, como é ser uma ativista numa urbanidade tão inconsciente,
consumista, concupiscente? Como os políticos da sua cidade te veem e te
compreendem? As perspectivas para o setor das RPPNs são favoráveis? Ser
ambientalista e defensor dos direitos da natureza é uma atividade perigosa?
Conte-nos um pouco dessa corajosa experiência.
RB – Eu milito por necessidade, podem acreditar que gostaria muito de estar deitada na rede vendo os macacos-prego fazendo algazarra nas árvores, mas não é possível um descanso prolongado. Desde que criei a Reserva, em 2007, foi necessário afirmar a posse do território, que antes era terra de ninguém, frequentada por caçadores e traficantes de animais e plantas. É uma tensão, um desassossego. A minha chegada na militância ambiental capixaba também incomodou alguns ativistas antigos que se sentiram “ameaçados” por uma mulher que sabe falar e escrever, já sofri variadas formas de preconceito e represálias ao meu trabalho. Graças a Deus, também tenho encontrado pessoas maravilhosas, apoiadoras e dispostas a ajudar e temos feito um trabalho de sensibilização junto aos políticos para a causa ambiental.

Eu sou filiada ao PV há alguns anos e decidi me candidatar a vereadora na última eleição, mas acredito que a minha proposta de trabalho foi incompreendida por alguns e rechaçada por outros: projetos sustentáveis para a cidade, com foco em economia de água, educação ambiental, criação de meliponários urbanos como forma de preservação das abelhas e geração de renda, abolicionismo animal, vegetarianismo, estado laico, enfim. Os políticos me reconhecem e respeitam como ativista ambiental dentro do terceiro setor, mas sabem que com as pautas que defendo fazem com que as minhas chances de ocupar um espaço nos poderes sejam muito pequenas. Após 15 anos de trabalho na Reserva Natural Reluz, em 2029, nós criamos o Instituto Ambiental Reluz, que atua com preservação, educação ambiental e bem-estar animal. Às vezes é desesperador ver o desmatamento avançando sobre o restinho da Mata Atlântica, a gente grita, denuncia para o MP, faz o que pode, mas a gente pode pouco frente ao poderio econômico. A violência para com os animais, especialmente depois que o
abominável liberou as armas, cresceu imensamente. É um desgosto ver abrir tanta loja de armas e clubes de tiros.

Acredito que grande parte dos políticos não compreendem bem as motivações dos ambientalistas, eles ainda tem um olhar para a natureza do ponto de vista antropocêntrico, ou seja, tudo o que existe é para servir as necessidades do ser humano: a floresta, os animais, a água, o ar, os minérios, etc., eles esquecem que há outras espécies que também necessitam de território, alimento, água, etc., e que essas espécies têm direito à existência e à vida. Parece tão obvio, Não é? Mas, quando defendemos um animal ou uma árvore riem na nossa cara, nos chamam de ingênuos, e se esse discurso vem da boca de uma mulher soa afetado e romântico. A RPPN é uma modalidade de unidade de conservação que deveria ser mais valorizada, pois ela garante uma economia enorme para o poder público, além de ser uma das melhores formas de se preservar a Mata Atlântica, visto que 80% do remanescente desse bioma está em terras de particulares. O desgoverno atual trabalha contra o meio ambiente, nem preciso ir a fundo nesse assunto, está aí para quem quiser ver. É perigoso ser ambientalista no Brasil. Hoje eu soube que os proprietários de uma RPPN em Santa Catarina foram alvo de tiros, tenho uma amiga RPPNista no Rio Grande do Sul que vive lutando contra invasores nas áreas naturais, outro amigo RPPNistas do Rio Grande do Sul escapou de duas emboscadas, quase morreu. Nesse momento, em Santa Teresa (ES), temos ambientalistas sendo ameaçados por defender
o remanescente da Mata Atlântica contra o avanço imobiliário desenfreado e irresponsável. Estamos botando a boca no trombone como forma de proteção, e se há ameaças denunciamos.

FK – Com o avanço cobiçoso das megacorporações estrangeiras sobre a
Amazônia, que buscam rapinar as commodities de países autossuficientes como o Brasil, você acredita que a “nossa governança federal” cederá a soberania da
Amazônia para os gringos? Como você compreende os movimentos geopolíticos,
a violência do globalismo sobre as nações frágeis, a mudança da hegemonia
econômica do ocidente? A ameaça de guerra entre o ocidente e o oriente? A
humanidade subiu ao banco dos réus?
RB – Na medida do possível tenho acompanhado o que acontece com outros RPPNistas pelo Brasil, inclusive o que vem acontecendo na Amazônia. Me recordo agora que a irmã Cleusa Carolina Rody, freira nascida em Cachoeiro de Itapemirim, e cotada para se tornar a primeira santa capixaba, foi assassinada defendendo os índios na Amazônia. A Amazônia é um mundo de biodiversidade, mas muita gente desconhece que embaixo das centenárias copas verdes, há comunidades que há séculos ocupam esse território preservando-o. O “avanço cobiçoso” começou em 1500 e nunca parou, o Brasil é um paraíso, por exemplo, para traficantes de animais, contravenção que envolve muito dinheiro, o mesmo acontece com madeira, plantas, etc. Acredito que, com o governo atual, questões problemáticas no Brasil como a demarcação dos territórios indígenas e a reforma agrária, conseguiram ficar ainda mais graves. As comunidades indígenas estão sendo aviltadas como eu nunca vi, parece que voltamos para época do Brasil colônia. Há, ainda, a criação de dispositivos legais que permitem a regularização de terras de grilagem, o desmonte da FUNAI e dos órgãos fiscalizadores, a liberação de armas, o incentivo ao garimpo, uma desgraça só. Segundo pesquisas, cerca de 40% dos bovinos do Brasil estão em território amazônico, e quando se exporta a carne, o país exporta também água, pois, quem compra deixa de gastar esse recurso escasso no processo de produção. A violência sistêmica que vemos no Brasil, assim creio eu, é fruto de um processo longo e equivocado de desenvolvimento, de um colonialismo que foi mudando de configuração e resultou num capitalismo selvagem criador de misérias. A guerra é um efeito colateral, consequência desse sistema, é algo normal no processo civilizatório atual, basta que olhemos a timeline da história. Desde que o ser humano passou a criar agrupamentos, a produzir e comercializar instituiu-se na base desse arranjo a escravização do semelhante e a exploração da natureza. Até mesmo a história foi manipulada de forma perversa, buscando suprimir e apagar todos os rastros de uma resistência que sempre existiu: os negros escravizados resistiram, as mulheres, os índios, enfim, mas a contemporaneidade tem posto as narrativas totalizantes sob suspeita e está havendo o rastreio e o resgates desses relatos silenciados. Acredito, sim, que a humanidade já está no banco dos réus.


FK – Se você tivesse uma única chance de falar no parlamento da ONU, para
milhões de ouvintes, alguma verdade que é salutar e radicalmente importante para você, apesar de qualquer consequência posterior, o que você diria nesta ocasião?
RB – Essa é uma pergunta difícil. Há tantos temas relevantes que merecem serem enunciados nesse espaço importante de fala e escuta. Mas, acredito que eu diria algo assim: Senhoras e senhores, enquanto sociedade, cometemos vários equívocos no decorrer da história. O primeiro deles foi acreditar na falácia da separatividade e não percebermos que há uma interdependência entre todos os seres do planeta. Outro, não menos importante, foi acreditar em colocar a posse como destino. Não somos donos de nada, nem da própria vida, que a qualquer momento pode ser arrebatada pela morte, somos apenas usufrutuários do que temos e devemos cuidar bem do que está sob a nossa tutela. A terra, assim como o nosso corpo, é um organismo vivo, pulsante e responsivo. Assim como há febre no corpo, há febre na terra. É patente os sintomas de que Gaia necessita repouso, cuidado e amor. A ganância, o egoísmo e o ódio são, também, grandes equívocos, é o amor com febre, já convulsionando.

Outro erro monumental foi pensar que o acúmulo de bens materiais traria felicidade, e não perceber que o compartilhamento é o que permite o equilíbrio de forças internas e externas no homem e no planeta. Erramos, também, quando atribuímos ao cérebro e a mente o domínio das ideias e o poder das decisões. Todos os órgãos deveriam formar uma junta decisória dos caminhos individuais e coletivos a serem seguidos: o coração nunca poderia ter sido ignorado, e nem o pulmão, que quando adoece, indica a necessidade de mudanças de rumo; os rins são grandes indicadores do nível e da qualidade das relações interpessoais, apontando a necessidade do melhoramento, ou seja, esse é um conhecimento, chamado psicossomática, já foi validado pela ciência, mas ainda pouco levado em conta. A ignorância do ser humano sobre si e sobre o Outro, − e quando digo Outro, me refiro as demais formas de vida, e não apenas a espécie humana −, acabou fazendo com que nos tornássemos uma sociedade narcótica e desesperada: corpo individual, corpo mental, corpo social e corpo de Gaia estão sendo envenenados e mutilados. Não são as florestas os pulmões do planeta? Não são os rios o seu sangue, assim dizem os povos originários, com a sua sabedoria. A Covid-19 é fruto da ignorância da sociedade atual e uma mostra patente de que é preciso uma mudança de rumo. Está provado que o desmatamento é o maior incentivador do surgimento de novas epidemias. Em um espaço temporal de 100 anos tivemos cinco epidemias no planeta, e todas elas resultantes da ação kamikaze do ser humano sobre a natureza. É preciso evitar o desmatamento agora, para evitar novas pandemias e seus trágicos resultados! É preciso que reconheçamos o direito à vida de todos os seres que, assim como nós, são filhos de Gaia. Urge que deixemos de ser uma sociedade consumidora para nos tornarmos uma sociedade de poetas, cada qual imantando de poesias o tempo que lhe toca viver, pois, a morte é certa!

O CORAÇÃO DA MEDUSA [poema do livro O Coração da Medusa - edição da autora, Vitória/ES, 2021] O coração da Medusa, (forjado na lava, cheio de fúria) ama aquele que a busca. A diva serpentina oferece ao macho que penetra na senda úmida e obtusa, (caverna iniciática): sedução, prazer e gozo. Até o momento fatal da mirada suave e íntima, o tempo para. A virgem quebra o silêncio sepulcral, chocalha o guizo, mas, ninguém testemunha o milagre dos milagres: a volúpia eternizada numa estátua de carrara. * Francis Kurkievicz é poeta, escritor e professor, natural de Paranaguá/PR. Residiu por 20 anos em Curitiba/PR onde estudou FILOSOFIA – UFPR/2002, com especialização em Yoga – UNIBEM/2010 e MBA em Produção de RTVC, UTP/2011. Foi um dos 36 pré-selecionados ao Prêmio SESC de Literatura de 2015 na categoria Conto. Publicou, em dezembro de 2020, pela Editora Patuá, o livro de poemas B869.1 k96. Têm poemas publicados nas Revistas Acrobata, Hiedra, Mallarmatgens, Arara, Estrofe e no site escritas.org – traduções na Revista Zunái, Escamandro, Letra & Fel – artigos no Jornal Memai. Em 2022 teve seus poemas publicados nas duas maiores antologias mundiais de poesia: World Poetry Tree, organizado por Adel Khosan – Dubai/EA, e Living Anthology of Writers of the World, organizado por Margarita Al – Russia; também teve seu poema CHILDHOOD IN BHARAT publicado em MA: Antologia de Poemas em Memória da Poeta bengali Kazi Masuda Saleh, feito realizado pelo poeta de Bangladesh Abu Zubier Mohammed Mirtillah, Editor e organizado. Em Vitória desde fevereiro de 2012, ministrando oficinas de Dramaturgia, Haikai e Meditação.

Revista Acrobata/ 08/02/2023.

OUTROS ENSAIOS:

04/12/2024

Adriana Pereira Campos toma posse na Academia Espírito-santense de Letras (AEL)

 


É com alegria que compartilho o convite, para a posse na AEL, da nova confreira Adriana Pereira Campos. Adriana é professora, historiadora, pesquisadora e, com certeza, a sua entrada enriquecerá o quadro de membros da instituição. Descobri que compartilho com Adriana o gosto pela pesquisa de escritores do século XIX. Entre as investigações da nova confreira constam nomes de relevo para a literatura espírito-santense: como Marcelino Pinto Ribeiro Duarte, José Marcelino Pereira de Vasconcelos e Carlos Xavier Paes Barreto. 

Segue o convite.
Renata

20/11/2024

Meu aniversário vegano (Renata Bomfim- 21/11)

 



No dia 21/11 completo mais uma primavera.

Há alguns anos venho pedindo a amigos e leitores (dos meus livros e do Letra e fel) que me presenteiem não comendo carne no dia do meu aniversário. Esse é realmente um presente que recebo, me deixa muito feliz. Recebo sempre retorno de pessoas que toparam o desafio. O vegetarianismo é uma escolha pessoal, algo que deve vir do coração como uma certeza. No meu caso, posso afirmar que deixar de infringir tanta dor aos animais foi um passo para a felicidade.

Muto obrigada a todos e todas pelo carinho.

Renata Bomfim


17/11/2024

Celebração do cinquentenário de Carmélia Maria de Souza e Caderno de resumos do XXVI Congresso de Estudos Literários/ UFES.

 

Carmélia Maria de Souza (1936-1974)


Há alguns anos venho escrevendo sobre Carmélia Maria de Souza. Em 2008 publiquei o ensaio "Carmélia Maria de Souza, a cronista do povo; em 2016, Amor e humor em Carmélia Maria de Souza e, em 2022, a cronista tornou-se objeto de minha pesquisa de pós-doutoramento, na UFES. No dia 21 de novembro de 2024 (dia do meu aniversário), vou apresentar os resultados parciais dessa investigação no Congresso de Estudos Literários. Segue o caderno com os resumos.

Acesse o caderno de resumos

XXVI CONGRESSO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: PPGL/UFES, 30 anos de fundação e 25 anos de reconhecimento (Programação-2024)

 

O Programa de Pós-Graduação em Letras da Ufes: 30 anos de fundação e 25 anos de reconhecimento pela Capes (1994-2024) 
 21 e 22 de novembro de 2024, 
Campus Alaor de Queiroz Araújo (Goiabeiras)


  O XXVI Congresso de Estudos Literários – CEL do Programa de Pós Graduação em Letras – PPGL da Universidade Federal do Espírito Santo – Ufes, neste ano, volta-se para a própria história, desenvolvimento, legado e perspectivas atuais e futuras, no período de 1994 a 2024 (sendo 1994 o ano de fundação e 1999 o ano de reconhecimento pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes). Homenageia e agradece, na pessoa dos membros da Mesa de Abertura do evento – composta pelos ex-professores Alexandre Moraes e Paulo Roberto Sodré – todos aqueles colegas que constituíram nosso corpo docente ao longo dos anos, formando pesquisadores e levando à defesa orientações de dissertações e teses. Entre tantos ex-professores, além dos já citados, foi possível recuperar, nos arquivos atualmente disponíveis, os seguintes: Adélia Maria Miglievich Ribeiro, Bernardo Barros Coelho de Oliveira, Deneval Siqueira de Azevedo Filho, Ester Abreu Vieira de Oliveira, Evando Nascimento, Fernando Mendes Pessoa, Francisco Aurelio Ribeiro, Gilvan Ventura da Silva, Jaime Ginzburg, Jorge Luiz do Nascimento, Lino Machado, Luís Fernando Beneduzi, Marcelo Paiva de Souza, Olga Maria Machado Carlos Soubbotnik, Paolo Spedicatto, Paula Regina Siega, Pedro José Mascarello Bisch, Rafaela Scardino, Raimundo Carvalho, Stelamaris Coser e Telma Boudou. A equipe organizadora, desde já, se desculpa por alguma eventual lacuna cuja documentação digitalizada e analisada até o momento não pôde sanar. O evento inclui, ainda, na programação, uma singela rememoração e homenagem a algumas pessoas que foram fundamentais no percurso, tais como: Francisco Aurelio Ribeiro (ex-professor, fundador do PPGL/Ufes e segundo coordenador, após a coordenação inaugural de Geraldo da Costa Matos, in memoriam); Jurema de Oliveira (ex-professora, fundadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Africanidades e Brasilidades – Nafricab e proponente da primeira política de cotas étnico-raciais, in memoriam); Leni Ribeiro Leite (atual professora, primeira mulher coordenadora, exerceu dois mandatos e foi uma liderança fundamental para que o PPGL/Ufes obtivesse pela primeira vez a nota 5 junto à Capes, que o projetou como um programa de excelência acadêmica nacional); Reinaldo Santos Neves (ex-técnico em assuntos educacionais, escritor, pesquisador e tradutor, fundador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Literatura do Espírito Santo – Neples e criador da série de eventos e livros Bravos Companheiros e Fantasmas de estudos sobre o autor capixaba); Santinho Ferreira de Souza (membro da equipe de fundadores do PPGL/Ufes e ex-diretor do Centro de Ciências Humanas e Naturais – CCHN, que apoiou o Programa nos seus primeiros anos); Wilberth Salgueiro (atual professor, coordenador por três mandatos, autor da proposta apresentada ao Aplicativo para Propostas de Cursos Novos – APCN da Capes para o reconhecimento e autorização para início de funcionamento tanto do mestrado quanto do doutorado). Ademais, o XXVI CEL conta com mais de 30 comunicações científicas distribuídas nos seguintes eixos temáticos: Estudos sobre a constituição do PPGL/Ufes (fundação, desenvolvimento, atualidade, perspectivas); Estudos sobre a contribuição do PPGL/Ufes na formação de escritores, pesquisadores, professores, tradutores e outros profissionais da área; Estudos sobre os impactos e desdobramentos da produção de egressos, discentes, pós-doutorandos e/ou docentes vinculados ao PPGL/Ufes no plano regional, nacional ou internacional; Estudos sobre as dissertações e teses defendidas no PPGL/Ufes; Estudos sobre os livros e periódicos publicados pelo PPGL/Ufes; Estudos sobre os eventos organizados pelo PPGL/Ufes; Estudos sobre os núcleos, linhas e projetos de pesquisa do PPGL/Ufes; Estudos sobre a Literatura do/no Espírito Santo e sobre o sistema literário capixaba em correlação com o PPGL/Ufes; e Projetos de pesquisa, de dissertação e de tese atualmente em andamento no PPGL/Ufes. Por fim, o evento que marca a comemoração dos 30 anos de fundação e dos 25 anos de reconhecimento do PPGL/Ufes encerra com uma mesa-redonda integrada por quatro dos cinco vencedores do V Prêmio Ufes de Literatura, sob mediação da doutora egressa do PPGL/Ufes e atual servidora técnica em assuntos educacionais junto à Editora da Ufes (Edufes), Fernanda Scopel Falcão; essa mesa convergirá no evento oficial de lançamento dos livros premiados, no dia 22 de novembro de 2024 à noite, no Teatro Universitário, em uma atividade em parceria com a Edufes e a Secretaria de Cultura da Ufes. Trata-se do reconhecimento e incorporação de modalidades de produção de saber no âmbito dos Estudos Literários que, historicamente, não eram chanceladas oficialmente; nesse sentido, tal escolha, por parte da organização, aponta para o presente e o futuro, já que a fundação da linha de pesquisa Literatura: Escrita Criativa, Tradução e Ensino (assim como a reativação da linha de pesquisa Literatura e Outros Sistemas de Significação) é uma aposta recente, nascida de demanda posta pelos próprios discentes, docentes e egressos, a partir das atividades da Comissão de Autoavaliação e Planejamento. A Comissão Organizadora agradece o apoio do CCHN e da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação – PRPPG; do colegiado, da secretaria, da coordenação; do corpo docente e discente; dos egressos; dos convidados, dos homenageados e dos monitores; e de todas as pessoas que enviaram suas propostas de comunicação e que assistirão à programação. Agradecemos também aos órgãos de fomento (Capes, CNPq e Fapes) que têm sido fundamentais à manutenção e continuidade de nossas atividades. Espera que o evento seja um momento de reencontro do Programa consigo mesmo, com seu passado e seu presente, visando ao futuro. Deseja a todos saberes renovados e reflexão, celebração e afeto ao longo desses dois dias.
omissão organizadora:

Organização: Andressa Zoi Nathanailidis, Arlene Batista da Silva, Gaspar Leal Paz e Maria Amélia Dalvi.

12/11/2024

LUZES PARA FREDA JARDIM, MÃE DO MOSAICO BRASILEIRO (POR RENATA BOMFIM)


Freda Cavalcanti Jardim.

 

“Quaisquer que fossem as coisas que pudessem aparecer e desaparecer, o que aqui se encontra é bem sólido. Aqui, podia-se dizer àquelas luzes deslizantes, àqueles ares tateantes que respiram e se curvam sobre o próprio leito, aqui vocês nada podem tocar e nada podem destruir." (Virginia Woolf- Viagem ao Farol).

O ser humano experimenta variados nascimentos. Nascemos no desejo, — mesmo que inconsciente — dos pais, e nos tornamos carne. Depois deste, outros nascimentos se seguem em um processo de humanização permanente da pessoa. Seguindo essa ideia, morremos também simbolicamente e variadas vezes , até que um dia os olhos se fecham de vez, acompanhados pela última respiração, mas, esse ainda não precisa ser o fim, pois, podemos ser revividos pela ação salvadora da memória. A morte verdadeira e definitiva, acredito eu, chama-se ESQUECIMENTO. 

O filósofo Henri Bergson, ao refletir sobre o tema, descreveu a memória como um fenômeno capaz de prolongar o passado no presente. Tentarei fazer como Ariadne, personagem mitológica, e seguir um fio da minha história que me trouxe até onde estou hoje. Bordadeira e mosaicista que sou, não posso deixar de pensar que existe uma certa proximidade entre a arte têxtil e o seu mundo de linhas, cordas, tramas e nós com a arte do mosaico. Ambas são técnicas afeitas ao agrupamento e apontam caminhos estéticos para a fragmentação e o estilhaçamento das estruturas. O poeta Haroldo de Campos dedicou uma poesia a esse processo arquetípico que (re)une as duas pontas do fio da existência: Se/ Nasce/ Morre nasce/ Morre nasce morre/ Renasce remorre renasce”. Embalada pela cadência desses versos, lembro que experimentei um nascimento significativo em um dia ensolarado, quando era estudante de artes plásticas na UFES. Antes desse dia, recordo ter olhado várias para o teto da sala de aula e me perguntado: o que estou fazendo aqui? Mas, nesse dia, o sol brilhou diferente. Ao vaguear pelo IC-3, no Centro de Artes, encontrei uma senhora falando sobre a sua obra, era a Freda Cavalcanti Jardim (1926-2000). Sentei-me para escutar e fui capturada pelo brilho translúcido das ágatas, citrinos, cristais brancos e amarelos, — joias-mosaico —,  e por aquela mulher que fez da sua vida uma obra arte. Saí dali certa do caminho que gostaria de percorrer como artista e que eu gostaria de me tornar uma MOSAICISTA, assim como ela. 

Renata Bomfim criando um mosaico luminoso.

           Foi a partir desse encontro que nasci para uma existência que me acompanha como devir. Além de estudar artes, passei a participar de exposições e depois, novas experiências me levaram para o campo da saúde mental, literatura, meio ambiente, e a identidade foi fluindo com o passar dos anos. Antes de tudo, sinto que me tornei alguém de quem eu gosto, aprendi a cuidar dessa que sou com respeito e tudo o que se formou ao meu redor passou a ser uma construção nova, uma vida imaginada que foi se tornando realidade. Não que eu fosse nada, mas, antes desse nascimento social e espiritual, era assim que eu me sentia nos círculos fechados e oprimidos da minha vida. Esse processo de humanização permite que enxerguemos o valor de cada etapa da vida-morte-vida, mesmo aquela que consideramos dolorosa e sem sentido. Enfim, (re)nasci nesse dia ensolarado de palestra musiva e serei eternamente grata à mestra e amiga Freda Cavalcante Jardim por isso. Depois desse primeiro contato com universo do mosaico, eu busquei me aproximar da professora. Comecei pegando todas as matérias que ela ofereceu no semestre. Certo dia, vasculhando uma pilha de azulejos, refugos de uma obra na UFES, Freda me viu e reconheceu como sua nova aluna. O que você está fazendo aí? Ela perguntou. Respondi que estava “catando uns cacos” para fazer um mosaico. Lembro que a professora sorriu e disse: “vem comigo, vamos fazer esse mosaico na minha casa”. Chegando lá, ela me deu todas as condições para criar a primeira obra arte, o Sol de Gaudí. Aos poucos passei a frequentar semanalmente a residência e foi se construindo uma amizade que se desdobrou em compartilhamento de experiências, histórias, exposições e muita criação.

O Sol de Gaudí (Renata Bomfim)

       Freda foi muito antenada com a crítica de arte e tinha obras de variados escritores. Se não me engano, era o Ernst Gombrich que ela queria desafiar para um debate, pois, divergia de alguns pontos da sua obra. Que privilégio ter convivido com uma artista inspiradora como Freda. Tanto eu, quanto as minhas colegas do mosaico, sempre saíamos de sua casa com planos para novos projetos. Era comum Freda convidar os alunos para estar com ela em momentos de sua criação, lembro de ter quebrado muito mármore e granito, de misturar cimento para as bases do mosaico, enfim, oportunidades de aprendizado que extrapolavam os limites da universidade.

    No ano de 1995, Freda doou à UFES o COMETA ESPERANÇA, um mural luminoso que foi instalado no prédio da Reitoria. Tenho a felicidade de ter participado da instalação dessa obra, juntamente com o  Bené, querido e saudoso amigo Benedito Simões, que era o braço direito dos alunos no Centro de Artes e quem fazia toda a parte estrutural e de instalação dos mosaicos para Freda. Tinha também o Tuca, que ajudava bastante a Freda com a instalação dos mosaicos. Participaram da execução do Cometa da Esperança, sob a orientação de Freda, as colegas de classe: Cláudia Felix, Heloisa Galvão, Renata Carminati, Roszi Graci Simões, Joelma Celin, Áurea Carvalho, Valentina e Mírian. Cada aula era uma descoberta, esse foi um tempo de variadas experimentações para todas nós.

Montagem do Mosaico “Cometa da Esperança”, na Reitoria da UFES.

A minha graduação aconteceu em torno do mosaico e, quando estava chegando o final do curso, realizei o TCC sobre as Joias-mosaico. Além de Freda, que foi minha orientadora, estiveram na banca o professor e mosaicista Jeveaux e a professora e ceramista Marlene Tejada. Nunca me esqueci de Freda. O silêncio em torno do seu nome sempre me incomodou e, no ano de 2022, quando fui convidada para integrar a Academia de Letras e Artes de Marechal Floriano (AFHAL), indiquei-a como Patrona da cadeira que ocuparia, de número 30. Outra homenagem foi a criação de um jardim com cristais cor de rosa, batizado como "Jardim de Freda", na RPPN Reserva Natural Reluz, Posto Avançado da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica (UNESCO), da qual sou criadora e gestora. 

"Jardim de Freda", na RPPN Reserva Natural Reluz, Posto Avançado da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica/UNESCO.

UM SOPRO, UMA SAUDADE...

Perder Freda tirou o nosso chão, pois, além desse desaparecimento inesperado da nossa mestra e referência, estava em andamento a organização do primeiro Congresso Internacional de Mosaico na América Latina. Esse evento era capitaneado pela Associação Internacional do Mosaico Contemporâneo (AIMC), do qual Freda foi uma das fundadoras e, recentemente, havia sido eleita presidenta. Na sua última viagem à Itália, Freda voltou com a saúde fragilizada e, infelizmente não resistiu. Dessa forma, o evento acabou sendo levado adiante pelos mosaicistas que ela formou e pela UFES, entre eles artistas mais experientes como Rosana Paste e Celso Adolfo. Tenho a alegria de ter integrado esse grupo e vivido esse momento único para o mosaico Latino-americano. O evento foi emocionante e todo dedicado à Freda. O Congresso aconteceu em 2002, no Teatro da UFES e no Museu de Artes do Espírito Santo (MAES).

No dia do passamento de Freda eu ia visitá-la depois da aula, cheguei a ficar parada na portaria da universidade decidido se ia ou não, mas lembrei que tinha umas pendências para resolver em casa e deixei para visitá-la no dia seguinte. Fiquei triste com a minha decisão, mas, depois compreendi que algo se processava naquele momento e que não era para eu estar ali. Chegando à noite eu não conseguia dormir e passei a madrugada fazendo várias coisas, — lendo, escrevendo, lavando louça — e, num determinado momento, uma rajada de vento entrou pela janela, um sopro forte que me atingiu de forma diferente. Na época eu ainda não era espírita, depois eu compreenderia melhor o fenômeno. Por volta das cinco da manhã recebi um telefonema com a notícia do falecimento e soube que aquele vento era um “adeus”. A mãe de Freda, Dona Isis, ser humano lindo que acolhia as visitas com longas conversas, bem idosa, viu a filha ser enterrada. O cortejo foi ao som da cantiga “se essa rua fosse minha, eu mandava ladrilhar com pedrinhas de brilhante, para o meu amor passar”, respeitosamente cantada baixinho pelos presentes.

Antes de falecer, Freda me contou que estava conversando com um advogado para criar uma fundação e transformar a casa em um museu do mosaico. Ela havia comprado o terreno ao lado do imóvel e construído um galpão que seria a escola e residência artística. Ela desejava que ali acontecessem oficinas para a comunidade e que fosse um espaço de criação para os artistas.  A educação pela arte sempre foi algo valorizado por Freda. Recordo que ela pretendia deixar esse patrimônio para a humanidade, mas gostaria que ele ficasse aos cuidados de suas alunas, entre elas eu e Mírian Pestana, que também foi muito presente na vida de Freda. 

Para quem não sabe ou não ouviu falar sobre Freda, ela é considerada a "MÃE DO MOSAICO BRASILEIRO". Artista contemporânea que fez formação na Itália, mais especificamente em Ravena. Além do mosaico, Freda dominava outras artes como a tecelagem, o vitral, a cerâmica, enfim, era uma artista plural. Ela contava que adorava dançar e falava também sobre o tempo em que foi casada com um italiano que, se não me engano, também era artista. Um acontecimento que marcou a vida de Freda foi um acidente que ela sofreu, se não me falha a memória, em frente à UFES: foi atropelada. O ocorrido a debilitou bastante, tornando difícil a locomoção e causando muitas dores. Desde então, a artista precisou usar moletas. O sentar e o levantar já não era algo fácil por conta das sequelas do acidente e, assim, eu buscava ajudar como podia, com coisas simples como pegar um copo d’água, um livro, ou o que ela precisasse. Para a minha surpresa, Freda me convidou para organizar a sua biblioteca. E que ciúmes ela tinha dos livros. Graças a esse serviço tenho a dimensão do seu acervo  livros sobre o mosaico, História da Arte, técnicas artísticas variadas, alguns volumes bastante raros.

Freda foi uma mulher de grande força espiritual e o acidente não a impediu de continuar trabalhando e realizando outras atividades, ela viajava, visitava exposições, fazia palestras, enfim, não se deixou limitar. Vale destacar que, mesmo aposentada, Freda continuou dando aulas. Foi uma professora muito respeitada e, de certa forma, ‘temida’, pois, defendia com garra seus ideais e lutava pelo fortalecimento do departamento, especialmente quando sentia que tentavam reduzir a oferta de modalidades artísticas para os estudantes. NATURAL DE FORTALEZA, NO CEARÁ, FREDA ESCOLHEU O ESPÍRITO SANTO COMO LAR E SEU PLANO ERA FORTALECER E DIFUNDIR A ARTE PRODUZIDA EM TERRAS CAPIXABAS.

O mosaico, que por vezes foi, de forma preconceituosa, descrito como uma arte menor, ganhou  grande projeção com a artista, e eu acredito que Freda está para o mosaico, assim como Rubem Braga está para a crônica. Nasceram da imaginação e das mãos da mosaicista importantes murais, esculturas, joalheria e mosaicos luminosos. Há um mural de Freda na ONU, outro na entrada do Itamaraty, em Brasília, em vários prédios da nossa capital e espalhados pelo mundo.

Painel de Freda jardim intitulado “A Terra é Azul”, de 1967, localizado no Ministério das Relações Exteriores do Brasil.

FREDA CRIOU UMA LINGUAGEM ÚNICA NO ÂMBITO DO MOSAICO CONTEMPORÂNEO

Quando concluiu os estudos na Itália e voltou para o Brasil,  a artista  que havia estudado com mestres do mosaico bizantino —, não encontrou por aqui pastilhas e materiais tradicionais para a produção dos mosaicos, ademais, a importação era cara e demorada. Sendo assim, ela passou fazer experimentações tanto com suportes, quanto com materiais como cristais, granitos, mármores, vidros, conferindo a sua obra uma organicidade bem brasileira.

Poucos sabem, mas Freda também era poeta, muitas vezes ela leu para mim textos que nasciam, tanto do processo de feitura das obras, quanto do impacto de vê-las concluídas. Os versos eram escritos no papel, mas também pintados atrás de algumas obras. Embora trabalhasse com a matéria bruta,  a pedra , e se inspirasse na diversidade da natureza, a artista possuía uma visão estética ligada ao Cosmo.  Animais de hábitos noturnos, exerciam sobre ela um grande fascínio, tanto que na parte frontal de sua residência, há um mosaico enorme, translúcido, intitulado “Bichos da noite”.

Freda Jardim elaborando o mosaico “Bichos da noite”.

A CASA DE FREDA

 A casa de Freda era um mundo e abrigada coleções de livros e obras de arte. A artista contava que seu pai tinha sido diplomata e que ela viajou por vários países em sua companhia. As marcas dessas vivências e viagens ela imprimiu no seu lar, a residência parecia uma galeria viva e pulsante. A arte têxtil também recebia grande atenção por parte de Freda, ela estava presente nas jóias, mas também em grandes paineis que ela tecia com linhas coloridas. Freda costurava as próprias roupas à mão, o que fazia com que  seu guarda-roupas também fosse bastante incomum. Na época que estudava estamparia, pintei vários tecidos em aquarela que ela transformou em saias e blusas. Costumávamos ficar longo tempo ‘mosaicando’ na grande sala que tinha no centro uma escada, cujo corrimão era de madeira retorcida, uma obra de arte encomendada especialmente para o local. Essa escada era a menina dos olhos da mosaicista. Entre as paixões da artista também estava a culinária. Freda amava cozinhar pratos de diferentes países e tinha uma estante imensa só sobre o assunto. Eu almoçava vários dias da semana na sua casa e lembro que uma de suas sobremesas preferidas era banana da terra cozida e gelada, com açúcar e canela. Em torno da arte e da comida, Freda reunia os amigos para longas conversas.

A mosaicista não teve filhos biológicos e, assim que faleceu, os seus bens foram transmitidos para os familiares. Desde então, eu e outros amigos mosaicistas não tivemos mais acesso a casa e nem as obras da artista. O luto foi difícil para o nosso grupo e, aos poucos, cada um foi tomando o seu caminho profissional e acabamos nos afastando. Como moro no bairro vizinho à Pedra da Cebola, passei os anos vendo a casa pelo lado de fora, sempre fechada, nunca observei ali nenhuma movimentação. Percebo agora que se passaram quase vinte e cinco anos.

O CAOS

No dia 08 de novembro recebi uma mensagem via whatsapp avisando que a casa de Freda havia sido invadida e depredada. Chamei a polícia e corri para ver o que estava acontecendo. Quando cheguei já era tarde, quase a totalidade do que havia dentro da casa havia sido roubada e tudo estava revirado. Começamos a buscar o responsáveis legais pelo patrimônio, ligando para amigos, ex-professores da UFES, mas sem sucesso. Quando cheguei na casa de Freda, ainda havia algumas pessoas em situação de rua na área do galpão e, depois, veríamos, colchões espalhados indicando que a casa esteve sendo usada a mais tempo. Não tive alternativa senão entrar na casa para ver a situação, até para poder, na primeira oportunidade, relatar para as autoridades e familiares sobre o ocorrido e ver se algo da memória de Freda poderia ser resgatado. 

O cenário era DESOLADOR. Ficamos um tempo em frente à casa, evitando que outros bens fossem levados, dois moradores da Pedra da Cebola, integrante da Associação do Bairro também estavam lá tentando resolver a situação.

                                         Imagem da frente da casa, tirada do local onde havia o portão.

Chorei muito enquanto um filme se passava na minha cabeça. O portão não estava mais lá, fora roubado na noite anterior, juntamente com tudo de metal da casa: lustres, tampa de cisterna, panelas, — Freda tinha panelas do mundo inteiro, inclusive woks originais—, objetos de decoração, pias, esquadrias, armários e todas as estantes, o que fez com que os livros ficassem jogados de uma maneira inacreditável. A biblioteca maior, que fica nos fundos da casa, foi invadida também pelo telhado, o que abriu um espaço considerável entre as telhas, deixando as obras expostas às intempéries. Acredito que ainda seja possível, garimpando, salvar documentos e outros itens de valor cultural e histórico na casa.

No Galpão, tudo estava revirado, as pedras jogadas, slides, cartazes, documentos etc. Na parte superior da casa havia dois quartos, um deles tinha objetos de uso pessoal de Freda como roupas, sapatos e coisas de uso da casa. O que restou, estava jogado pisado, entulhado. Tudo o que pudesse ser vendido foi levado. Era difícil até caminhar, porque as gavetas foram jogadas no chão umas por cima das outras, de forma que nem tivemos a oportunidade de saber o que se acumulava pelo chão criando barreiras que impediam a passagem. Na parte de baixo da casa, ao lado de onde ficava a biblioteca de culinária, ficava o quarto de Dona Isis, havia lá um banheiro e duas saletas, foram todas incendiadas e tudo o que havia dentro delas virou cinza.

Fechei os olhos e falei ao espírito da amiga que ficasse em paz, pois, ela fez a sua parte. Mas, e nós, fizemos a nossa? Confesso que senti uma dor no peito pensando que ESSE PATRIMÔNIO ARTÍSTICO E CULTURAL PODERIA TER TIDO UM DESTINO DIFERENTE: sido doado para a Universidade, vendido, emprestado, ou dividido entre as pessoas que gostavam de Freda.

A vida e a obra de Freda atravessam a minha vida, e sei que esse não é um privilégio só meu, pois, a professora tocou muitas subjetividades com o seu devotamento à arte e conquistou muitos e bons amigos.  É certo que, uma hora, a indesejada das gentes bate à porta, mas ela nunca será capaz de cortar esses laços de irmandade. Freda imprimiu amor em tudo o que fez e é por isso que sua lembrança continua viva entre nós e o seu legado permanece. 

Nesse momento, a área do portão foi fechada pela justiça, impedindo novos saques, e se abre um novo capítulo para essa história. Estamos confiantes que o poder público será de grande ajuda para que se defina o futuro do acervo. Na medida do possível, contactei a artista, outras pessoas estão se mobilizando, agora é aguardar. Há um verso de Fernando Pessoa que diz: “morrer é só não ser visto”, então, que os olhos se abram e que estejamos atentos para não sermos mortos pela indiferença e nem esquecido. Luzes para nós!


 

Renata Bomfim - Artista Plástica, mestre e doutora em Letras pela UFES, membro da Academia Espírito-santense de Letras e presidente do Instituto Ambiental Reluz. 

OUTRAS PUBLICAÇÕES SOBRE O ASSUNTO:

 



10/11/2024

Lançamento de livro de crônicas: ANVERSO & VERSO: Pensamentos & Ideias ( autor: Luiz Fernando Schettino)

 

No dia 04 de dezembro de 2024, a partir das 18:30h, no CREA-ES, será lançado o livro de crônicas  ANVERSO & VERSO: Pensamentos & Ideias, de autoria de Luiz Fernando Schettino.

Esse é o décimo quinto livro do autor e busca apresentar uma visão holística da vida, ou seja, uma visão maior e integrada, com base em seus pensamentos, ideias, sentimentos e angústias existenciais. O autor conecta vivências à questões do dia a dia, circunstâncias e questões socioambientais, buscando transformar a sua escrita em contribuição, crítica e inspiração para mudanças, ajudando assim a promover um mundo mais justo, fraterno, inclusivo e sustentável.

No prefácio II, J. Jerry Tononi, Professor reconhecido com notório saber, fica claro que: “Luiz Fernando Schettino é uma pessoa otimista e coerente, sem deixar de considerar a realidade e os desafios. Ele é otimista e coerente porque têm sabido manter-se sentimental, enquanto ao redor tudo nos parece sob o rigor da sequidão dos indiferentes, mas com os pés no chão e sempre atento a sua linha de pensamento e conduta histórica”. Nessa toada, afirma ainda: “Schettino é também um corajoso. Arrisca-se a estar entre poucos. Contudo, na verdade, ele tem consigo uma nuvem de companheiros, entre os bons leitores que saberão valorizar este achado. De fato, os textos que ele nos passa às mãos é um instrumento confirmador da qualidade de sua obra”. Enfim, J. Jerry Tonini afirma: “Precisamos resgatar o que de melhor tem sido dito pelos pensadores. Certamente, o que este livro exala é algo de verdadeiro, porque foi dito com intenso gosto e reflexão sobre a realidade. Boa leitura.

Luiz Fernando Schettino é Professor, Engenheiro Florestal, mestre e doutor em Ciência Florestal, licenciado em Letras (português/Inglês) e Advogado. 


30/10/2024

O CORPO COMO SENDA E CONDIÇÃO PARA O SER (Prefácio- Profa. Dra. Renata Bomfim)

 


O CORPO COMO SENDA E CONDIÇÃO PARA O SER

Prefácio para o poemario 

A Euforia do Corpo, de Anaximandro Amorim

Anaximandro Amorim é advogado e professor, mas, antes de construir um vasto currículo profissional, tornou-se escritor. Foi em 2001 que ingressou no universo literário integrando a Academia Jovem Espírito-Santense de Letras, considerada, institucionalmente, a primeira Academia Jovem de Letras do Brasil. Na atualidade, o escritor é autor de obras que transitam entre a prosa e a poesia e continua atuante no campo cultural integrando várias instituições, dentre as quais a Academia Espírito-santense de Letras.

A leitura inicial de A euforia do corpo me rememorou as ideias de Roland Barthes, para quem a escrita, afastada dos deveres e pressupostos do fazer científico, possui a potência de produzir diferenças, provocar deslocamentos e descentralizar sujeitos e palavras. Barthes nos diz, também, que o corpo vincula-se à escritura por meio do prazer. Foi a partir desse prisma que passei a deleitar-me com a leitura desse poemario e compartilharei com vocês, leitores, algumas sendas por onde passei nesse espaço dinâmico e plural.

Acredito que A euforia do corpo busca implicar os leitores num percurso de ambiguidades — rompendo com obviedades —, a começar pelo título, indicativo de estados abissais do ser, pois, a euforia pode indicar tanto alegria e otimismo quanto o seu oposto, o patológico, bipolar, a euforia depressiva. Jacques Lacan referiu-se à depressão como uma espécie de covardia moral, uma recusa do sujeito frente ao seu desejo. Anaximandro aceitou o chamado interno para refletir poeticamente sobre temas e conteúdos pulsantes e limítrofes. O escritor elegeu o filósofo francês Jean-Luc Nancy, estudioso de Lacan, como interlocutor privilegiado, como poderão observar em mais de duas dezenas de epígrafes. Essa escolha, que julgo ser consciente e bastante adequada, põe em cena o ente delimitador-mor da existência e condição primeira para a materialização de outros corpos: o corpo. A jornada começa com o impulso que arremessa para “fora (ex) do não-ser”. Sob o signo/bússola do desejo, — negado ou vivido às últimas consequências —, o saudável e o que, oprimido no inconsciente busca vir à luz, se comunicam como instâncias afins.

A euforia do corpo desnuda esse ente que nos acompanha do nascimento à morte/desencarne, impondo inquietações, espantos e, em momentos preciosos, nos regala com o maravilhamento e a epifania. Corpo plural e, como podemos observar no poema homônimo à obra, subdividido em três partes, apriorístico. Tomei a liberdade de ler esse poema como se fossem lâminas, ou seja, cartas do tarô. No início, observamos que loucura, magia e desejo constroem uma senda arquetípica, “labirinto sem mapas ou réguas”, que encaminha o leitor para um eufórico “balé

feérico”, onde tomará contato com outra subjetividade. A imagem do Louco, que subsiste nos baralhos modernos como o “coringa”, não tem posição fixa e, livre, transita entre os demais personagens do jogo. O eu poético parte daí, carta de número zero, liberto dos códigos tradicionais, “sem arrependimento, abrindo cordões, correntes e camisas de força”, enfim, “em procura”. “Uma charada que convida a repetir o enigma” está lançada. Chega o tempo da experimentação: O corpo é Amuleto! Na primeira carta do tarô, o Mago, criador e embusteiro, dirige a sua atenção para tudo o que lhe rodeia criando mundos imaginários e “um pacto de mistério”, a partir do qual o eu poético vivenciará o processo de diferenciação necessário à sua evolução, uma espécie de rito de veneração e de delícias que transforma a matéria alheia em uma coisa outra, “colosso”, “Porto aberto, macio e úmido”, “augusto deus pagão” e “objeto de culto/delírio”. Simplesmente, não há como resistir, “O corpo é uma tentação!”, não existem diques que contenham a sua força e nem o seu furor, embora o homem seja “feito de carne, ossos, músculos e vontade”, a qualquer momento “explode o que está (nele) contido”. Percebemos o germe de algo novo, a emergência de uma energia feminina poderosa.

A deriva do corpo é sempre produtiva e, ao desbravar uma Geografia íntima, o eu lírico se depara com “falésias” e “planícies”, repousa no “golfo”, “corpo de fuga”, sempre animado pelo “desejo do perder-se” e “Tendo a adrenalina/ do querer como/ ópio da procura”. Inexiste um manual que aponte saída para as antinomias do desejo, entretanto, o caos enuncia uma nova ordem e, “como monção que tudo destrói/ mas também tudo renova”, e o eu lírico

encontra nessa “geografia íntima”, “em cima,/ um cheiro de porto-seguro/ embaixo,/ um gosto de corpo.” Seguimos acompanhando a evolução dessa subjetividade poética que supera o medo de perder-se, pois crê ser preciso o seu destino: “o território do corpo”. Nessas andanças, o erro deixa de ser falta grave, tornando-se “brincadeira”, e as cicatrizes do corpo tornam-se um convite erótico, “portas semicerradas pelo tempo” cuja chave é outro corpo. Persistem as imagens que sugerem a existência de um código de acesso para todos esses mistérios, e nessa altura do texto, na qual o corpo tornou-se local privilegiado de enunciação, — seja ele um corpo de carne, filosófico ou linguístico —, urge “Buscar o eterno/ no irromper do instante// sabendo-se/ cativo/ no vazio/ do depois”, ou seja, é tempo de desafiar “o estado da matéria”. O eu poético vê-se impelido a “subverter a ordem do mundo,/ virar o macho do avesso/ – criar uma grande confusão!”: “Lilith”. Tomamos contato com a lâmina segunda do tarô: a Sacerdotisa. O conteúdo feminino latente é poderoso, mas, aqui essa imagem deve ser observada a contrapelo, ou seja, ser a carta de número dois não indica subjugação ou inferioridade, antes como ente emergente da sombra do um, vinculada à serpente, mentora da segunda esposa de Adão: Eva. O poema, dedicado a “todas as mulheres do mundo”, desafia o corpo sociocultural e opressor do patriarcado ao apresentar um modelo de entregar desmesurada. O tempo tornou-se propício para que constelasse essa que possui “entre as pernas”/- uma máquina de castração!”. 

A primeira esposa de Adão, Lilith possui um forte conteúdo revolucionário e pode ser encontrada em mitologias de variados países, entre eles as da Assíria, da Suméria, da Babilônia, da Cananéia, da Arábia, da Pérsia, entre outras, escancara o “desvario da criação” revelando a necessidade uma nova arquitetura, a “Arquitetura do Nada”, plantada em um domínio “fértil de símbolos”. Assim, sob o signo da insurreição, nos deparamos com outra personalidade emblemática, o desejado Jacinto, que entra em cena como um “corpo de alívio”, fluido como um “rio soberano” e transbordante, — poeta e amante —, presenciamos, então, a “Soberania do corpo”. Tudo é prazer, “um mundo se põe em delírio”, “dedos” e “língua” são senhas para a penetração, mas ainda há alguma reserva. 

Retorno a Roland Barthes em minhas reflexões. Esse pensador nos diz que a escrita cria um espaço relacional, nem sempre harmonioso, entre o escritor e a sociedade. Acontece ai um embate profícuo que, em essência, busca liberar a literatura de comunicar fatos históricos e de transmitir mensagens, para que possa realizar-se em si mesma: prazer e gozo. 

Na poesia de Anaximandro sinto esse pressuposto em operação, há no seu processo criativo uma bússola que o orienta para que não se desvie do cuidado/compromisso com a linguagem, sempre burilando os poemas, explorando sons e formas e jogando com os sentidos das palavras, como observamos no poema “A Pele. O Pelo” que, anaforicamente, repete cinco vezes a palavra “voo”, ao passo que brinca com as consoantes “p” e “l”. Esse poema ratifica o movimento ascensional ensejado nos poemas anteriores. A pele e o seu “raso”, o pelo, são peças no jogo da sedução e levam o eu poético ao desfrute de um “Acalanto doce” que é “remanso” e “abrigo”, e a possuir um “gosto de eterno”. Tempo de dizer, tempo de dizer-se: “A Boca”. A escritura efetua a linguagem na sua totalidade e deparamo-nos uma poética de hierarquização dos corpos: “imaculados”, “aceitáveis”, “rebotalho”, “transitórios”, todos esses presos à ilusão de serem senhores de si. Avesso do avesso: “o não- corpo” influi, seduz e tenta, espelho no qual o sujeito poético se vê refletido de forma invertida.

Jean-Luc Nancy terá dito que “Um corpo só é fazendo e se fazendo”, dessa maneira, o próximo conjunto de poemas construirá, a partir da “fresta da palavra”, o mundo. O eu poético denuncia: “aquilo que cala,/mata” e a semente que dormitava desperta “feito poema de devir”, semente-ostra gerando pérolas espetaculares, guardadas pelo “segredo-oceano”. No campo da beleza e do “sublime” ressurge o “corpo de alívio”, agora, maturado pelas vivências, ele anseia “apenas o inominado:/ Um casamento de almas” que possibilita “A Humanidade/ Recompor/ A beleza/ Dos dias” e, eis o milagre: “(o corpo inteiro)”.

O movimento circular do texto enseja um reinício, a “queda” torna-se uma espécie de senha para novas viagens e descobrimentos, o corpo torna-se “cordilheira” e o eu poético vislumbra, enfim, o segredo que se escondem por trás da complexidade, “para além do absurdo”: “A dor de máquina do mundo”. O olhar dessa subjetividade peregrina se (re)constrói com a imagem de um embate entre “Nasciso” e “Medusa”, ela percebe então que há beleza no brutal das criaturas, ou melhor, que brutal é a própria beleza. Essa visada que tomou a leitura da obra A euforia do corpo como a leitura da profundeza do ser buscou centelhas de compreensão, de forma nenhuma tentou esgotar o seu significado, até porque a potência da palavra poética nos impede de cometer tal hybris.

Há “segredos” inesgotáveis escondidos “por trás de um silêncio prenhe de signos”, o caminho buscado, agora é o da “alegria”. Mas, esses segredos podem ser acessados apenas por meio da leitura individual, na solidão essencial que emana da obra literária, como diria Maurice Blanchot. Mas, lembre-se sempre da senha: “aquilo que cala/ mata”.

Renata Bomfim
Doutora em literatura, poeta e ativista ambiental
Vitória ES Brasil, Agosto de 2020